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A cultura contra a ideologia

Opinião Pública | 22/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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FIgura

Se olharmos para a atual elite brasileira, encontraremos muitos daqueles jovens hippies de “maio de 68”, que envelheceram e hoje compõem as fileiras do sucesso, ocupando os principais postos de poder do país. São professores titulares em universidades, chefes de redação de jornais, diretores de televisão, cineastas, escritores, músicos consagrados, altos funcionários públicos, líderes religiosos e grandes empresários. Como diz a máxima de que para conhecer um homem basta lhe dar poder, assim aprendemos o real significado da herança cultural recebida de “woodstock”.

Quer conhecer essa herança? Caminhe pelos corredores das nossas escolas: professores afastados por psiquiatras, indisciplina, drogas, cenário de gueto. Não gostou? Então, visite a faculdade de filosofia ou ciências sociais de alguma universidade. Não é um cortiço, um boteco, um sindicato, a sede do partido comunista ou a maconholândia. É simplesmente o lugar onde as cabeças do país aprendem a “pensar”, com o dinheiro que você paga em impostos. Quer mais? Assista à televisão, ouça as músicas no rádio e acompanhe os últimos lançamentos editoriais. Supérfluo demais? Que tal os índices de violência e criminalidade nas grandes, médias e pequenas cidades do país?  Já chega?

Compreender a origem desta verdadeira devastação cultural, facilmente percebida pelo senso comum, é um assunto complexo, matéria para um livro e não para um artigo. Mas certamente ela passará pela influência das ideologias que circulavam naquela época e que hoje pautam todas as discussões públicas, inspirando desde as decisões do governo até as teses de mestrados nas faculdades.  Sua influência é tão forte que atinge as raias de uma verdadeira hegemonia, duramente conquistada durante os últimos cinquenta anos, por meio de um lento e bem sucedido processo de ocupação de postos estratégicos e a exclusão de todo pensamento discordante.

Neste contexto, é fundamental percebermos que nossas mazelas não se reduzem a um mero problema de política econômica e social (inflação, juros, saúde, planejamento urbano etc), mas refletem uma crise mais profunda, que corrói as instituições e ameaça as bases da sociedade. Grande parte dela é provocada por inspiração destas ideologias que, levadas pela retórica da “revolução”, têm destruído nossos principais referenciais éticos, submetendo-nos como cobaias às suas técnicas de reengenharia social, a pretexto de construir um mundo perfeito, supostamente mais igualitário e tolerante.

Por isso, há uma grande tarefa a ser feita, sem a qual nenhuma ação será suficiente para conter esta crise: a difícil tarefa de restaurar a riqueza cultural e moral do país. Um povo é a sua cultura e ela vai muito além de finanças, indústrias e shoppings centers. Uma cultura se faz com valores, expressos nas manifestações mais altas do intelecto humano. Aquilo que um povo pensa a respeito de si mesmo, da vida, da condição humana, vai refletir, evidentemente, nos consultórios médicos, nas decisões dos juízes, nas salas de aula, nas pesquisas científicas, nas empresas, no comércio, em tudo. E são estas concepções profundas, fundadas em verdadeiros valores, que podem nos proteger do perigo das ideologias.

Há quem tema o futuro, diante do estrago que está sendo feito na educação e na saúde mental dos brasileiros. Mas convido a um olhar mais atento, que não fique paralisado no primeiro assombro. A atual ostentação de poder e prestígio desta nova “velha elite” é apenas aparente, pois embora tenha atingido a tão sonhada hegemonia, nunca esteve tão exposta em sua fraqueza e decadência, que vão muito além da corrupção já tão evidente.

Por outro lado, em meio aos frutos amargos desta crise, existem muitos, mais do que se pensa, comprometidos com um esforço sério para sanar a loucura que parece ter tomado conta do nosso tempo. “Uma árvore que cai faz muito mais barulho do que a floresta que cresce”. Em algum momento será inevitável o confronto, que romperá, finalmente, o silêncio que paira sob os escombros da desordem. Pode até soar mal em tempos de tanto pacifismo, mas nossa esperança depende da vinda de uma necessária “guerra cultural”, que ponha fim à dominação ideológica e revitalize a nossa democracia.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 20 de fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Ventos do leste: a participação de católicos e ortodoxos na política ucraniana (por Tarcísio Amorim)

Política e Sociologia | 09/04/2015 | | IFE RIO

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Em novembro de 2013, uma crise teve início na Ucrânia quando protestos contra a decisão do presidente Viktor Yanukovych de suspender os planos de um acordo comercial com a União Europeia suscitou uma escalda de acontecimentos que resultou na derrubada do governo. De acordo com o Yanukovych, uma associação com a UE não seria vantajosa visto que a dependência de recursos energéticos dos países do eixo oriental (Rússia, Belarus e Cazaquistão) não seria compensada pelos níveis de exportações para os países ocidentais. Apesar da insistência em reafirmar as bases econômicas da medida, tal evento deflagrou uma série de manifestações nas quais clamores evocando uma identidade europeia evidenciaram que um conflito cultural também estava em jogo.

Com a escalada da violência nos protestos o parlamento votou pela descontinuidade do governo, levando Yanukovych a deixar o país. Tal fato, porém, contribuiu para que uma nova crise se instaurasse em algumas províncias orientais onde a população de fala russa ainda predomina. Após a tomada da Crimeia pelas forças do Kremlin, Donetsk e Luhansk têm estado sobre intervenção do exército ucraniano desde Abril de 2014, quando grupo locais declararam independência à Kiev.

Em meio às disputas étnicas que persistem nos discursos e nas decisões acerca de políticas nacionais, ora enfatizando uma identidade ucraniana com um governo em moldes ocidentais ora uma visão histórica de uma cultura pan-eslávica em linha com o modelo Russo, outro fator tem se mostrado relevante na definição indenitária dos cidadãos ucranianos: a religião. Imagens de sacerdotes intercedendo junto aos protestos, bem como o uso de igrejas como hospitais e ponto de apoio, além de discursos e intervenções de lideranças religiosas desde o início da crise evidenciam a força social que Igrejas e comunidades religiosas tem ajudado a fomentar naquele país. Nesse artigo, procuro demonstrar como ortodoxos e católicos, as duas maiores confissões em número de adeptos no país, tendem a estabelecer padrões de identidade cultural que afetam as relações étnicas nessa república pós-soviética.

 

Raízes históricas do conflito

Em 1991 a Ucrânia tornou-se independente, criando suas próprias instituições políticas, moeda e sistema bancário. Mesmo assim, os longos anos do regime comunista parecem ter influenciado na estruturação de sua economia política já que, com as privatizações altamente restringidas e licenças para a condução de negócios ainda concentradas no corpo executivo, o país construía seu sistema político pautado no verticalismo soviético, criando um aparelho burocrático no qual antigas oligarquias acumulavam poder político e econômico.

Nos primórdios da republica ucraniana, Vyacheslav Chornovil candidatou-se a presidência visando introduzir reformas no sistema político em linha com o projeto de Lech Wałęsa na Polônia. O vendedor, porém, foi Leonid Kravchuk, um ex-membro do Conselho Legislativo da Ucrânia Soviética, que era controlado pelo Partido Comunista. Kravchuk procurou manter o centralismo político com uma constituição que provia fortes poderes ao braço executivo, enquanto estendia sua influência sobre o setor legislativo e judiciário aproveitando-se das brechas e inconsistências que a Carta Magna trazia.

Os poderes presidenciais tornaram-se ainda mais fortes quando, seguindo a vitória de Leonid Kuchma em 1994, uma nova constituição garantiu-lhe o poder de nomear todos os membros do Gabinete executivo, com exceção do primeiro-ministro, e os líderes regionais. Kuchma fora diretor de uma fábrica de misseis no regime soviético e favoreceu os laços com o Kremlin.

Com a consolidação das estruturas verticais do sistema político ucraniano, o país permaneceu por muito tempo sob o controle dos oligarcas que muitas vezes detinham assentos no parlamento e controlavam os partidos políticos. Em meio a escândalos de corrupção, assassinatos de motivação política, e manobras do executivo sobre os outros poderes um novo movimento surgia com força na década de 2000 demandando transparência e democratização das estruturas de poder. Nas eleições presidenciais de 2004 a vitória de Viktor Yanukovych, um candidato pro-Rússia do Partido das Regiões, sob suspeitas de fraude deu início a uma série de protestos liderados por Viktor Yushchenko e Yuliya Tymoshenko, dois líderes favoráveis à reforma política e à aproximação da Ucrânia com a União Europeia. Apelidada de Revolução Laranja, as manifestações contribuíram para que a Suprema Corte anulasse o primeiro resultado e promovesse uma nova disputa eleitoral. Dessa vez, o saldo dava a vitória a Viktor Yushchenko com 52% dos votos, contra 44% de Yanukovych. Pela primeira vez o nome Maidan era usado como símbolo revolucionário a partir de Kiev.

Ainda assim, com as eleições legislativas de 2006, divergências no Parlamento entre o Partido das Regiões e o Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT) levaram a um impasse sobre a possibilidade de obtenção da maioria prevista para que as reformas constitucionais fossem implementadas. Viktor Yanukovych subira ao cargo de primeiro-ministro e os círculos de empresários, liderados por Petro Poroshenko, correligionário de Yushchenko no partido Nossa Ucrânia (e atual presidente do país), demandavam uma aliança com o Partido das Regiões – o que era visto como uma traição dos ideais da revolução pela extrema-direita[i]. Somado a isso, desentendimentos entre Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko ajudaram a dividir ainda mais o Parlamento, acentuando o clima de instabilidade política. Como a constituição ucraniana prevê a possibilidade de novas eleições no caso de um fracasso na formação das coalizões parlamentares, as partes envolvidas concordaram em convocar um novo sufrágio a se realizar em setembro de 2007.

Dessa vez, Yuliya conseguiu fazer Yushchenko concordar com uma “Coalizão Laranja”, dando aos líderes da revolução uma ligeira maioria no Parlamento, com a união do ByuT com o Nossa Ucrânia, reforçada ainda pelo Bloco Lytvyn, de orientação centrista. Tymoshenko, por sua vez, acendia ao cargo de primeiro-ministro, confirmando o governo revolucionário. A aliança ainda era frágil pois ao deixar o Partido das Regiões na oposição os “Laranjas” não conseguiriam obter os 301 votos necessários para emendar a constituição. Em todo caso, ela representou uma vitória temporária da Revolução ao consolidar o domínio do Parlamento combinado com as duas principais posições do executivo.

Tal cenário não se estabeleceu por muito tempo, pois o governo de Yushchenko foi extremamente marcado por intrigas e escândalos de corrupção que acabaram minaram sua base aliada. Em 2010, Viktor Yanukovych derrotou Yuliya Tymoshenko nas eleições presidenciais, restabelecendo os círculos de poder em torno das estruturas oligárquicas estabelecidas e, mais tarde, suspendendo os planos em prol de um tratado comercial com a UE.

Como se percebe, a história política ucraniana tem sido caracterizada por instabilidades na base de poder, propiciada por um sistema constitucional que facilita as ligações entre elites empresárias e o poder público, além das clivagens entre os cidadãos do país, que até recentemente tinham atitudes ambivalentes em relação ao modelo político a ser adotado.

 

Religião e política na Ucrânia

Os ucranianos, assim como os Bielorrussos e por vezes os poloneses, eram chamados de Rutênios até o princípio do século XX. Herdado do mesmo termo que costumava designar as origens comuns dos povos eslavos (“Rus”), este nome fora usado em contraposição a Rossiya, especificamente aplicado aos Russos. Rutênia Vermelha era o antigo nome atribuído à Ucrânia Ocidental, enquanto Rutênia Branca, ou Bielo-Russia, deu origem a Belarus. Após a capitulação dos Mongóis, a Ucrânia ficou sob o domínio da Polônia e da Lituânia e isto contribuiu para que eles desenvolvessem uma cultura própria, marcada por diferenças linguísticas e sensibilidades diversas. De todo modo, compartilhando os mesmos mitos de origem e percebendo-se como herdeiros da mesma linhagem eslava, as fronteiras culturais entre a Ucrânia e a Rússia por muito tempo permaneceram fluidas, enquanto Kiev continuava politicamente atrelado às nações vizinhas até o final da era soviética.

Anne Applebaum sublinha que a religião poderia particularmente ter impactado no fortalecimento das fronteiras entre os dois povos. Como ela reconhece, os Ucranianos do ocidente praticavam uma religião distinta, caracterizada por uma espiritualidade bem especifica que se baseava em ritos orientais mas ainda mantinha laços com Roma[ii]. A Igreja Católica Grega surgiu pela União de Brest em 1596, quando a Ucrânia ainda estava sob o governo polonês, e tais laços dos católicos orientais com o Ocidente devem ser levados em conta na análise das relações étnicas entre ucranianos e russos.

