Dentre as causas históricas da civilização humana, há duas reconhecidas universalmente: a origem mito-poética, de matriz especulativa, e a origem produtiva, de raiz material. A primeira condiz com a importância dos símbolos para a formação das sociedades humanas. A segunda, com as diversas formas de conexão entre os seres humanos e a natureza. Ambas são tributárias da técnica, um tipo específico de raciocínio voltado para a atividade produtiva. A técnica indica habilidade, prescrição, método, enfim, o rigor com que alguém produz um bem exterior ao procedimento empregado. Em termos gerais, tanto o termo grego tecné como o latino ars designam um tipo de racionalidade endereçada à fabricação e construção de um objeto qualquer, estático ou dinâmico. Está, em outros termos, no campo semântico do verbo “fazer”.
Do ponto de vista especulativo, a técnica foi fundamental para a simbolização das narrativas originárias das sociedades humanas, para a constituição dos mitos e das genealogias divinas. Platão distingue o âmbito mimético, onde reside a imitatio e a criação universal das possibilidades universais do gênio humano e da imaginação, e o âmbito ético, em que as virtudes conduzem os habitantes da pólis a um nível superior de existência. O âmbito mimético é concebido pela ars poetica, pela técnica empregada na poiesis, e tem como escopo a representação de uma ação universal condizente com um mundo pleno de sentido e fonte de toda ordem para os habitantes do mundo concreto. Platão pinçou a arte poético-mimética em sua filosofia, mas não a aprofundou como o estagirita. Foi Aristóteles quem o fez, com proficiência ímpar. A remissão da ars poetica e, sob certo aspecto, da ars inveniendi ao universal desenvolveu-se pelo papel imprescindível da mimesis na configuração simbólica das sociedades. No fundo, a poética articulou as narrativas originárias, aquelas que explicitavam ao ser humano preso ao tempo e ao espaço a razão e a fundação de sua sociedade, bem como o sentido meta-histórico de sua própria existência. Dentre as diversas funções desempenhadas pelos símbolos e mitos nas antigas sociedades, três despontavam como principais: (i) a atribuição de sentido para a existência histórica, (ii) a sondagem genealógica dos deuses e heróis ancorada no princípio da existência cósmica e (iii) a idealização de um destino para os seres humanos, através da mediação entre o princípio e o termo da civilização. Estas funções eram vertidas ao auditório cultural dos povos pela sacralidade das composições poéticas, pela musicalidade evocada em seus intervalos, métricas e hexâmetros. A vocação do poeta estava devotada em apresentar à civilização seus rudimentos originais, antes presos pelo silêncio dos séculos e agora libertos através do domínio da técnica poética, manifesta pelo ato contemplativo da imagística e pela versificação. A ars poetica deflagrou a busca de sentido, uma etapa indispensável no itinerário intelectual dos povos, e atraiu as civilizações para a simbolização da ordem e a auto-interpretação de suas respectivas sociedades, traçando um fio condutor entre os símbolos, a linguagem e a consciência objetiva da realidade histórica.
O simbolismo das coisas que estão por trás da natureza submeteu a própria natureza ao seu escopo focal, supondo um nível intermediário entre a matéria e o espírito, entre a natureza propriamente dita e os personagens involucrados nas narrativas mencionadas. A abstração universal sopesada pela mimesis e lançada sobre a civilização instaurou uma tensão existencial intermitente, resolvida pelo irrompimento da estética. Da poética à simbolização, as formas de delineamento da beleza e da representação do “perfeito e inefável” ocuparam o espaço outorgado pela ars poetica, abastecendo as sociedades com ritos, práticas e instituições.
Do ângulo material, a técnica é igualmente indispensável. Foi Lucien Blaga, o grande intelectual romeno, quem erigiu dos escombros da história do experimento científico a manifestação teórica da imprescindibilidade da técnica para a construção da civilização artificial. Constatou que embora a antiguidade não tenha legado uma metodologia robusta e formalmente consistente para o desenvolvimento dos processos de conhecimento empírico da natureza, desempenhou, contudo, papel inegável na emancipação do domínio mitológico. Somente quando os elementos da natureza passaram a ser tomados como bastante em si mesmos, quando a natureza ocupou o lugar central na condição material de subsistência da espécie humana foi então possível o crescente apreço pela produção. A natureza passou a ser vista principalmente pelo que continha como ambiente material, mesmo ante a persistência da tendência mito-especulativa, que a designava por alusão a outro mundo. A observação da natureza foi enrijecida pelo cotidiano de cada sociedade, pela práxis experimental mediante a qual os seres humanos conectavam-se de algum modo à natureza e, por esta razão, propiciaram a lenta ascensão de uma noção arcaica de método, de alguma técnica primitiva destinada a facilitar a extração natural e viabilizar o primeiro salto abstrativo, a saber, a posse do conhecimento produtivo. A produção é, como a ação e a contemplação, objeto correspondente à taxonomia dos tipos de raciocínio humano. Produzir é operação típica do raciocínio técnico. Agir é próprio do raciocínio prático. E contemplar é raciocínio de tipo teorético/contemplativo.
