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Livres e indecisos

Opinião Pública | 26/09/2018 | | IFE CAMPINAS

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O homem contemporâneo é um sujeito curioso, a julgar, pelo menos, pela média daqueles que compõem meu círculo de amizades e os muitos desconhecidos que dão o ar de sua graça existencial nos muitos e muitos processos de família que me cobram uma resposta jurisprudente na entrega do justo concreto.

Tenho a nítida impressão de que poucos se comprometem verdadeiramente com um ideal que valha a pena. O sujeito vive dividido entre o trabalho e a família, mas nem ou outro parecem saciá-lo: o trabalho, de fato, em muitos setores, vai alienando-o da realidade, a ponto de se tornar um fardo invencível e a família lembra mais um cárcere privado voluntariamente escolhido à espera de um indulto externo, como uma aventura amorosa, ou de uma revolução intestina, como o abandono ou o divórcio. Mesmo que esse homem tenha-se libertado de muitas amarras que entravavam a sua liberdade de fora, sobretudo depois dos totalitarismos do século XX, ele não é capaz de se libertar de suas limitações internas.

Grande parte da atual confusão acerca da liberdade deve-se ao fato de pensarmos que este belo atributo de nossa natureza consiste tão somente na ausência de limitações externas, esquecendo-nos de que são tão ou mais importantes as limitações internas, buscadas ou simplesmente aceitas, que promovem o desenvolvimento da nossa verdadeira personalidade. Trata-se, essencialmente, de possuir e de saber exercer um potencial interior que inclui o domínio de si e a realização pessoal, ambos em íntima relação: o compromissar-se.

Para muito pouco serve uma liberdade se um homem carece de valores ou ideais. A serventia da liberdade é menor se esse mesmo homem tem pavor ao compromisso. Recebo, nas redes sociais, muitas postagens de sujeitos casados com dizeres que dão bem o tom dessa aversão à uma entrega vital como a do matrimônio: “Namora, idiota!”, “Casamento é igual a…(impublicável)”, “Mulher é igual a carro: venceu a garantia de fábrica, é hora de trocar!”. Propiciam algum diversionismo, mas, no fundo, tentam encobrir um desejo de fuga do presente e de um projeto de vida em comum a dois.

Recentemente, próximo ao aniversário de um grande amigo de infância, perguntei quando seria a festa e ele me respondeu que estava pensando profundamente sobre isso, porque estava “namorando” duas mulheres ao mesmo tempo. Convidei-o à reflexão, dizendo-lhe, muito francamente, que, quando não temos ideais na vida, nossas opções passam a ter pouco ou nenhum valor real. E, caso ele resolvesse fazer duas festas, na mesma oportunidade, consultei-o se ele não se incomodaria de eu estar presente em ambas as festividades com a mesma mulher…

Qual a valia de uma liberdade que, sem aquelas amarras externas, sobrevive num mundo que perdeu grande parte de seus critérios de valor? É um paradoxo mortificante orgulhar-nos de termos varrido todos os entulhos totalitários e autoritários do passado, abrindo novas sendas para nossa liberdade e, ao mesmo tempo, ter a crescente convicção de que a maioria delas são caminhos que não levam a lugar nenhum. Ou, ainda, diante daqueles poucos caminhos seguros que nos restaram, ter nossa vontade de escolha paralisada, porque temos medo ao compromisso.

Quando uma vontade, em regra, não se decide, corremos o risco de viver sob o império dos sentidos, além de propiciarmos a volta justamente de todo aquele entulho, porque a falta do exercício do poder de escolha vai cedendo espaço para uma ação “mais convicta” de outras realidades, tanto no campo pessoal quanto no político.

Se uma razão capitaneadora da vontade de um homem não governa sua vida, a lembrar mais um rastro de omissão na tomada de decisões comprometedoras, outras realidades irão governá-lo: em nossa realidade, arriscaria dizer que as paixões pelo sexo, pelo dinheiro ou pela bebida tendem a ser o motorneiro de seu bonde existencial.

O homem atual, como o homem de épocas anteriores, está na encruzilhada de vários caminhos de que se descortinam à sua frente, mas com uma diferença: o homem do passado preferia enfrentar a questão e tomar uma saída e nós preferimos uma cômoda paralisação, porque sabemos, no fundo, que uma escolha vital importa na exclusão das outras, já que almejamos, a todo tempo, uma vida com todas as saídas abertas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 26/09/2018, Página A-2, Opinião.