No presente, os ortodoxos do Patriarcado de Kiev constituem cerca de 50,4% da população da Ucrânia, seguido daqueles fiéis ao Patriarcado de Moscou, com 26,1%. Os católicos gregos vêm em seguida com 8%, enquanto outros ortodoxos, católicos latinos, protestantes e judeus compõem 7.2%, 2.2%, 2.2% e 0.6%, respectivamente[iii].

Embora fiéis de outras religiões têm tido uma posição ativa nos recentes eventos que vêm definindo o cenário político na Ucrânia, ortodoxos e católicos somam mais de 90% da população do país e suas tradições históricas marcam a herança nacional de modo particular.

O Patriarcado de Kiev foi formado após um cisma com o Patriarcado de Moscou, seguindo a queda da União Soviética e a independência da Ucrânia. Reivindicando mais autonomia para a Igreja de Kiev, o Patriarca Filaret Denysenko, até então responsável pelo Patriarcado Russo na Ucrânia, afastou-se de seus pares e buscou implantar uma Igreja em linhas nacionais com o apoio do presidente Leonid Kravchuk, acima mencionado. O Patriarcado de Moscou não reconheceu tal separação e a Igreja Ortodoxa Ucraniana é até hoje considerada um órgão autocéfalo e ilegítimo de acordo com o direito canônico da Comunhão Ortodoxa.

Por sua vez, a presença dos católicos gregos, especialmente na Ucrânia ocidental, tem sido de maior importância para o entendimento de padrões sociais de comportamento político no país. Durante o período comunista, a Igreja Greco-Católica foi proibida nos territórios da URSS, enquanto seus membros eram perseguidos pelos líderes soviéticos. Após a Guerra Fria, a Igreja católica na Ucrânia experenciou um reavivamento religioso, que vai bem além do aspecto meramente espiritual. Agindo como um centro de disseminação intelectual em associação com instituições europeias nos arredores de Lviv, seu clero teve uma especial participação nos protestos que marcaram a Revolução Laranja, bem como da recente comoção chamada de “Revolução Euromaidan”. Como pontuou o Arcebispo Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica ucraniana, seus proponentes não eram “nacionalistas radicais” mas sim defensores de uma Ucrânia “livre, democrática e Europeia”[iv].

É importante sublinhar que os conflitos entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana e o Patriarcado de Moscou tem sido um fator decisivo na aliança da primeira com a Igreja Greco-Católica no que diz respeito à promoção dos valores nacionais contra a influência do Kremlin. Com efeito, o clero de Kiev tem rejeitado o conceito de “Russkiy Mir” (Mundo Russo), avançado pela Igreja de Moscou como uma visão teológica de um universalismo eclesiástico centrado no mito de uma civilização eslava sob a liderança da Rússia, da qual Ucrânia e Belarus seriam parte. Contra essa ideia, a Igreja de Kiev vem favorecendo uma concepção de cultura encarnada, na qual a imersão nas línguas e costumes locais são elementos essenciais do desenvolvimento da santidade. Como expressa o teólogo ortodoxo Dr. J. Buciora: embora a realidade contextual dos santos são sempre apresentadas em um prisma de transfiguração, esta “pressupõe sofrimentos, dores, lutas, e imagens de uma situação particular”[v]. É neste sentido que a vida dos santos Ucranianos torna-se inspiração para os féis e veículo de transformação.

De modo semelhante, a identificação dos greco-católicos com o legado da Igreja de Kiev propicia uma teologia enraizada nas tradições ucranianas e na experiência do passado. De acordo com o Bispo Borys Gudziak, antigo reitor da Universidade Católica de Lviv (a qual os ucranianos costumam referir-se como a única Universidade Católica do antigo mundo soviético), o objetivo da instituição é construir uma “nova síntese social, intelectual e teológica” do legado dos mártires ucranianos – o que John L. Allen classificou como uma teologia “nascida das catacumbas”[vi].

Embora, como veremos, os ortodoxos ficaram divididos com relação a um projeto político social nos primeiros anos da República, as tendências autônomas do Patriarcado de Kiev, especialmente na atual conjuntura política nacional, tem contribuído para unir Católicos e Ortodoxos na luta pela democracia. Como afirmou o Reverendo Cyril Hovorum, antigo responsável pelo Departamento de Relações Externas na Igreja Ortodoxa Ucraniana:

“Maidan, além de um importante evento civil, parece ter sido um importante evento religioso… Havia orações senso executadas todos dias de manhã e de noite. Foi um fenômeno religioso além de ter sido um fenômeno político e social, e também foi um evento ecumênico porque a revolução Maidan realmente uniu muitas Igrejas, muitos líderes que antes nunca tinham se comunicado uns com os outros”[vii].

 

O voto católico e ortodoxo nas eleições parlamentares de 2007

Dito isto, é valido analisar como Católicos e Ortodoxos tem se comportado politicamente com relação às disputas entre as coalisões pró-europeias e pro-russas. Como as informações sobre o atual cenário sócio-político ainda são escassas no país, tomo como ponto de referência os dados sobre votos para a coalizão laranja (liderada por Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko) e azul (liderada por Viktor Yanukovych pelo Partido das Regiões). Minha fonte é a pesquisa publicada pela Associação de Dados Arquivísticos de Religião, sob título de “International Social Survey Programme 2008: Religion III”[viii].

Tendo em conta os dados apresentados, eu combinei a variável relacionada à confissão religiosa e produzi dummies, isto é, novas variáveis na qual o valor 0 corresponde a um não-seguidor e 1 representa um seguidor. O mesmo foi feito com relação aos votos para a coalizão laranja e azul, com 0 para “não votou” e 1 para “votou”[ix]. A partir dos resultados obtidos pelos cálculos de software, eu executei uma regressão logística[x] para calcular a probabilidade estatística de um voto católico ou ortodoxo para as duas coalizões, que eu chamei pró-europeia (Pro-EUR) e pro-russa (Pro-RUS).

Como se observa, enquanto os votos de ortodoxos dão resultados próximos a 50% para cada coalizão, sem atingir o requisito mínimo de 95% de significância estatística[xi], os católicos favorecem massivamente os partidos associados à coalizão laranja, embora figurem em menor número na pesquisa (137 para 1270).

 

Regressão: Católico (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Católico              2.717***

(0.435)

Constante          -0.449***

(0.071)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.3896937

P[y=1|x=1] = 0.9062514[xii]

 

Por essa amostra, percebe-se a probabilidade de um voto pro-EUR sobe de aproximadamente 39% para 90% para o caso de o indivíduo ser católico. Este resultado é estatisticamente significante ao nível de 99% (p < 0.01).

Para ortodoxos, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Ortodoxo           0.08487

(0.140)

Constante         -0.35004***

(0.112)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.41337

P[y=1|x=1] = 0.43409[xiii]

 

Como se percebe, a probabilidade de um voto pro-EUR para ortodoxos é de 43%, e sobe apenas 2 pontos com relação a um voto de um não ortodoxo. Como se tratam de dummies e não há outras variáveis, o resultado para votos Pro-RUS é o inverso: aproximadamente 58% para não ortodoxos e 56% para ortodoxos.  De todo modo, como não há indicador de significância para a variável ortodoxo, isso quer dizer que a análise não atingiu o mínimo de 95% requerido, o que implica que a pesquisa não encontrou um padrão significativo no voto ortodoxo, impossibilitando uma apreciação acurada da margem de erro.

De todo modo, como religião é uma categoria que se sobrepõe a outros elementos a influenciar no resultado, pode-se adicionar variáveis de controle[xiv], visando um cálculo mais preciso do impacto da religião para o voto por meio da exclusão de outras variáveis. Uma delas é a região, pois se sabe que os ucranianos na parte ocidental do país tendem a votar em partidos ligados à UE, enquanto no Oriente os laços com o vizinho oriental são mais fortes, dada a concentração de cidadãos de fala russa naquelas regiões. Outra variável a ser controlada, é a visão política (esquerda ou direita), pois ao isolarmos seu efeito, pode-se verificar se a preferência partidária teve um papel fundamental no resultado ou se a religião é mesmo o principal fator a influenciar o voto. Por último, a renda pode ter um papel decisivo, pois sabe-se que o sistema oligárquico produzido pelas estruturas políticas ucranianas favorece as elites ligadas ao governo Russo. Como para todas as outras categorias, eu converti esse elemento em uma variável dummy, na qual cidadãos ganhando mais de 3200 UAH figuram como 1, e os outros como 0.

Para votos Pro-EUR, eu controlei para regiões de fala ucraniana (ocidente) e visão política de direita, enquanto para votos Pro-Russia eu controlei para regiões de fala Russa (oriente) e posicionamento de esquerda, visto que a maioria dos partidos da coalizão azul endossam uma identidade comunista e soviética. Com esse procedimento, obtemos o seguinte quadro:

 

Regressão: Católico (X=1) – Voto EUR (Y=1) + controles

=============================================

Católico              1.556***

(0.511)

Ocidente             2.376***

(0.182)

Direita                15.065

(538.018)

Renda 1              -0.507

(0.754)

Constante          -1.477***

(0.126)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -377.739

Akaike Inf. Crit.           765.477

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.4107

P[y=1|x=1] = 0.7675[xv]

 

Como vemos, mesmo depois de controlar para região, visão política e renda, a probabilidade de um voto católico para a aliança laranja é de aproximadamente 77%, mais de 35% de diferença para não católicos (41,07%), e o resultado ainda é significativo a 99%.

Para ortodoxos e voto pro-Rússia, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (X=1) – Voto pro-RUS (Y=1)  + controles

=============================================

Ortodoxo            0.269

(0.197)

Oriente               2.383***

(0.189)

Esquerda           17.171

(443.815)

Renda 1             0.415

(0.759)

Constante         -18.181

(443.816)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -358.342

Akaike Inf. Crit.          726.684

=============================================

Note:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.1521

P[y=1|x=1] = 0.190149[xvi]

 

A probabilidade de um voto ortodoxo para um partido pro-Rússia sobe de aproximadamente 15% para 19% em relação a não ortodoxos, quando executamos o teste com as variáveis de controle. Há um decréscimo de aproximadamente 25% com relação à probabilidade de um voto Pro-RUS para ortodoxos quando não se controla para as outras variáveis (de 56,59% para 19%). Para católicos, o decréscimo é de aproximadamente 14% (de 90,62% para 76,75%), o que indica que a religião tem maior impacto no voto para católicos que para ortodoxos. Isso se percebe também pelo fato de que a região e outras variáveis têm maior peso na escolha de um partido pro-RUS, o que pode ser verificado pelo nível de significância de Oriente (99%) nessa regressão, sendo os outros elementos estatisticamente insignificantes.

Ainda assim, é possível perceber que a renda 1 (acima de 3200 UAH) influi positivamente para o voto pro-RUS e negativamente para o voto pro-EUR. O posicionamento político, por sua vez, é praticamente insignificante, dado o alto valor do erro padrão nas duas amostras (538.018 e 443.815), o que impossibilita uma generalização precisa a partir das respostas à pesquisa.

Considerações finais

A partir dessa análise, pode-se concluir que os católicos tenderam a votar massivamente para os partidos da aliança laranja nas eleições de 2007. Para os ortodoxos, porém, o teste mostra resultados ambivalentes, o que pode estar relacionado à própria indefinição cultural na qual a Ucrânia se insere, estando na fronteira entre a Europa e o mundo Russo. As variações na escolha do voto para os cidadãos ucranianos converge com a política de neutralidade endossada pelo clero da Igreja de Kiev nos anos que antecederam a revolução Maidan. Apoiada pela classe política ucraniana na época em que ainda era próxima aos aliados do Oriente, ela permaneceu distante da Europa, ainda que separada da Rússia. Os greco-católicos, pelo contrário, tendo construído sua identidade sobre os laços culturais com a Polônia e a Lituânia, o que também lhe valeu a perseguição sofrida durante o período soviético, vem sendo bem mais assertivos em seu posicionamento político. Como reconheceu o Reverendo Cyril Hovorun: “os greco-católicos, ou Católicos de rito Oriental leais a Roma, foram os que primeira e mais ativamente apoiaram os protestos”[xvii].

Em termos gerais, isso significa que os católicos na Ucrânia, ainda que constituindo uma minoria, têm demostrado um claro comprometimento com uma concepção democrata e cristã de governo, assinalando o impacto dos valores articulados pelas visões religiosas na percepção identitária e na escolha individual –  que adquire claramente um caráter comunitário. Por outro lado, os ortodoxos mostraram mais moderação em suas visões políticas, refletindo as condições culturais da sociedade ucraniana como um ponto de equilíbrio entre o Oriente e o Ocidente.