Nós os seres humanos lidamos, portanto, com três modos de racionalidade: a racionalidade produtiva, própria da técnica, a racionalidade prática, própria da ação, e a racionalidade contemplativa, correspondente aos raciocínios teóricos. Entre elas, subsiste uma escala de abstração, mediada pela faculdade intelectiva e terminada no objeto causal a que cada operação racional tende. Assim, a primeira escala de abstração antes mencionada é de tipo tecnológico: permite ao ser humano tomar posse de um conhecimento produtivo, apto a estabelecer processos contínuos e duradouros no trato com a natureza.
É curioso que algumas civilizações primitivas tivessem desprezo pelo trabalho manual, encerrando os méritos e as honrarias na vida política e contemplativa. As aristocracias normalmente conferiam maior importância aos afazeres sociais e espirituais, residindo justamente nesses âmbitos de atividade a figura do homo sacer, o ser humano separado, diferenciado do restante da sociedade para dedicar-se aos assuntos mais relevantes, de acordo com a época. Coube ao ser humano rude, primitivo na acepção mais radical da expressão, a vocação social para a técnica. Os critérios por meio dos quais as atividades humanas eram reconhecidas giravam em torno da diferença entre o lúdico e o simbólico, entre as tarefas ociosas e as funções sociais fundamentais. Ao nobre, o esporte e a política. Ao pedagogo, a poética e a retórica. Ao não cidadão, apenas a arte de produzir os meios de subsistência e edificar as cidades. No fundo, o paradoxo entre o desprezo pela técnica e sua imprescindibilidade elucida uma tensão existencial de fundo no princípio das sociedades humanas: a de que os seres humanos transitam entre o mundo da técnica e o mundo que dela depende: a sociedade artificial.
A conquista da civilização só foi possível pela passagem do nível mais primitivo de envolvimento dos seres humanos com a natureza para outro, mais exigente, em que a natureza é contemplada desde fora, por imagens e impressões, através da primeira escala de abstração. A partir de então, o estado letárgico de indiferenciação das atividades é transfigurado em um cenário mais complexo, em que as ações produtivas são compreendidas no interior de um horizonte mais amplo, onde são diferenciadas e setorizadas. O contato cada vez mais profundo com a natureza conduziu a tal diferenciação, pelo que a dualidade entre experiência e conhecimento produtivo acarretou a crescente ocupação com o método.
As atividades técnicas, simultaneamente criativas e produtivas, constituíram o “reino da necessidade”: porque a civilização ancorou seus modos de vida primitivos na subsistência, o aperfeiçoamento da técnica foi perpendicular ao desenvolvimento intelectual das sociedades. Ou seja, a matéria foi condição para que, sob seus rudimentos, fosse soerguida a civilização ativa e contemplativa, própria de um nível mais denso de existência humana, lugar-comum da filosofia e da política, o que Hannah Arendt chama de “reino da liberdade”.
O “reino da liberdade” pode ser visto como aquele que, sustentado pelo da necessidade, dinamiza-se e desenvolve-se por dois modelos gerais de existência: o modelo social, pelo que os seres humanos dependem uns dos outros e reconhecem-se reciprocamente pelo que são e representam socialmente, como também pelo modo como agem; e o modelo intelectual, uma forma de vida inteiramente introspectiva, de acordo com a qual o sentido de vida é conquistado pela busca da sabedoria mediante a contemplação.
A vita activa e a vita contemplativa são dimensões enraizadas na condição humana. A primeira é própria da existência política e realizada no espaço público da palavra e da ação, no agir conjunto dos seres humanos. A segunda, uma forma sui generis de vida, entroniza-se em um âmbito reflexivo mais profundo, onde os sentidos e significados da existência são divididos e rearticulados em um esteio intelectivo mais amplo e permanente, um lugar em que as ideias são condensadas e fornecem subsídios existenciais para os que as possuem. O contemplativo tende à ciência das causas e dos princípios, de onde parte para desvelar as entidades, retirando da quietude as verdades e constatações do espírito para expô-las à humanidade. Apoia-se na máxima de Virgilio “felix qui potuit rerum cognoscere causas”(Georgicon 2, 490). Das duas dimensões brota o ideal de liberdade.
