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Do “Reino da Necessidade” ao “Reino da Liberdade”: considerações sobre a técnica na origem da civilização (por Marcus Boeira)

Filosofia | 15/11/2018 | | IFE BRASIL

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Informações e créditos da imagem: Great Sphinx of Giza and the pyramid of Khafre. Most likely Hamish2k, the first uploader. Wikimedia Commons, link.

 

Dentre as causas históricas da civilização humana, há duas reconhecidas universalmente: a origem mito-poética, de matriz especulativa, e a origem produtiva, de raiz material. A primeira condiz com a importância dos símbolos para a formação das sociedades humanas. A segunda, com as diversas formas de conexão entre os seres humanos e a natureza. Ambas são tributárias da técnica, um tipo específico de raciocínio voltado para a atividade produtiva. A técnica indica habilidade, prescrição, método, enfim, o rigor com que alguém produz um bem exterior ao procedimento empregado. Em termos gerais, tanto o termo grego tecné como o latino ars designam um tipo de racionalidade endereçada à fabricação e construção de um objeto qualquer, estático ou dinâmico. Está, em outros termos, no campo semântico do verbo “fazer”.

Do ponto de vista especulativo, a técnica foi fundamental para a simbolização das narrativas originárias das sociedades humanas, para a constituição dos mitos e das genealogias divinas. Platão distingue o âmbito mimético, onde reside a imitatio e a criação universal das possibilidades universais do gênio humano e da imaginação, e o âmbito ético, em que as virtudes conduzem os habitantes da pólis a um nível superior de existência. O âmbito mimético é concebido pela ars poetica, pela técnica empregada na poiesis, e tem como escopo a representação de uma ação universal condizente com um mundo pleno de sentido e fonte de toda ordem para os habitantes do mundo concreto. Platão pinçou a arte poético-mimética em sua filosofia, mas não a aprofundou como o estagirita. Foi Aristóteles quem o fez, com proficiência ímpar. A remissão da ars poetica e, sob certo aspecto, da ars inveniendi ao universal desenvolveu-se pelo papel imprescindível da mimesis na configuração simbólica das sociedades. No fundo, a poética articulou as narrativas originárias, aquelas que explicitavam ao ser humano preso ao tempo e ao espaço a razão e a fundação de sua sociedade, bem como o sentido meta-histórico de sua própria existência. Dentre as diversas funções desempenhadas pelos símbolos e mitos nas antigas sociedades, três despontavam como principais: (i) a atribuição de sentido para a existência histórica, (ii) a sondagem genealógica dos deuses e heróis ancorada no princípio da existência cósmica e (iii) a idealização de um destino para os seres humanos, através da mediação entre o princípio e o termo da civilização. Estas funções eram vertidas ao auditório cultural dos povos pela sacralidade das composições poéticas, pela musicalidade evocada em seus intervalos, métricas e hexâmetros. A vocação do poeta estava devotada em apresentar à civilização seus rudimentos originais, antes presos pelo silêncio dos séculos e agora libertos através do domínio da técnica poética, manifesta pelo ato contemplativo da imagística e pela versificação. A ars poetica deflagrou a busca de sentido, uma etapa indispensável no itinerário intelectual dos povos, e atraiu as civilizações para a simbolização da ordem e a auto-interpretação de suas respectivas sociedades, traçando um fio condutor entre os símbolos, a linguagem e a consciência objetiva da realidade histórica.

O simbolismo das coisas que estão por trás da natureza submeteu a própria natureza ao seu escopo focal, supondo um nível intermediário entre a matéria e o espírito, entre a natureza propriamente dita e os personagens involucrados nas narrativas mencionadas. A abstração universal sopesada pela mimesis e lançada sobre a civilização instaurou uma tensão existencial intermitente, resolvida pelo irrompimento da estética. Da poética à simbolização, as formas de delineamento da beleza e da representação do “perfeito e inefável” ocuparam o espaço outorgado pela ars poetica, abastecendo as sociedades com ritos, práticas e instituições.