Apesar disso, a recente tomada da Crimeia e a atual crise no leste da Ucrânia são fatores que tendem a mudar esse cenário, já que a escalada da violência tem levado cada vez mais o clero ortodoxo e membros de outras religiões a apoiarem o movimento de democratização em termos patrióticos. Ademais, a interferência do Patriarcado de Moscou, com suas declarações contra o novo governo ucraniano e seus aliados, incluindo os Greco-Católicos e os Ortodoxos de Kiev, mais do que nunca tem sido interpretado no país como uma tentativa de deslegitimar não somente a autonomia e especificidade da Igreja de Kiev, mas também a soberania política do país, com uma visão pan-eslávica fundada no universalismo russo. Como Andrew Sorokowski sublinha:

Para Moscou, a própria ideia de uma Ucrânia é uma traição da unidade eslava oriental, enquanto a união que resultou na Igreja Greco-Católica é uma traição da solidariedade ortodoxa. A premissa de fundo é que Moscou é o árbitro e garantidor de ambas – como a capital tanto de uma única Igreja Russa como de um único “Mundo Russo”.

A Ucrânia, e sua Igreja Greco-Católica, desafia essa concepção. A Ucrânia como nação pressupõe o pluralismo étnico, cultural e nacional, em um mundo onde a unidade é fortalecida, não ameaçada, pela diversidade[xviii].                

Em meio aos protestos do Patriarca de Kiev[xix] contra o apoio do clero russo aos rebeldes no leste, e dada a queda substancial no suporte à liderança do Kremlin após sua intervenção militar no país[xx], é possível prever que o particularismo eclesiástico da Ucrânia deverá se desenvolver de modo a fortalecer seu ideário nacional, unindo católicos e ortodoxos e fazendo jus aos tradicionais laços entre religião e sociedade nesse país. Para as nações ocidentais, a visão dessa aliança pode servir de inspiração para lembrar aos europeus que o vigor da crença pode dar um novo alento à democracia, a fim de que não se perca na frieza de um legalismo burocrático desvinculado de suas raízes.

 

[i] Pawel Wolowski. Ukrainian politics after the Orange Revolution – how far from democratic consolidation? In: Sabine Fischer (ed.) Ukraine: quo vadis?. Chaillot Paper, n. 108. Feb, 2008. Disponível em: <http://www.iss.europa.eu/uploads/media/cp108.pdf>.

[ii] Anne Applebaum. Between East and West. Pan Macmillan Australia Pty,  1995.

[iii] Cf. http://www.scu.edu/ethics-center/world-affairs/politics/By_Countries_Regions/Ukraine.cfm

[iv] John L. Allen Jr. A Church with verve is at risk in Ukraine. Crux, 13 Sep, 2014. Disponível em: <http://www.cruxnow.com/church/2014/09/13/a-church-with-verve-is-at-risk-in-ukraine/>.

[v] Fr. Dr. J. Buciora. The Moscow Patriarchate’s Utopian Vision Of Russian Civilization. Risu, 2011. Disponível em:http://risu.org.ua/en/index/studios/studies_of_religions/41614/.

[vi] John L. Allen Jr. For the future of new evangelization, look to Ukraine. NCR online, 22 Oct. 2012. Disponível em:  <http://ncronline.org/blogs/ncr-today/future-new-evangelization-look-ukraine>.

[vii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>

[viii] International Social Survey Programme 2008: Religion III. Association of Religion Data Archives. Dados disponíveis em: <http://www.thearda.com/Archive/Files/Descriptions/ISSP08.asp>. Todos os dados quantitativos presentes neste artigo resultam da manipulação das variáveis e da tabulação feita pelo autor, a partir do banco de dados original, por meio do uso do Software “R”.

[ix] Eu classifiquei os votos em Pro-EUR (Europa) e Pro-RUS (Russia), a partir das respostas fornecidas pelos entrevistados acerca de seu voto nas eleições parlamentares de 2007, tendo em conta os partidos mencionados na pesquisa, a saber: Pro-EUR [Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT)/União Toda Ucrânia Terra Pátria, Nossa Ucrânia/Defesa Popular/Movimento dos Povos da Ucrânia, Bloco Lytvyn/Partido Popular, União Toda Ucrânia pela Liberdade]; Pro-Rússia [Partido das Regiões, Partido Comunista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, Partido Socialista Progressista da Ucrânia].

[x] Regressões são utilizadas em análises estatísticas quando se quer identificar uma função que possibilite ao pesquisador encontrar o resultado de uma variável dependente (Y), dado o valor/posição da variável independente (X) em um gráfico. Uma linha de regressão pode ser estabelecida no mesmo gráfico a partir da média dos resultados em Y dado os valores de X. Geralmente essa função é descrita como Y = β0 + β1X, em que β0 é o ponto onde Y intercepta X (constante) e β1 é a proporção na qual Y varia em função de X. Quando a variável dependente (Y) tem um valor binário (com os resultados variando somente entre 0 e 1), utilizamos a regressão logística (log), pois como não existem valores intermediários, a linha de regressão só pode representar a probabilidade de um resultado 0 e 1. A fórmula para este tipo de caso é P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*)), em que Y* é o valor de Y em uma regressão comum (Y = β0 + β1X).

[xi] Em análises estatísticas, o valor p determina o grau de significância para a amostra, a partir de um cálculo que indica se os padrões encontrados são realmente representativos da população em geral ou se os resultados são devido ao acaso. Em ciências sociais, 95% (p < 0.05) é o valor comumente aceito para se determinar a significância de uma análise. Em termos gerais, ele indica que caso a pesquisa fosse repetida infinitas vezes, em 95% dos casos o mesmo resultado seria encontrado.

[xii]   y* = -0.4486 + 2.7173X

y* [y=1|x=0] =  -0.4486

y* [y=1|x=1] = 2.2687

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (4486*))

P[y=1|x=0] = 0.3896937

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-2.2687*))

P[y=1|x=1] = 0.9062514

 

[xiii]   y* =  -0.35004 + 0.08487X

y* [y=1|x=0] =  -0.35004

y* [y=1|x=1] = -0.26517

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.35004))

P[y=1|x=0] = 0.41337

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (0.26517))

P[y=1|x=1] = 0.43409

 

[xiv] Variáveis de controle são utilizadas em regressões quando outros elementos, que não a principal variável independente, podem impactar no resultado da variável dependente, dificultando uma análise precisa da influência de cada um desses elementos, pois aparecem muitas vezes sobrepostos à principal variável independente. Por exemplo, ao se analisar o impacto da aquisição de um grau universitário para o valor do salário, o pesquisador pode ter que controlar para outras variáveis como “pro-ativismo”, pois esse elemento pode influir tanto na aquisição do grau quanto no desempenho laboral, que por sua vez impacta no salário. A fórmula para regressões com variáveis de controle é: Y =  β0 + β1X + β2A + β3B + … … BnZ. Em regressão logística: Y =  β0 + β1X + β2(meanA) + β3(meanB) + … … Bn(meanZn), em que mean é o termo usado para “média”, ou seja, o valor médio de uma variável em uma dada amostra (no caso de dummies, algo entre 0 e 1).

[xv]   y* = -1.4767 + 1.5557X + 2.3757*0.4621 + 15.0655*0.02079002 – 0.5068*0,5825

y* = -0.360888 + 1.5557X

 

y* [y=1|x=0] =  -0.360888

y* [y=1|x=1] = 1.1948

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.360888*))

P[y=1|x=0] = 0.4107

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-1.1948*))

P[y=1|x=1] = 0.7675

 

[xvi]  y* = -18.1808 + 0.2690X + 2.3832*0.5378193 + 17.1705*0.8700624 + 0.4148*0,5825

y* = -1.718042 + 0.2690X

 

y* [y=1|x=0] =  -1.718042

y* [y=1|x=1] = -1.449042

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (1.718042*))

P[y=1|x=0] = 0.1521

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (1.449042*))

P[y=1|x=1] = 0.190149

 

[xvii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>.

[xviii] Sorokowski,  Andrew. Russia and the Uniates. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/expert_thought/authors_columns/asorokowski_column/57958/>.

[xix] Em junho de 2014, o Patriarca Filaret enviou uma carta ao Patrirca Kirill em Moscou, em nome da Igreja Ortodoxa Ucraniana, na qual urgia o mesmo a conversar com Vladimir Putin pedindo a este para interromper a intervenção militar em terras ucranianas. Filaret criticou veementemente o Patriarca de Moscou por não reconhecer a soberania da Ucrânia e apoiar a política russa em nome da concepção de Mundo Russo (Russky Mir). Ver Filaret. Letter to Patriarch Kirill of Moscow. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/all_news/community/religion_and_policy/56778/>.

[xx] Dados da organização Gallup mostram uma queda de cerca de 90% no apoio à uma concepção russa de governo para antes e depois da crise, com um maior impacto nas regiões do leste da Ucrânia. Ver Julie Ray and Neli Esipova,Ukrainian Approval of Russia’s Leadership Dives Almost 90%. Gallup 2014. Disponível em: <http://www.gallup.com/poll/180110/ukrainian-approval-russia-leadership-dives-almost.aspx>.

 

Tarcísio Amorim é Doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Texto publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta em 01/04/2015.  Disponível no link: http://www.dicta.com.br/ventos-do-leste-a-participacao-de-catolicos-e-ortodoxos-na-politica-ucraniana/

“Cool evil”: O mal bacana (por Bruce Frohnen)*

Filosofia | 03/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Evidentemente que Bruce Frohnen escreve sobretudo para americanos. Contudo, seu ensaio revela elementos que estão além da cultura americana, podendo ser encontrados na cultura européia dos dias de hoje e na nossa, brasileira. É o que ele chama de “cool evil”, algo como “mal bacana” ou “mal legal”, no sentido de o mal não ser tomado como mal, mas como algo bacana, interessante. Contudo, para o autor, esse “cool evil” dos dias de hoje só leva a degradação pública e privada. Abaixo, segue seu artigo traduzido.

***

“Cool evil”: O mal bacana

por Bruce Frohnen

Ouvi dizer que no mundo do wrestling profissional [N.T.: arte marcial popular nos EUA], os vilões populares são conhecidos como “calcanhares bacanas”. O wrestling profissional dificilmente encontra-se na fronteira da teoria moral ou das tendências da cultura popular. Mas a inclusão de caras maus como “bacanas/legais” em seu código moral violento é uma indicação, acredito, de quão longe chegamos na estrada que leva ao niilismo cultural. Cada vez mais os filmes e programas de televisão, sem mencionar os rappers e esportistas, parecem dispostos a lucrar com o “mau bacana”. Cada vez mais os americanos estão comprando a idéia de um niilismo pré-embalado, aparentemente revelando o sentimento de superioridade que se pode ganhar da ilusão de estar acima do bem e do mal.

Não quero dizer com isso que o vilão atraente é uma novidade. A literatura clássica está repleta de vilões que amamos ver em ação nos livros. Os atores dizem que o melhor papel em qualquer produção é o do violão, não o papel do herói adocicado. Também não quero dar a entender que os vilões, até nas décadas recentes, tem sido pouco atrativos, ou até mesmo relegados a papéis coadjuvantes. Os filmes das décadas de 60 e 70 estão cheios de anti-heróis, e os baby boomers [N.T.: geração do que nasceram na década de 50 e 60] procuravam esses filmes como cães selvagens.

Mas parece que as últimas décadas produziram uma proporção de vilões “bacanas” acima do padrão, que um número cada vez maior de filmes – e especialmente séries da TV a cabo – apresenta o mal implacável como normal e sexy, e que a tendência ao código de rua entre as pessoas famosas serviu para borrar os limites morais da grande audiência.

Quando  pediram a Ian Richardson que voltasse a fazer o papel do anti-Herói Francis Urquhart no drama cínico-policial inglês “House of Cards”, conta-se que ele recusou a proposta até chegar ao acordo de que o personagem seria assassinado. Richardson demonstrou suficiente senso moral para reconhecer que seu personagem, ainda que para ele fosse delicioso estar no seu papel, simplesmente fazia o mau parecer excessivamente atraente.  Isso se deve em parte por causa do modo como os outros personagens são caracterizados, mas nada disso é então novidade, antes é o antigo dito popular “o demônio é um homem sedutor”. A atratividade do mal também vem da crescente medida para a qual ele parece ser útil [1] na ficção contemporânea. Cada vez mais, os vilões não recebem o troco no final pelas suas más ações. A justiça poética nos roteiros, palcos e telas é agora vista como irrealista e até infantil. Em outros tempos, logicamente, isso era visto como absolutamente necessário para a preservação do senso moral da audiência, e as pessoas tinham de fato suficiente senso moral para reivindicar isso.

Infelizmente, esse senso moral parece ter morrido. Já não se percebe claramente o senso moral nas atuações de Kevin Spacey, que faz o papel do anti-herói na adaptação americana de “House of Cards” com uma satisfação malévola, e que fez carreira fazendo papéis de vilões inspiradores de alguma forma de admiração, sendo que os poucos heróis de sua carreira (como no filme “Pay it Forward” [N.R.: no Brasil, “A Corrente do Bem”]) são figuras simplórias.