Assédio e amor

Opinião Pública | 17/07/2018 | | IFE CAMPINAS

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Outro dia, enquanto entregava as redações para os alunos, ouvi uma estudante contar a outra uma história de balada. Dizia a jovem que meninos puxavam as garotas pelos cabelos na expectativa de algum contato. Perguntei se era um jeito novo de paquera. Ela respondeu, não sem certa indignação, que sim.

Nem tive tempo de exclamar “no meu tempo não era assim”. Veio-me à memória um episódio da minha adolescência. Falamos, portanto, do início dos anos noventa. Em uma casa noturna, os meninos faziam um corredor em locais estratégicos nos quais elas passavam. Alisavam os cabelos delas, puxavam-nas pelo braço. E tudo isso era paquera. Alguns podem dizer que se trata de uma volta ao tempo das cavernas. Porém, duvido que algum arqueólogo possa nos contar como era o flerte em épocas tão remotas…

Também sou da época em que ficar era algo normal. Lembro-me de não gostar desse tipo de relacionamento. Achava o namoro algo muito mais interessante do que a conquista de uma noite. Contudo, foi só uns anos mais tarde que consegui dar o meu grito de independência e afirmar: “Sou homem para casar. De agora em diante, não fico com mais ninguém.” Ou melhor, se ficasse, seria com o intuito de não largar mais. Não foi fácil, pois a mentalidade das relações descartáveis já me impregnara. Além disso, encontrar outra pessoa com o mesmo ideal era bem difícil.

Para ser sincero, não me surpreende o crescimento dos casos de assédio. É uma consequência direta de se tratar o desejo com desdém e as pessoas como veículos de boas sensações. Ora, o desejo sexual é o desejo por uma pessoa. Como bem nota o filósofo Roger Scruton, ele se dá por um olhar interessado: “É o olhar de interesse sexual que precipita o movimento da alma, pelo qual duas pessoas saem da multidão em que estão presentes, ligados por um conhecimento que não pode ser expresso em palavras, e oferecem um ao outro uma comunicação silenciosa que ignora tudo, a não ser eles mesmos”. Significa, portanto, que essa pessoa se distingue para mim entre tantos e que indico ter propósitos para ela, continua o autor.

Pela sua natureza, o desejo sexual visa a um compromisso existencial. Quando não se puxa os cabelos, mas se olha para a outra pessoa, ela ganha uma singularidade que não vejo em mais ninguém, apenas no ser que é o centro das minhas atenções. No momento em que transformo essa pessoa em uma conquista, em uma demonstração de poder, em alguém cuja vontade pouco importa, a relação acontece no campo da utilidade. É a mesma relação que temos com as coisas.

Hoje já não se fala mais “ficar” com alguém. O verbo dava uma impressão de certa continuidade, deixava aberta a possibilidade a outras “ficadas”, o que poderia redundar em namoro. Tudo na condicional, o que já demonstrava uma clara intenção de não se comprometer. Os jovens dizem “pegar”, no sentido de agarrar-se com alguém. Substituem a famosa frase “é pegar ou largar”, por “é pegar e largar”, para depois pegar e largar, e assim sucessivamente. Parece picuinha analisar os termos ou gírias que cada geração utiliza para as suas relações, contudo as palavras mostram o nosso pensamento. Nesse caso, a maneira como os jovens encaram as relações.

Temo que nesse “pegar” resida uma carência. O que a nossa geração deixou de herança para eles? Relações desfeitas, amores provisórios, que, não raras vezes, lhes causaram grandes feridas. O que eles não sabem é que essas relações esporádicas apenas agravam o seu sofrimento. Além disso, pode impedi-los de viver um grande amor. Por quê? Porque o amor exige tempo. A paixão idealiza; busca igualar o desejo que sinto por uma pessoa com as pretensas qualidades que ela possui. Os anos de convivência com outro ser nos conduzem a uma visão mais equilibrada, verdadeira e, portanto, a um amor mais profundo, porque já não tem origem na nossa idealização, e sim em quem a pessoa é. Ficar ou pegar é para imaturos, tanto faz a idade; já o amor é para gente grande, moralmente falando.

Eduardo Gama é professor, membro do IFE-Campinas e mestre em Literatura pela USP.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/07/2018, Página A-2, Opinião.

Uma Boa Mentira: Virtudes humanas em estado puro. Sem vírgulas. (por Pablo González)

Cinema | 06/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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The Good Lie. USA. (2014). Diretor: Philippe Falardeau.  Reese Witherspoon, Corey Stoll, Sarah Baker, Sope Aluko, Sharon Conley, Mike Pniewski, Arnold Oceng, Clifton Guterman, Ger Duany, Emmanuel Jal. 110 min. 