Do ângulo material, a técnica é igualmente indispensável. Foi Lucien Blaga, o grande intelectual romeno, quem erigiu dos escombros da história do experimento científico a manifestação teórica da imprescindibilidade da técnica para a construção da civilização artificial. Constatou que embora a antiguidade não tenha legado uma metodologia robusta e formalmente consistente para o desenvolvimento dos processos de conhecimento empírico da natureza, desempenhou, contudo, papel inegável na emancipação do domínio mitológico. Somente quando os elementos da natureza passaram a ser tomados como bastante em si mesmos, quando a natureza ocupou o lugar central na condição material de subsistência da espécie humana foi então possível o crescente apreço pela produção. A natureza passou a ser vista principalmente pelo que continha como ambiente material, mesmo ante a persistência da tendência mito-especulativa, que a designava por alusão a outro mundo. A observação da natureza foi enrijecida pelo cotidiano de cada sociedade, pela práxis experimental mediante a qual os seres humanos conectavam-se de algum modo à natureza e, por esta razão, propiciaram a lenta ascensão de uma noção arcaica de método, de alguma técnica primitiva destinada a facilitar a extração natural e viabilizar o primeiro salto abstrativo, a saber, a posse do conhecimento produtivo. A produção é, como a ação e a contemplação, objeto correspondente à taxonomia dos tipos de raciocínio humano. Produzir é operação típica do raciocínio técnico. Agir é próprio do raciocínio prático. E contemplar é raciocínio de tipo teorético/contemplativo.

Nós os seres humanos lidamos, portanto, com três modos de racionalidade: a racionalidade produtiva, própria da técnica, a racionalidade prática, própria da ação, e a racionalidade contemplativa, correspondente aos raciocínios teóricos. Entre elas, subsiste uma escala de abstração, mediada pela faculdade intelectiva e terminada no objeto causal a que cada operação racional tende. Assim, a primeira escala de abstração antes mencionada é de tipo tecnológico: permite ao ser humano tomar posse de um conhecimento produtivo, apto a estabelecer processos contínuos e duradouros no trato com a natureza.

É curioso que algumas civilizações primitivas tivessem desprezo pelo trabalho manual, encerrando os méritos e as honrarias na vida política e contemplativa. As aristocracias normalmente conferiam maior importância aos afazeres sociais e espirituais, residindo justamente nesses âmbitos de atividade a figura do homo sacer, o ser humano separado, diferenciado do restante da sociedade para dedicar-se aos assuntos mais relevantes, de acordo com a época. Coube ao ser humano rude, primitivo na acepção mais radical da expressão, a vocação social para a técnica. Os critérios por meio dos quais as atividades humanas eram reconhecidas giravam em torno da diferença entre o lúdico e o simbólico, entre as tarefas ociosas e as funções sociais fundamentais. Ao nobre, o esporte e a política. Ao pedagogo, a poética e a retórica. Ao não cidadão, apenas a arte de produzir os meios de subsistência e edificar as cidades. No fundo, o paradoxo entre o desprezo pela técnica e sua imprescindibilidade elucida uma tensão existencial de fundo no princípio das sociedades humanas: a de que os seres humanos transitam entre o mundo da técnica e o mundo que dela depende: a sociedade artificial.

A conquista da civilização só foi possível pela passagem do nível mais primitivo de envolvimento dos seres humanos com a natureza para outro, mais exigente, em que a natureza é contemplada desde fora, por imagens e impressões, através da primeira escala de abstração. A partir de então, o estado letárgico de indiferenciação das atividades é transfigurado em um cenário mais complexo, em que as ações produtivas são compreendidas no interior de um horizonte mais amplo, onde são diferenciadas e setorizadas. O contato cada vez mais profundo com a natureza conduziu a tal diferenciação, pelo que a dualidade entre experiência e conhecimento produtivo acarretou a crescente ocupação com o método.