Depois há a série “fantasia” “Game of Thrones”. Nesse carnaval de implacável degradação, adaptada da série igualmente repreensível de George R.R. Martin, o espectador é “tratado” com cenas de tortura, violência sexual e depravação agressiva que forma o núcleo de uma série centrada na obsessão por poder em um universo de estilo medieval.[2]

É fácil levantar uma série de causas para essa recente explosão do “mal bacana”. O declínio dos padrões morais na grande mídia, seguida da difusão da TV a cabo, associada à sua total falta de auto-regulação[3], e a competição para fazer chocar mais os espectadores para aumentar a audiência, fez da tortura coisa normal das noites de TV em casa (em programas como “Lost” e “24” [N.R.: no Brasil, “24 Horas”]) alguns anos atrás. Antes disso, a tendência entre os rappers de reproduzir o código de rua, tão bem parodiado por Chris Rock no filme “CB4”, foi amplamente difundida e por sua vez alimentou uma cultura de violência já infelizmente muito difundida nas nossas áreas urbanas. A violência rural, evidentemente, há muito é apresentada pela grande mídia, mas geralmente com a intenção clara de provocar repulsa pelo racismo e violência doméstica. Mesmo assim esses retratos perderam sua força depois que filmes ambientados em pequenas cidades (“Sons of Anarchy”, [N.R.: no Brasil, “Filhos da Anarquia”]), nos subúrbios (“Breaking Bad”, [N.R.: no Brasil, “Ruptura Total” ou “Breaking Bad: A Química do Mal”]) e mesmo no velho oeste (“Deadwood”) buscaram uma abordagem realista baseada em sangue jorrando por tudo para mostrar quão sofisticados se tornaram tanto produtores como espectadores.

Esse último desdobramento poderia ter sido previsto como uma extensão inevitável da desmoralização gradual do entretenimento. Nós passamos de “Leave it to Beaver” [da série “Veronica Mars: A Jovem Espiã”[4], com suas falsas imagens de felicidade suburbana, para comédias sexuais infantilóides como “Three’s Company” [N.R.: no Brasil, “Um é Pouco, Dois é Bom e Três é Demais”], com sua continuação previsível, “Three’s a Crowd”, uma sequência que teve pouca audiência sobre um casal em coabitação que compartilhava os aposentos com o pai da mulher. A moralidade sexual logo se tornou ultrapassada, mesmo com as críticas um tanto quanto moralistas que os grupos de pais e educadores dirigiram à violência veiculada tanto nas telas de cinema como na TV. É claro que agora o movimento do anti-herói no cinema tem sido um movimento de massas há décadas, embora talvez melhor resumido no herói de “Midnight Cowboy” [N.R.: no Brasil “Perdidos na noite”], um caipira mentecapto cujo objetivo de vida era se tornar um prostituto.

Libertinos sexuais sempre insistiram que sua forma de libertinagem traria paz e amor. Mas isso não ocorre; ao contrário, abre espaço para mais estrago em um mundo cada vez mais desordenado. A “liberação” sexual da onda [do momento] andava de mão dadas com a crescente marginalização, por parte dos meios de comunicação, de temas e figuras religiosos, assim como da moralidade. “M*A*S*H” pode ter retratado seu capelão militar como alguém ineficaz, mas o programa televisivo pelo menos reconhecia a sua existência – algo quase desconhecido dos dias de hoje.

Para onde tudo isso nos leva? Certamente não para além do bem e do mal. Antes, deixa muitas pessoas ao nosso redor enamoradas pelo mal. Isso não significa que qualquer um que veja “Breaking Bad” vá imediatamente considerar a vida de um traficante de drogas como uma forma legítima de pagar um bom tratamento médico.  Mas o “mal bacana” é uma parte ativa da degradação contínua do espaço público, que está longe de ser irrelevante para nossa vida privada e pessoal.

O moderno pensador político de Florença, Nicolau Maquiavel, foi reconhecido como o pregador do mal por ter defendido a necessidade de um príncipe que fizesse o trabalho sujo necessário para reunificar a Itália contra os bárbaros. É muito comum entre os entendidos em política de hoje dizerem que a má fama sobre Maquiavel é mera hipocrisia, já que todos na política agem como Maquiavel disse que agiriam, embora queiram parecer virtuosos. Não somente essa suposta “análise sofisticada” é factualmente incorreta – muitos homens de vida pública sacrificam seus gostos pessoais pelo bem comum e o fazem com a intenção de praticar e dar o exemplo da virtude –, mas é também perversa. O cinismo que diz “todos fazem isso” leva à auto-indulgência do vício. Nenhum filme, série de TV, ou qualquer outra forma de entretenimento pode criar uma cultura de vícios. Mas o flerte complacente e frequente com o mal pode, de fato, tornar o mal algo “bacana” na mente do grande público. O resultado será o agravamento da deterioração de uma moralidade pública já bastante debilitada.

Bruce Frohnen é contribuinte sênior no jornal on-line The Imaginative Conservative, é professor de Direito na Ohio Northern University College of Law e autor dos livros Virtue and the Promise of Conservatism: The Legacy of Burke and Tocqueville e The New Communitarians and The Crisis of Modern Liberalism e editor (junto com George Carey) do livro Community and Tradition: Conservative Perspectives on the American Experience.

Artigo publicado originalmente em 19 de setembro de 2014 no journal on-line The Imaginative Conservative, link:
http://www.theimaginativeconservative.org/2014/09/cool-evil.html.
Permissão da tradução e publicação em português neste site dada por Stephen M. Klugewicz, Ph.D., editor do journal. Para saber mais sobre este jornal, clique em The Imaginative Conservative.

Imagem extraída da publicação original, neste link.

Tradução: Marco Antonio.

Revisão e edição da tradução: João Toniolo.

 

NOTAS DA REVISÃO E EDIÇÃO DA TRADUÇÃO:

* As Notas do Tradutor estão indicadas com “N.T.” e as do revisor e editor da tradução como “N.R.” (ou numeradas).

[1] N.R.: A frase no original inglês aqui é “The attractiveness of evil also comes from the increasing extent to which it seems to ‘pay’ in contemporary fiction”. “Pay” tem o sentido de pagar, mas também de “ser útil”, entre outros. Parece que o autor joga com a multiplicidade de sentidos que esta palavra tem, pelo fato da cultura do “mal bacana” gerar dinheiro e ao mesmo tempo ser útil para o fim de ganhar dinheiro.

[2] N.R.: Como se na época medieval as coisas fossem somente assim como a série trata. A esse respeito, cf. os livros de Régine Pernoud, O Mito da Idade Média e Luzes Sobre a Idade Média.

[3] N.R.: Note que o autor fala em “auto-regulação”, que é diferente de regulação total da mídia pelo Estado.

[4] N.R.: “Leave it to Beaver” é 22º e último episódio da primeira temporada de “Veronica Mars: A Jovem Espiã”.

The end of the modern world (resenha)

Sem Categoria | 03/12/2014 | |

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Sem título

 

 

The End of The Modern World

Intercollegiate Studies Institute (ISI Books), New York, 2008, 220 págs., US$ 13,62

Translated from the original “Das Ende der Neuzeit. Ein Versuch zur Orientierung” by Joseph Theman and Herbert Burke

 

 

 

Esta nova edição da famosa obra de Guardini, datada de 1956, O fim do mundo moderno (1956), é, na verdade, a soma de dois livros em um. A primeira parte, intitulada A procura por orientação, é uma vasta apreciação da história da cultura, concretamente, do Cristianismo, trazida para a realidade de nossos dias, terminando com uma densa questão sobre nosso futuro. A segunda parte, subintitulada Poder e Responsabilidade, começa por sugerir uma resposta a esta questão, delineando um esboço rudimentar do que “o novo arquiteto humano” do (nosso) novo mundo deve parecer.

Muito da análise de Guardini, agora com quase sessenta anos de idade, é profética. Nós agora estamos numa posição histórica de decidir se as esperanças por ele expressadas têm algum potencial para serem realizadas em nossos dias e se o seu novo homem pode ser encontrado em algum lugar.

Na primeira parte, Guardini dá uma análise teológica do suceder das culturas desde a Idade Média até os Tempos Modernos, tendo a Idade Média como um cume.  A questão central de cada época é a questão central frente ao indivíduo: é aquela de proferida por Cristo, “Quem vós dizeis que eu sou?”. A questão é tão antiga quanto o próprio homem ou quanto a escolha catastrófica de Adão e Eva, os quais, movendo seus olhos para longe de Deus e para dentro deles mesmos, procuraram ser iguais a Ele.

A Idade Média foi caracterizada por um movimento cultural próprio, longe da visão de mundo clássica (inerente aos gregos) e radicalmente voltada para uma visão centrada na fé: “Nesta fé, o mundo nasceu de novo, mas não nasceu da mitologia nem da filosofia. Os vínculos míticos que ligavam o homem ao universo foram destruídos. Na história, raiou uma nova liberdade para o espírito humano.

Desvinculado agora do mundo, o homem estaria apto, pela primeira vez, a encarar todas as coisas a partir de uma nova perspectiva, de um ponto privilegiado que não dependia nem da superioridade intelectual nem da cultura. Assim, estava forjada uma transfiguração do ser totalmente impossível para o velho mundo pagão.”.

Assim, a Idade Média, diferenciada de uma cultura clássica que era definitivamente incapaz de transcendência (no sentido cristão da palavra), foi um ponto alto da história. Guardini discute este ápice do Cristianismo em termos de várias sínteses que compilam este tempo irrepetível. A Suma de Teologia, de São Tomás de Aquino, foi um exemplo notável entre aquelas várias sínteses, mas não foi a única.

O período posterior que Guardini delineia é separado da cultura medieval por uma extensa fissura. Com o século XIV, uma perceptível Sturm und Drang (do alemão, chuvas e trovões, uma forte turbulência existencial, no sentido proposto pelo autor) entra em cena. Guardini assinala um certo “anseio germânico em abarcar a totalidade do ser”, o qual ele então identifica com o “dirigir-se para a transcendência” que veio a ser historicamente associado a Göethe.

Segundo a visão de Guardini, Göethe personifica o movimento do Romantismo, cuja primeira característica é uma mudança de foco: o homem, não Deus, é agora o centro da cultura. O Zeitgeist – ou espírito do tempo – do Romantismo equivale a nada mais do que o desejo humano primordial de onipotência divina: é um prelúdio para um Götterdämmerung ou crepúsculo.

“Para o novo homem da Idade Moderna, as insuspeitadas regiões deste mundo seriam um desafio a ser encontrado e conquistado. Dentro de si, ele ouvia o chamado à aventura sobre o que parecia uma terra sem fim, para tornar-se o seu dono. Mas o diabo tem suas regras e, como um Prometeu, faz o homem perder seu lugar na ordem criacional: “Angústia, violência, ganância, rebelião contra a ordem – mais imperiosos do que nunca – estes primitivos impulsos incitaram a alma humana…”.

Começamos a encontrar de frente todas estas familiaríssimas feições do nosso próprio tempo e suas raízes se inserem na história (de certa forma) recente: a era moderna (com nossa era pós-moderna) não foi nem a era de Deus nem a do homem, mas da máquina. Guardini nota que o referente à pessoa é um dom que o homem descobre quando ele se antepõe a Deus; nosso desenvolvimento longe de Deus tem dado lugar ao homem moderno, que não é humano, e à uma natureza moderna, que não é natural.

Alienação e ansiedade existencial (angústia niilista) marcaram a visão de mundo da primeira metade do Século XX, ao menos tão longe quanto a inteligência podia conceber. E, na análise de Guardini, o mais horrendo cume destas forças culturais (e psicológicas) foi a Segunda Grande Guerra Mundial. A história tem mostrado que o profundo sentido do homem (e de sua própria humanidade) deteriorou-se e o homem moderno está suscetível à escravização do poder bem mais do que os seus ancestrais. O homem está incapaz de dar conta de seu próprio progresso e ele é agora estranho a si mesmo, exatamente como a criação que ele habita não mais harmoniza com ele. O que – se algo – podemos fazer?

A resposta a esta questão, ou melhor, abordagem de Guardini para uma resposta preliminar, vem na segunda metade do trabalho aqui resenhado. Ele observa que nossos espíritos estão doentes e que nosso mal é um mal religioso. Mas ele diz: “Exatamente neste ponto, a esperança emerge, a qual não pode ser facilmente definida. Pois, numa coisa sua forma é puramente religiosa: ela expressa que Deus é maior do que todos os processos históricos; que estão em Suas Mãos, portanto em Sua Graça…”.

Guardini então postula que uma verdadeira metanóia (conversão) é obrigatória. Mas deve ser uma conversão apropriada à situação na qual nos encontramos. “O que, então, deve parecer, o novo arquiteto humano deste mundo emergente?”. “(Ele) terá que redescobrir que o poder está no autocontrole; que o sofrimento aceito interiormente transforma o sofrimento; e todo aquele crescimento existencial depende do sacrifício livremente oferecido.”.