Obviamente, a ideia de liberdade pode ser vista também como princípio do primeiro reino – o da necessidade-, no sentido de que há uma liberdade específica que explica e fundamenta a liberdade produtiva. Ainda assim, a história das ideias e a história intelectual da liberdade normalmente convergem para definir e a analisar a liberdade a partir das modalidades de existência típicas do segundo reino, reduzindo o seu escopo filosófico a uma noção menos vital (nos sentidos vegetativo e apetitivo) e mais intelectual.
O reino da liberdade é dividido entre a sociedade política e a sociedade intelectual. A política e a filosofia coincidem em identificar que a ação e a contemplação reificam o ser humano de uma maneira distinta do modus operandi próprio da subsistência material. O reino da necessidade, embora condição material para a liberdade, a aprisiona ao labor, ao campo onde os seres humanos não podem prescindir de habitar e depender. Somente pela elevação humana ao reino da liberdade é possível tomar posse de um modo de vida mais autêntico e genuíno, menos efêmero e mais duradouro, menos instantâneo e mais pleno de sentido. O reino da necessidade não é capaz por si de conferir aos humanos um âmbito propício para uma vida dotada de sentido, para uma compreensão de si mais radical e menos vulnerável em que possam dedicar-se a perseguir certos fins, a tomar determinados bens como finalidades e adaptá-los aos respectivos modos de vida. A produção oferece o primeiro degrau da sobrevivência, constituindo-se como o espaço peculiar da economia, do oikos grego. Somente na transição do reino da necessidade para o mundo da liberdade, como alude Hannah Arendt, na articulação de um espaço público da palavra e da ação com outra esfera em que os seres humanos contemplam o cosmos e descobrem um sentido para si e para os demais é possível perquirir sobre os significados profundos designados pela palavra liberdade.
Liberdade é palavra polissêmica. Pode designar as mais variadas experiências, ideias, ideais, ideologias, condições, estados-de-coisas, capacidades e operações. Ante uma galeria semântica assaz complexa e multifacetada, ousamos distinguir liberdade e liberdades. No singular, a palavra liberdade pode ser vista, do ponto de vista universal, como a condição através da qual os seres humanos atingem um grau de plenitude mediante a derrota dos empecilhos e a conquista de um plano imaterial de sentido. Nessa acepção, liberdade é uma condição genuína, um atributo antropológico compartilhado pela humanidade ante a mera verificação da existência humana concreta. A liberdade é, por isso, condição para o reino da necessidade e para o da liberdade, conforme o que dissemos antes. A liberdade é requisito para o reino da necessidade porque apenas o ser humano é capaz de produzir e abstrair o modo e a forma de relacionar-se com a natureza, erigindo a partir disso um processo composto de etapas e procedimentos específicos, discernindo o “fazer” e o utilizando em outros experimentos de mesmo cariz. A produção “em larga escala” não é, nesses termos, uma conquista singular da sociedade industrial, mas, substancialmente falando, uma qualidade ontológica do mundo produtivo. Como se pode ver, é a economia a ciência moderna posterior erigida para dar conta do conhecimento destes processos, como também o são as ciências naturais em grande medida.
As liberdades, todavia, coincidem com as várias formas de expressão da experiência humana na história. No âmbito do que designamos como “reino da liberdade” reside diversas dimensões da existência, como a política e a filosofia, que aludem cada qual a tipos de liberdades correspondentes: a liberdade política de deliberar e decidir e a liberdade de pensamento, opinião e expressão. Há, todavia, outros tipos de liberdade que dependem para sua consumação destas liberdades mencionadas, como a liberdade de associação, reunião e locomoção.
O engenho humano foi, desde o princípio das sociedades, capaz de articular estas dimensões e modelos, inclusive empregando processos de simbolização para elevar e dignificar cada um dos reinos analisados. A natureza, por exemplo, foi tomada como caminho para o paraíso, imagem do lugar de plenitude, símbolo da ordem criada, figura da perfeição, objeto das leis cósmicas, etc. A abstração da qual falamos no início levou o ser humano a contemplar a natureza desde fora, presentada aos sentidos como imagem ampliada, simbolizada e significada por atributos e propriedades adicionadas, em suma, como um retrato destinado a remeter a outro mundo, ao paraíso perdido, em alusão ao épico de J. Milton.
Do ponto de vista civilizatório, a natureza pavimentou a transposição do espírito humano da necessidade à liberdade, erigindo a partir de então uma miríade de concepções de liberdade: a liberdade econômica, nascida pela imprescindibilidade do reino da necessidade; a liberdade política, condizente com a vida social. A liberdade em sentido filosófico, atinente à vida contemplativa. A história intelectual da humanidade costurou estas dimensões, alocando o ideal de liberdade para os reinos da existência humana.
Marcus Boeira é Professor de Filosofia Política e Filosofia do Direito, membro da Confraria de Artes Liberais (http://artesliberais.com.br/).