As atividades técnicas, simultaneamente criativas e produtivas, constituíram o “reino da necessidade”: porque a civilização ancorou seus modos de vida primitivos na subsistência, o aperfeiçoamento da técnica foi perpendicular ao desenvolvimento intelectual das sociedades. Ou seja, a matéria foi condição para que, sob seus rudimentos, fosse soerguida a civilização ativa e contemplativa, própria de um nível mais denso de existência humana, lugar-comum da filosofia e da política, o que Hannah Arendt chama de “reino da liberdade”.

O “reino da liberdade” pode ser visto como aquele que, sustentado pelo da necessidade, dinamiza-se e desenvolve-se por dois modelos gerais de existência: o modelo social, pelo que os seres humanos dependem uns dos outros e reconhecem-se reciprocamente pelo que são e representam socialmente, como também pelo modo como agem; e o modelo intelectual, uma forma de vida inteiramente introspectiva, de acordo com a qual o sentido de vida é conquistado pela busca da sabedoria mediante a contemplação.

A vita activa e a vita contemplativa são dimensões enraizadas na condição humana. A primeira é própria da existência política e realizada no espaço público da palavra e da ação, no agir conjunto dos seres humanos. A segunda, uma forma sui generis de vida, entroniza-se em um âmbito reflexivo mais profundo, onde os sentidos e significados da existência são divididos e rearticulados em um esteio intelectivo mais amplo e permanente, um lugar em que as ideias são condensadas e fornecem subsídios existenciais para os que as possuem. O contemplativo tende à ciência das causas e dos princípios, de onde parte para desvelar as entidades, retirando da quietude as verdades e constatações do espírito para expô-las à humanidade. Apoia-se na máxima de Virgilio “felix qui potuit rerum cognoscere causas”(Georgicon 2, 490). Das duas dimensões brota o ideal de liberdade.

Obviamente, a ideia de liberdade pode ser vista também como princípio do primeiro reino – o da necessidade-, no sentido de que há uma liberdade específica que explica e fundamenta a liberdade produtiva. Ainda assim, a história das ideias e a história intelectual da liberdade normalmente convergem para definir e a analisar a liberdade a partir das modalidades de existência típicas do segundo reino, reduzindo o seu escopo filosófico a uma noção menos vital (nos sentidos vegetativo e apetitivo) e mais intelectual.

O reino da liberdade é dividido entre a sociedade política e a sociedade intelectual. A política e a filosofia coincidem em identificar que a ação e a contemplação reificam o ser humano de uma maneira distinta do modus operandi próprio da subsistência material. O reino da necessidade, embora condição material para a liberdade, a aprisiona ao labor, ao campo onde os seres humanos não podem prescindir de habitar e depender. Somente pela elevação humana ao reino da liberdade é possível tomar posse de um modo de vida mais autêntico e genuíno, menos efêmero e mais duradouro, menos instantâneo e mais pleno de sentido. O reino da necessidade não é capaz por si de conferir aos humanos um âmbito propício para uma vida dotada de sentido, para uma compreensão de si mais radical e menos vulnerável em que possam dedicar-se a perseguir certos fins, a tomar determinados bens como finalidades e adaptá-los aos respectivos modos de vida. A produção oferece o primeiro degrau da sobrevivência, constituindo-se como o espaço peculiar da economia, do oikos grego. Somente na transição do reino da necessidade para o mundo da liberdade, como alude Hannah Arendt, na articulação de um espaço público da palavra e da ação com outra esfera em que os seres humanos contemplam o cosmos e descobrem um sentido para si e para os demais é possível perquirir sobre os significados profundos designados pela palavra liberdade.