A mais descritiva é, talvez, a seguinte passagem: “O novo homem estaria apto para ver através das ilusões que imperam no meio científico e no desenvolvimento tecnológico: a decepção por trás da idolatria da cultura “liberal”, por trás das utopias totalitárias, do pessimismo tragicista; por trás do misticismo moderno e do mundo hermafrodita da psicanálise. Ele verá e saberá por si mesmo (que) a realidade não é tão simples assim!”.

Guardini prescreve para o nosso mal (pós) moderno a única verdade e a derradeira cura que o espírito pode experimentar, seja ele o espírito do homem ou o espírito da era. Ele chama por um retorno a Cristo em profunda humildade e fé, ainda que nós carreguemos conosco a pesada bagagem de nosso passado cultural. Guardini finalmente nos implora a responder à questão de Nosso Senhor (“Quem vós dizeis que eu sou?”) com a réplica de São Pedro: “Tu és O Cristo, O Filho do Deus Vivo.”.

Escrito há tempos, Guardini sugere como devemos nos conduzir nesta importante tarefa de redescobrir nosso destino religioso e que carismas serão exigidos de nossa liderança. Hoje, podemos ler a análise de Guardini à luz da liderança oferecida por alguém que nunca cessou de nos implorar a sermos sinais de contradição em meio à loucura do nosso tempo: João Paulo II.

O papa polonês certamente encontrou os requisitos esboçados acima, porque ele, em vida, soube, como poucos, personificar a condição de que “o sofrimento interiormente aceito transforma o sofrimento”. E, na encíclica Veritatis Splendor, por exemplo, ele propõe uma correta relação para a verdade das coisas. Mas, já passados alguns anos, estaríamos ainda abertos à oitiva dos ecos daquele documento pastoral?

Do enigma ao mistério – por Bruno Tolentino

Literatura | 27/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Este texto é a edição das três últimas aulas de Bruno Tolentino, dadas nos dias 8, 15 e 22 de maio de 2007, feita por Guilherme Malzoni Rabello.

I.

Como sempre, a vida é muito surpreendente. Quando menos se espera, ela dá uma volta: às vezes nos assusta e às vezes nos maravilha, mas o fato é que sempre nos tira do lugar.

Confesso que eu não esperava absolutamente nada da recente visita do papa ao Brasil, ao menos nada mais que um sinal como os que ele nos vem dando abundantemente. Mas não foi isso o que tivemos. A verdade é que a presença deste pontífice subitamente solucionou a minha vida, completamente: eu desisti de morrer. Talvez agora tenham que consultar a esse respeito, no sentido de que a morte nunca teve maior importância nas contas que fiz com a vida: se a festa está acabando, muito bem, vamos acabá-la da melhor maneira possível. Em todo o caso, até agora isso não tinha grande realidade, como de resto tudo aquilo que fiz: o esforço de escrever, de entender, de ser menos indigno da condição humana. Mas a presença do papa subitamente trouxe uma coisa nova com a qual eu, aos quase setenta anos, ainda não me havia defrontado.

A primeira coisa que ele nos deixou foi um chamado à reflexão, ao silêncio. Nós, que vivemos num mundo tão conturbado, em situações tão conturbadas, temos todas as razões para buscar um cantinho, um momento de calma, mas praticamente não o fazemos nunca. Estamos sempre muito ocupados em ter idéias, respostas e tudo o mais. Eu passava os olhos pelos jornais, tentava fazer como todo mundo, mas não era isso que me acontecia. O que me acontecia era a clara impressão de que o Santo Espírito tinha vindo ao Brasil e aproveitado opapamobile para passear por aí.

Não houve nada de dramático nessa visita. Simplesmente tive a sensação de que o tempo todo alguma coisa – e eu mesmo – estava sendo renovada. Tanto assim que disse aos médicos: “Olha, vamos acabar com esse negócio de cura, de remédios e tudo o mais. Isso fica por conta de quem me fez”, e assim já há três dias que não me furam, não me levam daqui para lá… Mas a minha pergunta é, muito claramente, a seguinte: será que o santo pontífice não estava simplesmente nos dizendo “Foi-nos dada uma Revelação, alguma coisa nos foi revelada”? Cada um o vê até certo ponto, mas praticamente nenhum de nós vive à altura disso, não respondemos a este chamado constante. “O que é homem para que te interesses por ele?”

A grande escritora portuguesa Sophia de Mello Brayner Andersen diz numa passagem sensacional, mas também das menos notadas, que o amor nos vem de vez em quando; duas, três vezes somos chamados a amar alguém; falamos nesse primeiro amor, nesse amor individualizado, não sei se se pode dizer erótico; diria, este amar uma vez ou outra. Mas existe também, no final das contas, uma outra presença, uma outra visita que vem todo santo dia, que é a santidade, o chamado à santidade, essa velhinha, esta velhota chata que vem e bate à nossa porta.

Vem disposta a ser recebida, mas todo santo dia damos um jeito de inventar uma desculpa para não a receber. Por acaso não quero ser santo? É claro que quero, quero o melhor para mim, o melhor para a humanidade toda; mas começo amanhã, porque agora… Todo santo dia inventamos uma nova “maravilha” que é preciso fazer antes (às vezes, os grandes mestres realmente inventam coisas belíssimas: grandes quadros, o teto da Capela Sistina, os sonetos de Shakespeare, a Montanha mágica, o Don Quijote)… E o resultado é que todo mundo está sempre muito ocupado e a velha vai ter que voltar no dia seguinte.

Por fim, a gente já nem se chateia com a insistência dela, mas vai simplesmente adiando e adiando. Temos de resolver como organizar o país, como vamos fazer uma literatura fabulosa, se vamos fazer etanol de milho ou de beterraba… E, com tanta coisa séria para fazer, lá vem essa velha e não sabemos direito o que ela quer. Não nos pergunta nada: aliás, distingue-se justamente pela sua insignificância – e é esta insignificância, no final das contas, a única coisa pela qual teremos de responder. Teremos de responder, pura e simplesmente, por aquilo que fizemos dessa visita incômoda.

Como complemento, há também umas palavras de Giussani, que dizia simplesmente: “Os homens levam a sério o trabalho, o amor, a família, os filhos, vai ver até a santidade. Levam mil coisas a sério, mas não parecem ter tempo livre para levar a sério a vida”. Levar a sério a vida é uma coisa muito curiosa: significa que você não pode jogar fora um só segundo dela, pois é um tesouro que lhe foi dado, que lhe é dado e que volta a lhe ser dado todo santo dia.

Estas duas coisas completam-se: a visita da santidade e a pergunta “mas será que levo a vida a sério?” Foi em torno delas que se criou toda uma coisa extraordinária, que foi a cultura do Ocidente. Construímos toda a assim chamada civilização em torno deste problema do ser[1].

Seria necessário observar aqui que, a cada vez que damos nome a alguma coisa, é porque esta coisa já não tem tanta significação: a partir do momento em que começamos a ficar conscientes de uma percepção, temos a tendência de substituí-la por um conceito. No caso do conceito de “civilização”, esse processo é muito notório, porque se trata de algo muito nobre: Quem é contra a civilização? Somos todos a favor dela. E da santidade também, e da vida também. Só que todo mundo está muito ocupado…

O perigo é justamente nos interessarmos demasiado pelas construções conceituais que fazemos do significado profundo e misterioso das coisas. Se o homem não passa de uma travessia entre o enigma e o mistério, então precisamos tomar muito cuidado em como definimos isso, porque neste intervalo está tudo aquilo que somos, incluída essa maravilhosa civilização de que temos toda a razão de nos orgulhar.

Isto me leva a pensar que, no que diz respeito àquilo que tanto valorizamos como “civilização”, quem tem a última palavra talvez seja São Boaventura, quando nos recorda que somos apenas um primeiro rascunho do ser. Levanta-se sobretudo a grande interrogação que o Evangelho nos deixa: o que será esse rascunho quando for passado a limpo? O que será o corpo glorioso? Quando Cristo se aproxima dos discípulos de noite, andando sobre as águas, diz-lhes: “Não temais, sou eu”. Santa Teresa de Ávila sublinha esse “sou eu”, não tanto o “não temais”: aqui Cristo nos dá uma indicação do que vem a ser esse perceber sem ver, esse enigma do ser que, uma vez revelado, nos levará ao mistério. Realmente, não teremos ido muito longe se tivermos saído de um enigma para cair num mistério…, mas temos a promessa de que veremos, não em um espelho, e sim frente a frente. E nesse momento entenderemos alguma coisa.

Para qualquer religião, seria uma heresia sugerir que nos dias da visita do papa ao Brasil tivemos essa experiência de “ver frente a frente”, ou pelo menos umantipasto da coisa. Mas não consigo deixar de ter essa impressão. Ou despiorei muito, ou então realmente aconteceu alguma coisa de diferente. Inclino-me mais para esta última versão, porque tenho uma noção muito clara de não ter despiorado tanto assim; infelizmente, não posso dizer: “mas eu agora, finalmente…”. Agora, finalmente, me peguei do lado de cá e eles do lado de lá, mas continuo a ser o mesmo palhaço que vejo todo santo dia.

Isso tudo me aconteceu e tive a impressão de que estão todos enganados, que não vou morrer coisa nenhuma, que não precisam se preocupar com isso: “Pode tirar esses berloques todos porque já está tudo resolvido. E quem resolveu não fui eu nem o senhor. A não ser que seja o Senhor com ‘s’ grande”.

Por isso, proponho-me agora, sobretudo, recordar como foi que cheguei a várias conclusões durante a minha vida, como foi que elas me vieram, por que algumas coisas me tiraram do sério, e de que maneira tudo isso me fez concluir que era necessário fazer uma contribuição cultural – lá vem essa palavra outra vez -, civilizacional, aqui no Brasil. Tenho muito interesse em deixar bem sublinhada a necessidade de escolhermos entre a linguagem profunda que a poesia nos empresta, e essa outra que, no final das contas, quando não é uma doxologia, quando não é a história de um maravilhamento, é simplesmente a arte de abençoar supermercados…

Talvez possamos entender assim o que eu quero dizer por “mundo-como-Idéia”, e em que medida vale a pena cuidar desse ponto de vista, dessa maneira de encarar a realidade simplesmente como uma Idéia ou, alternativamente, reconhecer que a vida é metafísica. Porque, no final das contas, continua a ser um ponto de vista, e talvez um punhado de palha – como diz São Tomás – seja mais importante do que todo o resto [2]. Temos muito o que defender, aqui no Brasil, contra a atual tendência ao bestialógico e ao despudor dos neurônios, e isso é muito importante; mas, mais importante ainda é não descobrirmos, na véspera da morte, que passamos a vida inteira abençoando supermercados…

II.

Não tenho a pretensão de ensinar alguma coisa no tempo que me resta. O que me parece entendimento, o que me pareceu entendimento, deve-se simplesmente a uma educação que recebi como quem recebe o ar que respira, sem saber muito bem de onde vem e por que está respirando aquilo. Mas tenho muito a recordar e tenho certas coisas que preciso dizer antes de calar a boca de vez. Essas coisas são cada vez mais claras para mim e precisam ser ditas, porque ninguém vai dizê-las se eu não puder falar. Neste mundo de supermercado, ficarão atrás do etanol, da queda de sei lá qual bolsa de valores… Podem não ter importância nenhuma, mas têm uma razão de ser: lembro-me delas com muita clareza, sei o que são.

Os primeiros poemas que escrevi em 1956 não têm praticamente interesse nenhum, a não ser o da data, do momento. Sempre achei que havia um certo exagero quando as pessoas diziam: “Não, não jogue fora, é um bom poema”. Publiquei, deixei publicado, mas foi só depois que comecei a entender que estava fazendo poesia, e que não havia jeito senão fazer poesia. Dona Cecília Meireles sempre me perguntava: “Poeta, o que temos de novo?”, e eu não entendia nada: Primeiro, que poeta é este? Segundo, o que é essa tal novidade, essa coisa que tinha que continuar a levar para frente?

Há várias passagens em minha vida que não termino de entender. Em 1973, por exemplo, eu já havia criado essa personagem chamada Katharina, que era simplesmente uma freira mal comportada. Nessa época, o Cristo não era coisa que me importunasse de modo algum: eu estava em Oxford e tinha mais o que fazer. Até que, em agosto daquele ano, escrevi toda a série do livro que corresponde à leitura que a Katharina faz do Evangelho 3. Não queria escrever nada daquilo; o primeiro poema, sobretudo, O segredo, apareceu-me inteirinho, sem que eu tivesse que mexer em nada. É aquele que diz:

O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:

 nem o clavicórdio
nos dedos da luz,
nem o monocórdio

chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus

é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado

 do teu coração:
de um lado teu medo,
teu ódio, teu não;

do outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde teu degredo,

onde teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto
da ressurreição.

Chamar isso de experiência mística – essa palavra que sempre me pareceu besta: “Mística”, por quê? O que é isso exatamente? – é dar uma importância muito grande às coisas, mas permanece o mistério: por que fui escrever este poema, que certamente não está abaixo dos outros, assim de repente?

Em Oxford, discutia-se muito tudo isso, e as melhores cabeças tinham preocupações de ordem religiosa, até porque precisavam definir-se de algum modo. O poeta que mais me impressionava, Wystan Auden, era um poeta religioso, e ninguém mencionava esse fato; também o melhor poeta inglês vivo, Geoffrey Hill, é um poeta eminentemente religioso – aliás, praticamente não é outra coisa.

Mas, graças a Deus, não posso calcular mais nada; tenho que me ater apenas ao essencial, à velhinha que vem bater à porta todo dia. E a tudo o que ela acha da cultura, ou seja, do que eu criei. Esses pensamentos me visitam o tempo todo, e não posso deixar de mencioná-los. Posso muito bem deixar de dar aulas, posso muito bem deixar de ensinar as pessoas a pensar ou de explicar o significado desta ou daquela poesia aqui ou na Inglaterra; sei um mundo de coisas das quais me pergunto para que servem, mas nada disso precisa ir senão para a lata de lixo. O que sobra é o significado que a poesia dá a certas cenas, alguma coisa que faz o mistério da poesia e da vida e as amarra numa coisa só. Daí nasce o poema, de uma forma única e que não se cansa de me deixar perplexo.

III.

Já me foi observado que, se O mundo como Idéia é uma versão, digamos, ensaística de uma intenção, A imitação do amanhecer seria a versão romanceada[4]; de qualquer maneira, são a culminação da minha obra, de um modo de pensar e de ver as coisas. Seria impossível escrever apenas um deles: quando eu estava entregue ao ato de ser perfeitamente insano escrevendo A imitação do amanhecer, O mundo como Idéia já se ia formando em minha cabeça. O primeiro era o livro que eu sempre quis escrever; o segundo, o livro que fui obrigado a escrever. O mundo como Idéia não era um projeto: eu precisava escrever o livro para entender o que estava fazendo.

Isto porque a poesia é a linguagem fundamental, a linguagem de todos os tempos. Não se pode imaginar, por exemplo, os Salmos escritos em prosa, como seria impossível no caso da Divina comédia, de Os Lusíadas etc. Goethe escreveu excelentes romances, mas jamais teria escrito o Fausto senão em verso. Se a linguagem fundamental vai ser tentada, seu máximo grau sempre foi e sempre será a linguagem da poesia. Nunca poderei repetir isto o suficiente: o nosso mundo se afastará cada vez mais da realidade quanto mais quiser precisar as coisas, quantificar a realidade, ao invés de ouvir essa voz profunda, que será sempre uma viagem do enigma ao mistério – uma travessia que parece não levar a lugar nenhum, mas na verdade está subindo, levando-nos cada vez mais à compreensão da realidade.

Como já disse, a compreensão das coisas só pode ser compreensão de Deus, porque, se não o for, será apenas uma inauguração de supermercado. Se este enigma não me interessa em si, então apenas me interessa quantificá-lo; e se a vida não é metafísica, é uma mera quantificação, um empilhamento que não faz nenhum sentido. Ou seja, a vida ou é metafísica, ou não é nada.

O problema todo começa quando percebemos que o mundo moderno cada vez mais se parece com um nada – e faz questão de se parecer com isso. Há um esforço enorme, no qual se servem as idéias, se servem as cosmogonias e cosmologias, para mostrar que na verdade o ser humano não passa de um mero empilhamento de dados. A conseqüência será colocar o homem abaixo do nível animal, quando muito no de um animal.

Gostamos de dizer que a empreitada da modernidade teve um grande sucesso, mas o que é exatamente esse sucesso? Quase nada, eu diria. Pode-se dizer que hoje foi um dia de grande sucesso para mim, porque não podia falar, ia morrer, mas o progresso da Medicina fez com que estivesse aqui podendo pronunciar-me. Ficamos muito agradecidos, é claro, mas, na verdade, se isso realmente é uma vantagem para o ser humano, é também um dom de Deus.

Às vezes temos percepções espantosas de que a realidade é dom de Deus. São momentos que chamo de epifanias – na verdade, simplesmente uso o termo para essa súbita aparição do ser em sua plenitude. É algo muito difícil de explicar, mas recentemente, por exemplo, eu estava andando numa das ruas mais prosaicas de São Paulo, a tal Cardoso de Almeida. Não sou paulista, fui conhecer a Cardoso de Almeida recentemente e quase a contragosto. Até que um dia estava andando nessa rua, entre um ônibus e duas árvores completamente empoeiradas, e subitamente aquilo tudo me causou um grande espanto. Foi um maravilhamento que não se explicava nem justificava de maneira alguma, mas é como se aquele enigma que você é o obrigasse a espantar-se e ficar profundamente emocionado.

É essa dimensão metafísica da vida que transfigura tudo. Temos a impressão que tudo existe apenas porque Deus está respirando e, se Ele parasse de respirar, tudo se desfaria em poeira. Na verdade, tudo é poeira mesmo, mas, nesses momentos, como que numa respiração de Deus, todo aquele pó se transforma em brilho – que às vezes é percebido, às vezes não. Isso é o momento de epifania. É o maravilhoso no que tem de mais awesome – a palavra awe em inglês significa ao mesmo tempo “espanto” e “terror” -, como se eu visse pela primeira vez aquela rua e aquele ônibus na Cardoso de Almeida. Em A imitação do amanhecer, com uma brincadeira – coisa que aliás nunca está longe do meu modo de escrever e de pensar -, exprimo esse maravilhamento nos seguintes termos:

Ora (direis), anjos de luz! Ah, mas leitor,
se nunca te encontraste, não com um ser abstrato,
mas com algum corpo aceso como os olhos do gato,
que sabes do fenômeno de que aqui falo? O amor
para ti alguma vez foi susto? Entre o terror
e o maravilhamento, algum dia o retrato
da perfeição te olhou? Vá lá, vamos supor
que é ainda o mesmo corpo, tátil ainda ao tato:
há nele um súbito perfume inesperado,
e é inútil, é impossível não perceber que alguém
á mal cabe num corpo; eu o conhecia bem
e nunca havia dantes sentido que ao meu lado
pairava aquele aroma de um mundo ignorado…
Não, leitor, certas coisas chegam de muito além
(I, 67)

Diante de uma epifania, que pode acontecer em qualquer canto e a qualquer momento, procuramos refugiar-nos de mil maneiras, porque, quando isso acontece, é um verdadeiro terror. Rilke dizia que “todo anjo é terrível”:

Pois o belo é apenas
o começo do terrível, que ainda a custo
[podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele,
[impassível, desdenha
destruir-nos. Todo Anjo é terrível . [5]

Confrontado com este dom, que é ao mesmo tempo um dom e um desafio, a criatura pode conceber mil maneiras de viver o mundo, e a vida, que normalmente é tediosa, cinzenta, sem graça, até que se ilumina. São esses grandes momentos da nossa vida – que podem durar apenas alguns segundos – que abrem as brechas e nos fazem ver, para além da superfície, a real reverberação que constitui o ser. Mas o terror de Deus, o terror da Beleza é de tal ordem que nós queremos recuar. O fato de a vida ser metafísica nos obriga a fazer alguma coisa, mas é sempre altamente insuficiente para conter aquele temor e tremor, como diz Kierkegaard. Nós continuamos nus diante dessa realidade; quer escolhamos ver ou fechar os olhos, perceberemos que as coisas nos chegam “de muito além”.

O que a poesia e Deus têm em comum é justamente isto. A grande arte e a divindade possuem essa capacidade de divinizar a vida, de mostrar que não há outro modo de compreensão da realidade. A conclusão é sempre incômoda, mas todas as outras são ainda piores: estamos aqui numa constante saudade de Deus, saudosos da plenitude. E a grande arte é exatamente isto: o esforço da criatura por guardar na memória aqueles momentos de epifania, nos quais ela se aproxima ao máximo do mistério da criação.

O mundo moderno quer criar uma espécie de antídoto para essa ameaça que é Deus e a Beleza, e o resultado não poderá ser outro que não a feiúra e a negação de absolutamente tudo. Vamos então conceber o nosso mundo como horroroso para podermos dar-nos ao luxo de acreditar que temos uma defesa, um escafandro contra aquela súbita surpresa, aquele temor e tremor de acordar diante daquilo que realmente somos. E então passaremos o tempo empilhando latas no supermercado e tentando fazer disto arte.

A necessidade de escrever O mundo como Idéia, que surgiu aos poucos entre 59 e 66 e gradualmente foi tomando forma, é simplesmente a urgência de me defender dessa condição de lata em supermercado, da linguagem reducionista, para buscar a grande abertura – e reclamar de tudo que não seja isto. A Montanha mágica, por exemplo, é a mesma coisa: no momento em que um continente inteiro parece caber num sanatório dos Alpes Suíços, Thomas Mann vai criar essa extraordinária metáfora do mal como doença.

O que me propus fazer em O mundo como Idéia foi também uma tarefa muito séria, que não era simplesmente tentar descrever alguma coisa, mas expressar a percepção de que aquilo que dá sentido à realidade vinha sendo roído pelas beiradas pelo sorrisinho dos Voltaire da vida. Quem me deu essa imagem foi Saint John-Perse, que morava nos Estados Unidos, quando lhe perguntei por que ele não voltava para a França. Ele me levou então à biblioteca do Congresso americano e, no meio daquelas estátuas todas, disse-me: “Vou explicar: Olhe só, qual é o grego que está ali? Platão. E o espanhol? Góngora; poderia ter sido Cervantes, mas é Góngora. O italiano é o Dante, claro. E ali, olhe quem representa a França, o que a França virou: o sorrisinho do Voltaire! Nós somos representados por isso!”

Na época, fiquei estarrecido, mas depois ficou claro que essa coisa toda só servia mesmo para arrumar sinecura para débil mental na USP. Porque foi nisso que deu: na Rive Gauche du Tietê. Nessa fábrica de opiniões ocupadíssima com a última teoria bocó para a falta de sentido do universo. Se eu não tivesse nada que ver com isso, iria pentear macacos, arrumar coisa melhor para fazer. Mas não: este é o meu povo, e eu sei que não era assim. Então, aproveitando a proximidade da Maria Antônia com a Rua Augusta, e a semelhança entre “correr atrás da Bolsa” e “ficar rodando bolsinha”, disse simplesmente assim:

Oh, Maria Antônia augusta,
quanto custou, quanto custa
teu fricoteio ao Brasil?
Mas quem te vê, quem te viu.
Tu, que já foste um canil
rábido em nome da luta,
hoje não passas do til
no bundão da velha puta,
a puta que não pariu!

O poema foi considerado um acinte. Diziam-me: “Isso não se faz, Tolentino”. Mas o que não se faz é prestar-se a dar inspiração para essas coisas!

IV.

Se a hipótese de que a vida é metafísica nos é familiar e aceitável, se tudo aquilo que fazemos é memória de Deus e a Ele se dirige, então resta a pergunta: Por que fazer seja o que for, por que não ficar em contemplação perpétua? A resposta mais lisonjeira seria pretender  justamente que todos os nossos atos fossem louvores a Deus, como quem não tivesse nada para fazer e ficasse a tarde toda louvando a Deus. Mas não é assim e não precisa ser assim, porque gradualmente essa realidade de estarmos saudosos da plenitude vai aparecendo, seja quando estamos ocupados com pequenos atos, seja quando enfrentamos atos totalmente megalômanos. Não há necessariamente que haver uma intenção deliberada, é sempre perfeitamente possível que se busque um ato de beleza instintivamente.

Quando eu me pus a escrever O mundo como Idéia, tinha diante de mim apenas algumas questões atormentando a minha cabeça. Com o passar do tempo, fui percebendo aos poucos que cada vez mais ia ficando claro para mim esse abandono da linguagem transcendente e a noção de que aquilo nos iria deixar num péssimo estado, que iríamos perder muito. Depois ficou claro que não perderíamos muito: perderíamos tudo. É como se eu estivesse dentro de um nevoeiro e, conforme ele se desfizesse, eu começasse a perceber certos contornos, certas formas – ou o que se chama de poesia.

Gradualmente, esse problema foi-se tornando uma visão de mundo, eu tendo que me defender desse mundo, desse pavor de constatar que havia um modo de deformar a realidade sob a desculpa de que aquilo seria mais real que o real. Todos os dias estava cercado de alguma explicação, de maneira que eu não sabia muito bem para que servia todo o meu esforço; mas tinha muito claro para quenão servia, e que aquilo que me cercava era uma grande bobagem. E assim começou a criar-se uma obra poética.