Liberdade é palavra polissêmica. Pode designar as mais variadas experiências, ideias, ideais, ideologias, condições, estados-de-coisas, capacidades e operações. Ante uma galeria semântica assaz complexa e multifacetada, ousamos distinguir liberdade e liberdades. No singular, a palavra liberdade pode ser vista, do ponto de vista universal, como a condição através da qual os seres humanos atingem um grau de plenitude mediante a derrota dos empecilhos e a conquista de um plano imaterial de sentido. Nessa acepção, liberdade é uma condição genuína, um atributo antropológico compartilhado pela humanidade ante a mera verificação da existência humana concreta. A liberdade é, por isso, condição para o reino da necessidade e para o da liberdade, conforme o que dissemos antes. A liberdade é requisito para o reino da necessidade porque apenas o ser humano é capaz de produzir e abstrair o modo e a forma de relacionar-se com a natureza, erigindo a partir disso um processo composto de etapas e procedimentos específicos, discernindo o “fazer” e o utilizando em outros experimentos de mesmo cariz. A produção “em larga escala” não é, nesses termos, uma conquista singular da sociedade industrial, mas, substancialmente falando, uma qualidade ontológica do mundo produtivo. Como se pode ver, é a economia a ciência moderna posterior erigida para dar conta do conhecimento destes processos, como também o são as ciências naturais em grande medida.

As liberdades, todavia, coincidem com as várias formas de expressão da experiência humana na história. No âmbito do que designamos como “reino da liberdade” reside diversas dimensões da existência, como a política e a filosofia, que aludem cada qual a tipos de liberdades correspondentes: a liberdade política de deliberar e decidir e a liberdade de pensamento, opinião e expressão. Há, todavia, outros tipos de liberdade que dependem para sua consumação destas liberdades mencionadas, como a liberdade de associação, reunião e locomoção.

O engenho humano foi, desde o princípio das sociedades, capaz de articular estas dimensões e modelos, inclusive empregando processos de simbolização para elevar e dignificar cada um dos reinos analisados. A natureza, por exemplo, foi tomada como caminho para o paraíso, imagem do lugar de plenitude, símbolo da ordem criada, figura da perfeição, objeto das leis cósmicas, etc. A abstração da qual falamos no início levou o ser humano a contemplar a natureza desde fora, presentada aos sentidos como imagem ampliada, simbolizada e significada por atributos e propriedades adicionadas, em suma, como um retrato destinado a remeter a outro mundo, ao paraíso perdido, em alusão ao épico de J. Milton.

Do ponto de vista civilizatório, a natureza pavimentou a transposição do espírito humano da necessidade à liberdade, erigindo a partir de então uma miríade de concepções de liberdade: a liberdade econômica, nascida pela imprescindibilidade do reino da necessidade; a liberdade política, condizente com a vida social. A liberdade em sentido filosófico, atinente à vida contemplativa. A história intelectual da humanidade costurou estas dimensões, alocando o ideal de liberdade para os reinos da existência humana.

Marcus Boeira é Professor de Filosofia Política e Filosofia do Direito, membro da Confraria de Artes Liberais (http://artesliberais.com.br/).

Livres e indecisos

Opinião Pública | 26/09/2018 | | IFE CAMPINAS

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O homem contemporâneo é um sujeito curioso, a julgar, pelo menos, pela média daqueles que compõem meu círculo de amizades e os muitos desconhecidos que dão o ar de sua graça existencial nos muitos e muitos processos de família que me cobram uma resposta jurisprudente na entrega do justo concreto.

Tenho a nítida impressão de que poucos se comprometem verdadeiramente com um ideal que valha a pena. O sujeito vive dividido entre o trabalho e a família, mas nem ou outro parecem saciá-lo: o trabalho, de fato, em muitos setores, vai alienando-o da realidade, a ponto de se tornar um fardo invencível e a família lembra mais um cárcere privado voluntariamente escolhido à espera de um indulto externo, como uma aventura amorosa, ou de uma revolução intestina, como o abandono ou o divórcio. Mesmo que esse homem tenha-se libertado de muitas amarras que entravavam a sua liberdade de fora, sobretudo depois dos totalitarismos do século XX, ele não é capaz de se libertar de suas limitações internas.

Grande parte da atual confusão acerca da liberdade deve-se ao fato de pensarmos que este belo atributo de nossa natureza consiste tão somente na ausência de limitações externas, esquecendo-nos de que são tão ou mais importantes as limitações internas, buscadas ou simplesmente aceitas, que promovem o desenvolvimento da nossa verdadeira personalidade. Trata-se, essencialmente, de possuir e de saber exercer um potencial interior que inclui o domínio de si e a realização pessoal, ambos em íntima relação: o compromissar-se.