Qual não foi o meu susto quando, bem mais adiante, já nos anos 90, voltei ao Brasil e encontrei um país que havia dissolvido e praticamente proibido a linguagem poética. Nesse intervalo eu havia feito poesia em outras línguas, de acordo com o lugar onde vivia, o modo como vivia etc., mas nunca imaginei que pudesse encontrar um país do qual a cultura tivesse sido banida – aquela maluqueira de dizerem que o Caetano Veloso era o maior poeta do Brasil: espera lá, até segunda ordem ainda é o Carlos Drummond de Andrade! -.
É um susto muito grande para quem havia passado trinta anos na civilização e sabia muito bem que, embora houvesse um negócio chamado The Rolling Stones, isso não impedira a Inglaterra de ter a grande poesia que tinha, a grande música que tinha e tudo o mais.

Perguntavam-me o que estava fazendo aqui, por que não ia embora, mas não é nada disso: não posso aceitar que esse país agora tenha virado uma Escola de Samba. E quando penso que Noel Rosa era chamado de “o Poeta da Vila”, inclusive pelo Manuel Bandeira e pelo Villa-Lobos… Ele realmente era muito poético e fazia aqueles sambas de que muito nos orgulhávamos, mas daí a confundir isso com poesia – era uma maluqueira tão grande que não podia ocorrer a ninguém.

Pois bem, voltei e descobri que nesse intervalo o intelectual se havia transformado em in-telecoteco-ctual e que estávamos todos escravizados à estupidez, como numa espécie de Lei Áurea ao contrário. Os cariocas, especialmente, sempre valorizaram muito o nosso “Poeta da Vila”, mas era o poeta de uma segunda linguagem, que nunca foi confundida com cultura; era simplesmente a nossa realidade, em toda a sua complexidade, que nos tornava não só ricos, mas felizes de tê-la.

A partir do golpe de 64, porém, justamente quando me fui embora, começou a idéia de que precisávamos “fazer a revolução”, de que não havia necessidade de cultura. Era preciso revolucionar tudo. Quando comecei a organizar O mundo como Idéia, sobretudo a série de ensaios da parte inicial, defrontei-me com toda essa questão em termos de profundidade metafísica. Já na primeira parte propriamente dita, “Lição de modelagem”, era natural que começasse com a idéia do espectro. É justamente um mundo espectral o que encontramos sempre que nos afastamos da realidade, da profunda realidade metafísica.

Curiosamente, vou-me dando conta de que esse mundo de sombras corresponde perfeitamente à ciência dos números. Há todo um aspecto demoníaco na transformação do mundo-como-tal em mundo-como-Idéia, baseada toda ela numa concepção numérica. Tanto assim, que, em 1933, Kurt Gödel faz os seus dois teoremas da incompletude e demonstra que não há modo de quantificar a realidade de tal maneira que ela venha toda a caber toda em algum tipo de formulação.

Justamente no mesmo ano em que Gödel demonstra seus teoremas, Hitler torna-se o Führer e a barbárie toda começa. Ou seja, não estamos realmente em plena vertigem, mas, pelo contrário, estamos-nos iludindo a respeito da possibilidade de falsificar alguma coisa que não poderemos nunca atingir. Ao mesmo tempo em que aparece a tensão com a realidade, este questionar-se a si mesmo sobre como saber de maneira mais precisa as questões fundamentais, como faz Kurt Gödel, ocorre o momento máximo de barbárie. Começa aquele horror sinistro que vai levar um dos povos mais desenvolvidos do Ocidente, o povo de Goethe, de Schiller, a dedicar-se a colocar gente dentro do forno para acabar com um outro povo inteiro, e tudo em nome de uma boçalidade completa e total!

Essa realidade também vai influenciar-me de maneira fundamental porque, vinte anos depois, quando eu for começar a escrever, é natural que haja um sentimento de ordem – afinal de contas, todos sabíamos quanto tinha custado para que a razão predominasse, para que a luz predominasse sobre a treva. Quando digo razão, isso não significa racionalismo: o racionalismo é a doença da razão, como muito bem o definiu o papa Pio X. É-se racionalista na medida em que não se é capaz de usar a razão para compreender que não se entendeu, para saber que a realidade é maior que aquilo que se pode definir.

Quando eu me proponho expressar essa realidade na esteira de uma verdadeira hecatombe, a simbologia da luz sobre a treva – que não é nenhuma novidade -, terá um papel decisivo. A luta entre o bem e o mal simbolizada – se se quiser usar esse termo – nesse confronto entre a escuridão e a luz vai se tornar, no meu pensamento, um elemento de novidade. Descubro a metáfora dessa luz deliqüescente – e daí o meu particular interesse pela pintura -: essa luz que desmaia, em que a percepção humana não tem total noção da clareza das coisas, não consegue anular a treva. Aparece, então, a noção de luz pensada e dessa luz que treme, que, do meu ponto de vista, é talvez a metáfora mais exata para a condição humana.

   Canto, filho da luz da zona ardente,
coisas que vi a luz, sempre estrangeira,
tecer no ar e inevitavelmente
ir baixando com modos de rendeira
   ao tear deste mundo. A vida inteira
vi me escapar a luz do sol cadente,
e é essa rosa de sangue na fogueira
que agora arranco às dúvidas da mente.
   mente o intelecto que se esquece dela.
Se a pura luz de leste se desdiz,
a cada ocaso há no final feliz
   dos números da mente a bagatela
de uma luz de mentira. Contra ela
fui tecendo este meu canto de aprendiz. [6]

É essa necessidade de aceitar que tudo aquilo que nós amamos está sempre a ponto de se pôr como o sol, está tingido por essa luz de ocaso que não é menos bela por sê-lo – ao contrário, talvez até seja mais bela, mais doce, mais dolorosa por isso. Não existe triunfo nenhum no formalismo que nos propõe a ciência do número, o mundo como Idéia. Nesse nosso mundo, a idéia pode tentar substituir, sem jamais conseguir fazê-lo, essa luz que treme e que é o único momento de verdade do ser. Teremos que renunciar aos sonhos alucinantes do intelecto se quisermos perceber alguma coisa desse mundo que se esvai, que perdemos e que é bonito justamente porque o perdemos.

V.

Atualmente, encontramo-nos em uma situação particular: somos chamados a pensar a condição cultural da humanidade de uma maneira como não o havíamos sido desde a Primeira Guerra Mundial. De forma cada vez mais surpreendente, inclusive para mim, eu vejo que toda essa questão do mundo moderno cabe cada vez mais na moldura traçada pelo papa Pio X na encíclica Pascendi Dominici gregis, “Apascentando o rebanho de Deus”, na qual este homem de uma inteligência brilhante conseguiu definir o inefável, que aliás tinha todo interesse em continuar a ser nebuloso. O modernismo não é nada além disso: o nebuloso tentando passar-se por inefável. Antes de poder criticar, o que papa Pio X fez foi um enorme esforço de entendimento daquele monstrengo que se estava formando. O quadro que traçou seria completado mais tarde com outro livro fundamental para compreender o século XX, que é La trahison des clercs, de Julien Benda [7]. Com estes dois trabalhos, temos os pilares a partir dos quais podemos entender o mundo moderno

É necessário, sobretudo, encaixar o Brasil nesse panorama: que visão de Ocidente nos tínhamos proposto a nós mesmos, e com que resultados a havíamos imaginado e participado dela como última província do Ocidente – última no sentido de a mais distante, mas nem por isso a menos significativa. Aquilo que nós produzimos de mais profundamente nacional, que não é a anta nem o saci, o aspecto folclórico das coisas, mas algo que faz com que todo mundo perceba uma realidade completamente nacional. Paradoxalmente, nós não fizemos como os europeus: ao invés de estarmos a nos perguntar o que valíamos, simplesmente fizemos algo. Por exemplo, houve um momento em que todos os brasileiros perceberam exatamente que “é doce morrer no mar”.

Essa sensibilidade, brasileira e só brasileira, esteve presente em tudo. Não é superior, não é inferior, mas é indispensável para o nosso modo de ser. Em nenhum momento será tão impressionante e tão tipicamente nacional quanto nas Bachianas de Villa-Lobos e nos poemas de Manuel Bandeira e Cecília Meireles, por exemplo. É como dizia Clarice Lispector: “Bem, se Machado foi possível, o Brasil é possível”.

Joaquim Maria Machado de Assis é a expressão suprema da inteligência e da sensibilidade brasileiras, ele que era um crioulinho que descia o Morro do Livramento para vender doces, descalço porque não tinha sapatos. Esse homem consegue ser indiscutivelmente o maior escritor, o maior pensador e certamente o maior romancista que América Latina já havia tido até então. Se isso foi possível, fica claro que a jabuticaba não é a única coisa boa que nasce no Brasil e não tem em nenhum outro lugar. Quando a América Latina produz o escritor que vai impressionar toda a Europa, Jorge Luis Borges, que nasceu em 1899, Machado de Assis, que nasceu em 1839, já o tinha precedido de muitas décadas.

Pois bem, se somos um aglomerado de macacos, somos uns macacos muito precoces, e só vamos começar a ter uma noção do que realmente somos nos anos de 1930, algo como 125 anos depois da chegada, aqui, da corte de Dona Maria. Mas como foi possível que os argentinos, que tinham por trás toda a extraordinária tradição de Cervantes, Fray Luis de León, Góngora, tenham demorado tanto tempo para ter um Borges, enquanto nós, que não tínhamos quase nada – descendíamos de uma espécie de Albânia Atlântica -, conseguimos precedê-los com a genialidade de Machado?

Nós não saímos in the pole position. Tínhamos Camões, realmente um poeta caolho que escrevia muito bem, que é um grande poeta para nós que sabemos ler português, mas que não teve eco nenhum na Europa e não é uma voz, estritamente falando, européia. Porque Portugal olha para o mar e, quando começa a olhar mais longe, logo lhe aparece o Brasil. Aparece essa confusão, essa coisa inexplicável espremida between the devil and the deep blue sea.Somos essa coisa imensa, toda desconjuntada, entre o mar profundo e a selva, mas nesse meio surge um pretinho que faz quatro dos grandes romances do século XIX. Há um grande mistério nisso tudo.

Se o homem é uma travessia do enigma ao mistério, então somos um exemplo perfeito disso, que começará a ser questionado na década de 30. Tia Lúcia Miguel Pereira publicou Machado de Assis em 1934; Dr. Gilberto Freyre havia publicadoCasa grande & senzala e concebido um entendimento magnífico e único do Brasil, e Dr. Sergio Buarque de Holanda fez Raízes do Brasil. São três livros importantíssimos naquele momento, que são como que pontos de interrogação. A essa altura, tínhamos apenas cinqüenta anos de projeto nacional, e cada um dos três nos trouxe uma resposta complementar para a pergunta: “O que somos? O que tivemos?”

Eu tive uma sorte enorme de crescer em meio a essas pessoas. Dr. Gilberto vivia no Recife, mas quando vinha ao Rio de Janeiro freqüentava a casa de minha tia Maria Clara, e um garotinho ali no canto ouvia tudo. Dr. Sérgio morava no Pacaembu, em São Paulo, de maneira que era mais fácil vê-lo; ele era uma das pessoas que mais entendiam de literatura anglo-americana, o que também o tornava muito interessante. Enfim, eram pessoas que eu via e cuja conversa ouvia, como também Dr. Afonso Arinos, Gustavo Capanema – e não me pareciam nada macacos, não eram nada primitivos. Cecília Meireles, fui conhecê-la em 1949, quando aquela estátua entrou lá em casa – uma versão positiva do visitante de pedra do final de Don Giovanni, mas que não vinha trazer a danação, muito pelo contrário! O Manuel [8] sempre viveu por lá, ele era um celibatário que comia sempre na casa dos amigos e teve, pasmem, seu primeiro rádio, que também tocava discos, aos setenta anos, em 1956.

Crescendo num ambiente assim, nunca me passou pela cabeça que eu procedesse, como dizem hoje, de um país subdesenvolvido, emergente. Nunca ouvi falar nada disso, e se me dissessem que o Brasil era um país emergente quando garoto, era capaz de confundir com detergente. Muito cedo queriam me mandar para Europa, e eu não entendia. Para que, se a Europa inteira vinha para cá? Tinha o Krajcberg, o Dr. Carpeaux, Vilém Flusser etc. Eu não conseguia entender esse sentimento de inferioridade, que já estava começando a entrar na moda. Para mim, europeu tinha muito a ver com barbárie.

Aliás, por sinal, qual não foi a minha surpresa quando decidi informar-me sobre a cultura russa, que estava muito na moda graças a toda aquela pompa de “a Rússia é o futuro do mundo”. Nunca acreditei muito nisso, mas resolvi ir ver o que era o tal comunismo, essa fórmula para a salvação da humanidade em que ninguém tinha pensado até então. E a minha surpresa foi chegar em São Petersburgo, que na época se chamava Leningrado, devido a um celerado que passou por aí, e descobrir qual era o terceiro poeta mais lido naquele país. O mais lido de todos era Pushkin, claro; o segundo era o poeta nacional da Escócia, Robert Burns. E o terceiro? Era… Tomás Antônio Gonzaga! Eles tinham uma sociedade inteira, a terceira sociedade lírica da Rússia, que se reunia, estudava e declamava todo o mês a Marília de Dirceu!