Para muito pouco serve uma liberdade se um homem carece de valores ou ideais. A serventia da liberdade é menor se esse mesmo homem tem pavor ao compromisso. Recebo, nas redes sociais, muitas postagens de sujeitos casados com dizeres que dão bem o tom dessa aversão à uma entrega vital como a do matrimônio: “Namora, idiota!”, “Casamento é igual a…(impublicável)”, “Mulher é igual a carro: venceu a garantia de fábrica, é hora de trocar!”. Propiciam algum diversionismo, mas, no fundo, tentam encobrir um desejo de fuga do presente e de um projeto de vida em comum a dois.

Recentemente, próximo ao aniversário de um grande amigo de infância, perguntei quando seria a festa e ele me respondeu que estava pensando profundamente sobre isso, porque estava “namorando” duas mulheres ao mesmo tempo. Convidei-o à reflexão, dizendo-lhe, muito francamente, que, quando não temos ideais na vida, nossas opções passam a ter pouco ou nenhum valor real. E, caso ele resolvesse fazer duas festas, na mesma oportunidade, consultei-o se ele não se incomodaria de eu estar presente em ambas as festividades com a mesma mulher…

Qual a valia de uma liberdade que, sem aquelas amarras externas, sobrevive num mundo que perdeu grande parte de seus critérios de valor? É um paradoxo mortificante orgulhar-nos de termos varrido todos os entulhos totalitários e autoritários do passado, abrindo novas sendas para nossa liberdade e, ao mesmo tempo, ter a crescente convicção de que a maioria delas são caminhos que não levam a lugar nenhum. Ou, ainda, diante daqueles poucos caminhos seguros que nos restaram, ter nossa vontade de escolha paralisada, porque temos medo ao compromisso.

Quando uma vontade, em regra, não se decide, corremos o risco de viver sob o império dos sentidos, além de propiciarmos a volta justamente de todo aquele entulho, porque a falta do exercício do poder de escolha vai cedendo espaço para uma ação “mais convicta” de outras realidades, tanto no campo pessoal quanto no político.

Se uma razão capitaneadora da vontade de um homem não governa sua vida, a lembrar mais um rastro de omissão na tomada de decisões comprometedoras, outras realidades irão governá-lo: em nossa realidade, arriscaria dizer que as paixões pelo sexo, pelo dinheiro ou pela bebida tendem a ser o motorneiro de seu bonde existencial.

O homem atual, como o homem de épocas anteriores, está na encruzilhada de vários caminhos de que se descortinam à sua frente, mas com uma diferença: o homem do passado preferia enfrentar a questão e tomar uma saída e nós preferimos uma cômoda paralisação, porque sabemos, no fundo, que uma escolha vital importa na exclusão das outras, já que almejamos, a todo tempo, uma vida com todas as saídas abertas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 26/09/2018, Página A-2, Opinião.

Livre para nascer

Opinião Pública | 19/09/2018 | | IFE CAMPINAS

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Não faz muito tempo que, num dia de plantão judiciário, um casal fez um pedido de alvará para abortar um feto que portava síndrome de Down, diagnosticada umas semanas antes pelo médico. Antes de proferir a decisão, resolvi ouvir os cônjuges que, aliás, eram bem diferentes: ele era filho de catalães e ela era neta de argelinos, uma diversidade que me chamou a atenção e que costuma presentear a família com filhos repletos daquela beleza moura que costumamos assistir nos filmes de época. Ponderei as reais razões do casal e tomei a decisão logo em seguida.

Nossa sociedade levantou a bandeira da aceitação das diferenças, da integração das minorias e da inclusão social dos menos capacitados. Aliás, nesse ponto, referir-se a alguém como um inválido é motivo de repreensão pela patrulha politicamente correta. Independentemente disso, de fato, esta expressão nunca me agradou, pois sempre leva um conta um certo viés utilitarista do indivíduo no seio social: o sujeito tem uma invalidez permanente e, logo, não serve socialmente.

Todos temos algo para aportar para os outros, mas, ao que parece, nossa sociedade está cada vez mais insensível para a exclusão pré-natal de quem não porta uma “normalidade” genética, principalmente de natureza irreversível. Não adianta reclamar. Começamos com a tal “autorização para interrupção pré-natal de feto anencefálico” e caminhamos, a passos firmes, para outros tipos de “autorizações”, todas, em bom português, espécies do gênero aborto eugênico.

No fundo, há uma clara intolerância social para fetos que não gozem de boa saúde genética. Os dados estatísticos de tais “autorizações” que bem poderiam ser chamados de “alvarás judiciais para matar”, crescem no mundo todo e estima-se, segundo estudos acadêmicos, que, na Europa, a taxa de rejeição de fetos com síndrome de Down esteja na casa de 80-90% dos casos. Considerando que esse fetos viram detritos hospitalares, as lixeiras de muitos hospitais mais se assemelham a terríveis cemitérios. E, os europeus, que já repugnavam os imigrantes, agora, repugnam a si mesmos.

É um pena, porque, se por um lado, os portadores de tal síndrome costumam ter problemas de saúde acima da média e incapacidade intelectual em algum grau, por outro, é certo que programas de estimulação precoce têm melhorado consideravelmente suas habilidades e os avanços científicos têm permitido uma sobrevida maior e mais saudável. Nada como a medicina em favor da vida e não a favor de “cortes genéticos” cada vez mais altos.

Nesse ritmo de assepsia social, os pais teriam direito à uma “descendência sã” e à tal “autorização para interrupção da gravidez” e, na mesma sociedade, paradoxalmente, seria esperado que as empresas contratassem os portadores dessa síndrome, porque, afinal, seus pais não tiveram o “insight” de tê-los abortado no momento certo.

A eugenia estatal parece-nos um medida totalitária, mas a eugenia privada vai se assentando como um direito que, enquanto não for assegurado pela lei, pode ser exercido com a chancela de um alvará judicial. É admirável o mundo novo que surge a partir dessa esquizofrenia social.

Então, vamos ser consequentes com essa lógica macabra: libere-se o aborto para as más formações fetais (atual estágio lógico) e, caso não detectadas na fase de gestação, libere-se o aborto pós-nascimento (próximo passo lógico), afinal, a causa é a mesma. Só mudaria o lugar do homicídio: no primeiro caso, seria no útero. No segundo, fora dele. Ademais, como “condenar” os pais a este infindável sofrimento de ter um filho com síndrome de Down, não é?

Sem dúvida, essa deificação da diversidade social não passa de um discurso politicamente correto, a fim de acomodar as minorias e os diferentes mais interessantes ou que falem mais alto no cenário social. O elogio à diversidade e a incorporação da prática privada da exclusão pré-natal, no caso aqui apresentado, são uma demonstração cabal das aspirações contraditórias de uma sociedade que quer deixar todas as saídas abertas.

A cultura do descarte, denunciada por Francisco, mostra, nessa estória, sua verdadeira face, tão verdadeira quanto a face da filha do casal do plantão, que apareceu outro dia no fórum, junto com seus pais, que me agradeceram pela decisão tomada naquele dia. Na verdade, fui eu quem agradeci, porque pude ver, em seus pequenos traços, aquela beleza moura que tanto suspeitava.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 19/09/2018, Página A-2, Opinião.

Neo-jacobinos

Opinião Pública | 13/06/2018 | | IFE CAMPINAS

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No último mês, juntamente com um colega de toga, organizamos um evento sobre ideologia de gênero e um dos momentos mais curiosos foi ter ouvido, de outra pessoa envolvida na organização, se o perfil conservador do palestrante não atrairia uma turbamulta enlouquecida de alunos de graduação de humanas, ávidos por invadir o ambiente do evento e impedir sua realização. Eu respondi com uma pergunta: “Liberdade de expressão é fazer calar quem pensa diferente?”.