Vamos começar tudo outra vez: essa turma, ou estava ameaçando o resto do mundo com a bomba atômica, ou estava lendo a Marília de Dirceu! Levei anos para compreender a realidade cultural russa, que era tão esquisita que, embora eles dançassem maravilhosamente e fizessem todas aquelas maravilhas, de Pushkin a Tolstoi a Dostoievski, liam A Marília de Dirceu nas horas vagas… Já no Brasil só mineiro a lê, e um pouco por obrigação.

Assim, aos poucos, fui descobrindo vários vestígios dessa esquisitíssima qualidade brasileira – uma coisa difusa, particular, em nada metida a sebo. Brasileiro pede desculpas por estar ali, para não parecer muito mal-educado, mas depois “vai cuidar da sua vida” porque “nóis fumo e não encontremo ninguém”. Não era necessário, naqueles anos antes do gramscismo, querer que Fidel Castro e Che Guevara nos ensinassem como fazer o Brasil, criar essa condição de “é preciso fazer um novo país”.

VI.

Toda esta meditação sobre o Brasil e sobre o Ocidente cabe perfeitamente na moldura que esboçamos: de um lado, a Pascendi; do outro, o livro de Julien Benda.

Em 1905, o que papa Pio X faz com a sua encíclica é inaugurar uma análise do modernismo. Ele precisava saber o que era tudo aquilo que estava acontecendo, definir primeiro o que era o modernismo, para depois poder dizer o que aquilo significava e para onde provavelmente iria nos levar. Porque o modernismo se propunha como uma grande novidade, como uma grande beleza, mas não mostrava a cara e não podia mostrá-la porque, afinal, não se entendia a si mesmo. Tocou então à Santa Madre Igreja procurar saber o que era aquilo para poder ter uma opinião a respeito.

O modernismo não sabe o que quer, ou antes, define-se por aquilo que não quer. Não quer essa velharia toda que está por aí, precisa acabar com tudo para construir um mundo novo, um mundo moderno, e para isso vamos todos ser modernistas. Mas o que exatamente vem a ser este mundo tão maravilhoso e moderno, ninguém o explica. E o esforço da Pascendi vai exatamente nesta direção, a de entender o que é e o que quer o modernismo.

Logo em seguida, dez anos depois, irrompe a primeira guerra mundial e começa a mostrar o que a Encíclica estava dizendo. Trinta anos depois, Adolf Hitler já está construindo seus campos de concentração e o Gulag está sendo criado. O mundo moderno estava sendo construído ali, diante dos nossos olhos.

Hoje, infelizmente, sabemos muito bem que mundo moderno é este, para onde ele nos leva, e que o ideal dos ideais é o bebê de proveta. Hoje em dia, qualquer coisa é a famigerada liberdade, que ninguém definiu exatamente enquanto furava os olhos dos outros. Os pogroms, os massacres, os horrores todos, sempre em nome do mundo como Idéia, de uma certa idéia do mundo que passaria a ser o nosso objetivo. “Nós vamos construir um mundo tão maravilhoso que você poderá nascer com uma cara e morrer com outra, basta colocar um pouco de botox aqui, outro tanto ali, e você vai ficar uma maravilha… Ninguém terá doença nenhuma, mas até chegar lá vamos matar quem estiver no meio”…

Quando o papa percebeu que o que ele tinha escrito estava pura e simplesmente acontecendo, tomou um grande susto, pois talvez não quisesse ter tanta razão. Daí a trinta anos o mundo está em pânico, e a metade que não está em pânico está desfilando o mundo moderno. Nesse momento, os intelectuais entram num beco sem saída, e é justamente disto que o livro A traição dos intelectuais vai nos advertir. O intelectual deixa de ser responsável para ter razão haja o que houver: precisa construir um mundo formidável, embora a cada meia dúzia de cabeças se encontre uma fórmula diferente. Os nazistas, os comunistas, os fascistas estão todos prontos para brigar, para acabar no filme do Kubrick, Dr. Strangelove, no sujeito que adora bomba, ama a bomba atômica.

Naquele momento, todo mundo achava que estava fazendo uma coisa maravilhosa; podia-se estar de um lado ou de outro, mas todos, naquele momento, construíam a modernidade, o resto era velharia. Quando se chegou à catástrofe do anos 40, não havia mais tempo para pensar no que fora dito, pois tudo agora parecia irrelevante, e o máximo que os intelectuais concebiam era a possibilidade de não terem estado de todo certos. Então, de erro em erro, começaram a corrigir essa visão de mundo, esse mundo-como-Idéia, e propor a cada vez uma nova deformidade, convencidos de que era algo de primeira qualidade.

Esse é o modus operandi do modernismo: não estar nunca satisfeito com aquilo que se acabou de fazer, pois não era nunca aquilo que se tinha em mente, eraquase. “Vamos tentar mais uma vez, diz-se, e se for preciso matar algumas pessoas, enfim, não há outro jeito”… Resultado: acaba-se entrando numa esquizofrenia extraordinária e vai-se ficando cada vez mais moderno na medida em que se tem menos certeza das coisas, até chegar ao chamado niilismo. “Ficamos todos por aqui, não somos nada, tudo é nada, viva o nada”, e pronto!

Mas não pára por aí. Agora é preciso buscar uma maneira de que esse nada seja menos nada, ou um pouco mais nada que o nada. De nada em nada, começa a canonização dos jogos mentais. Quando cheguei à França, em 1964, havia lá um livro extraordinário que já prenunciava tudo isso: Le degré zéro de l’écriture, “O grau zero da escrita”, de Roland Barthes. Com o passar do tempo, apelidei aquilo de Le degré zéro de l’imposture, mas achei que ainda era muito enobrecedor, e, como as palavras écriture, imposture e épluchure têm mais ou menos o mesmo som, finalmente cheguei a Le degré zéro de épluchure, “O grau zero da casca de banana”, como se o macaco pegasse a banana e jogasse a fruta fora porque acabou de descobrir a casca. Um país inteiro, que já deu Baudelaire, Racine, Villon, até Voltaire com aquele beicinho, uma das grandes culturas do mundo, de repente descobre a casca de banana e lança-se inteiro naquele estado de adoração do nada.

Não demoraria muito até que nascesse daí toda uma escola: a do Deleuze, da Kristeva, do Derrida-ou-desce. A partir de então, passa a ser proibido pensar, e os franceses vão ocupar-se da perfumaria intelectual que eles andam espalhando pelo mundo. Eles levam o relativismo a um ponto tal que só mesmo rindo, mas quando se percebem os resultados de tudo isso, vê-se que não é nem um pouco engraçado.

Ao longo destes cem anos, pois, o mundo foi concordando com o papa Pio X, foi ilustrando a Pascendi. Como não lhe agrada nada concordar com ela – só faltava agora concordar com um papa! -, propõe-se inventar outra moda, outra deformação. O mundo-como-Idéia faz das tripas coração para não concordar com a Igreja, que afinal é coisa de velha e que ninguém mais quer.

O grande esforço não é tanto definir o mundo-como-Idéia, porque pode ser mil coisas, mas saber qual é o processo que faz com que uma pessoa prefira aquilo que projeta em lugar daquilo que é chamado a observar. Qual foi esse caminho dentro da vida intelectual do século XX, como chegamos ao grau zero da casca de banana, como se deu esse Derrida-ou-desce.

Esse processo não dificulta apenas o presente, mas abole o passado. Se você define um futuro que vê como ideal e para o qual quer tender, isso vai tornar o seu presente muito complicado porque, para chegar até lá, precisará lidar com todas as confusões do dia de hoje que não se ajustam a essa idéia de futuro que criou. Por isso, o seu presente será muito conflituoso; no entanto, conseguimos viver em meio a conflitos, é próprio do ser humano enfrentar os paradoxos do dia-a-dia.

O pior não é que essa idéia o impede de viver as coisas como são, mas que o obriga a destruir o seu passado. Para poder manter essa visão de presente que você anuncia em nome do futuro, tudo o que foi precisa tornar-se suspeito. Passa a ser sua missão destruir as possibilidades de contar com esse passado como ajuda. Ora, todos nós temos um passado, uma memória, alguma coisa de que nos lembramos muito bem; um tesouro qualquer de que não queremos abrir mão com tanta facilidade. Mas será necessário jogar tudo isso fora para ter um presente “limpo” em nome do futuro, ou da idéia de um futuro que vem por aí.

Você joga fora o passado e passa a viver num presente que é um deserto, em nome dessa idéia de futuro que, quase com certeza, não chegará nunca. E essa promessa que você tem é uma coisa extremamente adaptável: pode chamá-la de niilismo ou do que quiser, mas o fato é que ela trará consigo um ódio a tudo o que existe. “Ah, mas isso são velharias”, “Ah, mas isso é de ontem”, “Ah, mas isso não se usa mais”, é o que mais se ouve hoje em dia. Esse drama é o que eu chamo o mundo-como-Idéia: você não pode mais ter um presente, um passado e um futuro, só pode ter aquilo que fizer agora: é uma idolatria, é uma apostasia e é uma pirraça com a vida.

O homem vai-se tornando assim um autômato, uma máquina, e a sua vida passa a não ter sentido nenhum. Como disse, essa postura vai aparecer na filosofia, na literatura, na legislação e em praticamente todos os aspectos. O que papa Pio X nos advertiu foi exatamente disso, dessa urgência de não ter um passado, dessa vontade humana de criar alguma coisa de tão novo que não viesse de canto nenhum. Não é muito diferente do que se vem conseguindo com a promessa de que os embriões nos vão curar de tudo, os embriões que não vão mais nascer estarão aí para garantir nosso futuro. Essa espécie de pesadelo não estaria aí sem a proposição do mundo-como-Idéia, de alguma coisa melhor que você pode conseguir jogando fora tudo o que tinha.

Com isso, convido-os a preparar as suas dúvidas. Ter dúvidas significa ter um passado. Não tenham tantas certezas assim, perguntem-se se aquilo que lhes é vendido hoje como a verdade realmente vem de alguma coisa, se aquilo tem raízes dentro do seu modo de imaginar. Se conseguirem fazer isso, valerá muito mais a pena que qualquer outra coisa.

Cada um deverá perguntar-se, ter um passado de que não se lembra mais muito bem, que não sabe muito bem como julgar, de que não sabe com clareza que valor tem para si; mas algum valor tem, e você não deve querer trocá-lo por coisa alguma. Se vocês não fizerem isto, ficarão apenas ouvindo este velhote cacarejar feito uma galinha choca e não vão perceber que essa liberdade está dentro de vocês, de cada um. E essa liberdade passa pela defesa encarniçada daquilo que vocês já têm, e que não pode ser trocado por nada que lhes seja prometido para amanhã. Troquemos as nossas certezas por diversas perplexidades, e aí nós vamos, quem sabe, nos entender.

Quem esteve presente nessas aulas do Bruno, lembra-se do esforço hercúleo que fez para pronunciar as palavras. Doze horas depois da última palestra, foi internado com uma grave crise hepática; ainda viria a recuperar completamente a consciência e a ter perto de si as pessoas que lhe eram próximas, mas já não saiu do hospital até a manhã do dia 27 de junho, quando faleceu.

Bruno Tolentino (1940-2007) publicou As Horas de Katharina (prêmio Jabuti 1995), A balada do cárcere (prêmio Cruz de Souza 1996 e Abgar Renault 1997),O mundo como Idéia (prêmio Jabuti 2003) e A imitação do amanhecer (prêmio Jabuti 2007).

Guilherme Malzoni Rabello é Engenheiro Naval pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Presidente do IFE.

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NOTAS:

[1]Classicamente, entende-se a santidade como a plenitude do ser, do ser-homem (n. do e.).

[2]No final da vida, em 1273, depois de uma experiência mística cujos detalhes nunca revelou, Tomás de Aquino quis queimar todos os seus escritos. Foi impedido de fazê-lo pelo secretário, frei Reginaldo, que lhe perguntou o porquê daquilo. A resposta de Tomás foi: “Não posso mais. Tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi” (n. do e.).

[3] Poemas 128-142 de As horas de Katharina (São Paulo: Cia. das Letras, 1994);  o poema O segredo encerra a série (n. do e.).

[4] O Mundo como Idéia (São Paulo: Globo, 2002); A Imitação do Amanhecer(São Paulo: Globo, 2006).

[5]“Denn das Schöne ist nichts / als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen, / und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht, / uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich” (Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, “Primeira Elegia”; n. do e.).

[6] “A imitação da música”, em O mundo como Idéia, I.

[7]Publicado no Brasil como A traição dos intelectuais, trad. Paulo Neves (São Paulo: 2007, Ed. Peixoto Neto).

Texto originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, nº 1, Jun/2008.