Há tempos, ando meio farto da deterioração da liberdade de expressão. Formas disfarçadas de censura, silêncio obsequioso, avisos de conteúdo (“trigger warnings”), espaços seguros (“safe spaces”) e uma série de expedientes autoritários que, no fundo, apontam para uma séria crise do pensamento, pois as autoridades intelectuais passaram a definir para todos a “única pauta correta” na reflexão das questões sociais que nos assolam.

Liberdade de expressão, para esses neo-jacobinos, não representa a possibilidade de escutar ideias distintas, tantas vezes incômodas, e, logo em seguida, abrir o diálogo. Significa, em nome da “tolerância e da diversidade”, acantonar esses “desajustados ideológicos” nas catacumbas do silêncio no debate público.

À primeira vista, nada é mais oposto à tolerânia e à diversidade do que ver um bando de crianças histéricas, filhotes intelectuais daqueles neo-jacobinos, carregando faixas de repúdio e proibindo a expressão de terceiros. Se eu fosse o dito palestrante, levaria umas fraldas e umas mamadeiras, no meio do notebook e dos livros, para distribui-las como bônus para a clientela na plateia.

Também é curioso notar que o liberalismo político conduziu muitos de nós, em muitas pautas sociais, ao mais puro fanatismo ideológico, cujas ideias, por mais toscas, pedestres e limitadas que pareçam, foram alçadas à condição de dogmas no credo político rezado pela turma neo-jacobina.

Para alguns estudiosos, esse crescente fenômeno consiste no triunfo do “hiper-liberalismo”, em outras palavras, o império do liberalismo moderno levado às últimas consequências. Um desses estudiosos, ao explicá-lo, vale-se de Mill, em sua principal obra sobre a liberdade, a qual, segundo ele, teria operado uma crucial virada de entendimento sobre o próprio conceito de liberdade.

Até Mill, a liberdade indicava um campo de autonomia face à lei ou à coação alheia. Depois dele, essa noção de liberdade negativa ganhou contornos positivos: o homem livre é o homem senhor de uma vontade imaculada pelas contigências históricas e culturais. Em bom português, minha identidade dispensa a opinião de terceiros ou de qualquer outra forma de autoridade.

Hoje, vivemos essa noção de liberdade no limite, porque essa auto-estultificação da identidade individual chegou ao centro da hierarquia de valores na qual sempre procuramos viver e, como efeito, tudo o que representava o outro, a autoridade ou a tradição foi despachado para a periferia.

Esse projeto de maximização libertária tem dois efeitos destrutivos. No primeiro, aquilo que nos torna diversos não é uma identidade construída sobre o nada. Somos seres narrativos com história e papéis que nos precedem, os quais transportamos para a identidade que construímos e que nos torna irrepetíveis.

No segundo, a adoração da liberdade como autonomia radical converte-se, ironicamente, numa forma de pensamento único. Surgem as hordas marcadas pela bovinidade intelectual e o hiper-liberalismo converte-se em religião secular: pensar diferentemente deixa de ser uma decorrência natural de seres plurais e racionais e passa a ser uma heresia que ofende os prosélitos dessa nova igreja. Em nome da liberdade, acaba-se com a liberdade.

A reflexão sobre os problemas sociais é construída por todos mediante a prática das virtudes da humildade intelectual, da abertura cognitiva ao outro e, sobretudo, do amor à verdade. Quando vividas, tais excelências nos dispõem a escutar com atenção e respeito àqueles que discrepam daquilo em que acreditamos.

O mesmo Mill, um dia, ensinou-nos que reconhecer a possibilidade de que alguém possa estar no erro é razão suficiente para escutá-lo e levá-lo a sério e não somente tolerar de má vontade os pontos de vista discordantes. E, para quem se julga estar certo, essa atitude de escuta serve para aprofundar sua postura argumentativa e melhorar sua capacidade de defendê-la. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 13/06/2018, Página A-2, Opinião.

Um divã para a resolução 01/2018

Opinião Pública | 14/02/2018 | | IFE CAMPINAS

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O Conselho Federal de Psicologia (CFP) editou uma nova resolução (01/2018), cujo objeto visa estabelecer regras de atuação para os psicólogos nos casos de indivíduos com disforia de gênero, isto é, o sujeito que se identifica com um gênero sem correspondência com seu sexo biológico.

O artigo 8.º da dita resolução dispõe ser vedado às psicólogas e aos psicólogos, no exercício da prática profissional, propor, realizar ou colaborar, sob uma perspectiva patologizante, com eventos ou serviços privados, públicos, institucionais, comunitários ou promocionais que visem a terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis.

Nesse ponto, os membros do CFP, no afã de regulamentar, acabaram por amordaçar o livre desempenho da profissão, cujo maior efeito jurídico é o de afrontar o artigo 5º, inciso IX, da CF/88, ao mesmo tempo em amordaçaram o princípio da dignidade da pessoa humana, também com assento constitucional, pois retiraram do paciente o direito de ser ajudado a buscar a identificação de seu gênero com seu sexo biológico.

Em suma, numa tacada só, o CFP conseguiu cometer uma barbaridade legal que nem um calouro de direito se atreveria a fazê-lo. Mas sabemos a motivação desse dispositivo teratológico. É o credo da cartilha da ideologia de gênero, inserido discretamente por meio da ressalva “sob uma perspectiva patologizante”, cujo efeito será o de impor, pela via regulamentar, uma única solução para o psicólogo e o paciente: o transexual continuará sendo um transexual e ele não poderá sequer pretender mudar sua inclinação disfórica, sendo condenado existencialmente a ser algo ao arrepio de sua vontade interior.

Esse problema criado é muito grave. Ao que parece, quem está “sob uma perspectiva patologizante” é o próprio CFP, porque o artigo de sua autoria ignora, por completo, alguns princípios bioéticos elementares, os quais fazem parte do Belmont Report, publicado pela Comissão Americana para a Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica, com vista à tutela deontológica das relações entre o profissional e o paciente.

O princípio da autonomia demanda do profissional da saúde o respeito à vontade do paciente, considerando, em certa medida, seus valores morais e culturais. Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida e o respeito à sua intimidade. Desse princípio decorre a exigência do consentimento livre e informado.

O princípio da beneficência requer o atendimento dos interesses do paciente com vistas ao bem-estar físico e espiritual. É fruto da tradição hipocrática: o tratamento deve ser para o bem do enfermo, promovendo-o pela práxis médica, evitando o mal ou, se não for possível, minimizando seus efeitos.

O princípio da não-maleficência é o reverso da medalha do anterior e proíbe acarretar dano intencional. Deriva da máxima da ética médica conhecida por primum non nocere (em primeiro lugar, não fazer mal). O princípio da justiça exige uma relação de equidade entre benefícios, riscos e encargos proporcionados pelos serviços de natureza biomédica.

Ademais, todos sabemos que a formação dos psicólogos, à semelhança dos médicos, sobre o fenômeno do transexualismo é deficiente, porque ambas disciplinas são herdeiras da tradição cartesiana marcada pela cisão dos domínios do corpo e do espírito, sendo o primeiro relevante para o médico e, o segundo, para o psicólogo.

E por haver muitos aspectos obscuros relativos à definição do fenômeno, sua etiologia e suas distintas alternativas terapêuticas, convém privilegiar ainda mais aqueles princípios bioéticos do que simplesmente ignorá-los em favor da receita pronta e acabada da ideologia de gênero.

Nessa nova resolução do CFP, psicologia e ideologia cumprem o mesmo papel. Doutrinar. É o caminho para o desastre e, por isso, urge que a ciência seja colocada em seu devido lugar, pois, quando aderimos a uma ideologia, ganhamos em segurança o que perdemos em liberdade e dignidade. É hora de mandar essa resolução para uma terapia no divã, onde ela deverá ser lembrada que de não há “ideologias sagradas” em psicologia, porque a experiência humana é sempre mais vasta do que as fantasias dos ideólogos. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14/02/2018, Página A-2, Opinião.