Uma boa mentira - capaUma lufada de ar refrescante. Imprevista. Tinha este filme nos meus arquivos, vários meses esperando. Algo tinha lido em alguma crítica: ativista americana que ajuda refugiados sudaneses. Mais do mesmo, pensei. E deixei esperando. Um dia –sempre é desse jeito- , sem pensa-lo muito (aliás, parece-me que tinha previsto assistir outro filme), coloquei-o na tela do computador, talvez até por engano. E deixei correr. Vejo jovens africanos embarcando de um campo de refugiados para América. E a seguir, em flashback, a explicação conveniente.

Imediatamente, conforme as lembranças dos protagonistas desfilam na tela, a minha memória evoca outras paralelas, vindas de um livro que li há alguns meses. Correr para viver. A história de um refugiado sudanês, que acaba se transformando em atleta olímpico em USA. O livro é sua história, e o débito que com justiça e com elegância paga a todos os que lhe ajudaram. Uma boa mentira - 7Aqui os protagonistas são outros, não parece que tenham aptidões especiais como o corredor do livro, mas evidentemente o marco histórico é o mesmo. Os meninos perdidos do Sudão, órfãos durante a guerra civil de 1983 que assolou o pais e emigraram para os campos de refugiados do Quênia. No final dos anos 90 começa o êxodo facilitado pelos Estados Unidos, que através de organizações variadas, acolhe os órfãos sudaneses. Até o 11 de Setembro, onde o processo se interrompe, por motivos de segurança. O filme –como o livro- conta uma história real, e os atores são realmente emigrados sudaneses, ou filhos daqueles. Argumento simples, atitudes humanitárias, enfim, um capítulo da história humana que carrega lamentos pelas barbaridades perpetradas e louvores para os que tentaram minimizá-las.

Uma boa mentira - 1Mas a força do filme –pelo menos o que me impactou- não esta ai, mas nas entrelinhas. São as atitudes dos africanos as que esbanjam virtudes. O tempo todo. Durante a massacre étnica, nos tempos que passam no campo de refugiados e, com destaque, na sua chegada a USA. Até parece que são pessoas de outro planeta pelo modo, simples, franco, direto, como se comportam. Lealdade, afeto, generosidade distribuída sem medida. Elogios aos policiais que mantém a autoridade, porque no entender deles –na cultura africana- são pessoas que estão ao serviço da sociedade. Compartilhar com quem não tem, porque é assim que eles foram criados, não concebem outro modo de viver. Integridade a prova de bomba, simplicidade que lhes permite apreciar o que para outros passa desapercebido. E uma amizade temperada pelo sentimento de lealdade, de honra, que ultrapassa as categorias vigentes. A boa mentira, que dá titulo ao filme, é importada de um romance de Mark Twain, onde um dos protagonistas se faz passar por outro, para ajudá-lo, arcando com o débito que o beneficiado tinha em conta. Gente de outro planeta? Ou somos nós os que mudamos e arrastamos nessa mudança saturada de mentira, corrupção e deslealdade os cacos deste mundo nosso?

Uma boa mentira - 2Virtudes em estado puro. Esse foi o resumo que cristalizou na minha mente, enquanto desfilavam na tela os créditos finais. E ao tempo, lembrei de uma conversa singular, acontecida numa das muitas reuniões humanistas nas que ando envolvido. Recordo-a como a reunião das vírgulas. Em teoria, todos concordamos que se deve viver a honestidade –ou a sinceridade, a lealdade, e por ai afora- , mas há situações onde…..O “mas”, golpe adversativo, costuma ser precedido por uma vírgula. A vírgula, que fornece um ponto de inflexão à virtude, é o começo do descaminho. Sim, tudo isto é muito importante, mas….. Ai está a vírgula. Como esclarecendo: no meu caso, nesta situação, em tais circunstâncias, …..E, com a vírgula segue-se a desculpa para eximir-se da atitude virtuosa.

Uma boa mentira - 3Na vírgula damos entrada aos exemplos –maus exemplos, entende-se- que outros dão e que parecem desculpar-nos das nossas obrigações. Na vírgula se desbota a virtude, perde cor e atrativo. E como nunca foi mais atual aquele ditado de que quem não vive como pensa, acaba pensando como vive, construímos toda uma antropologia da vírgula, que se veste de questões culturais, modernas –ou pós-modernas- desculpas eruditas para fugir do cumprimento do dever. Integridade? Compromisso? Lealdade? Sim, de acordo, mas….E lá vem a vírgula, confortante e salvadora. Impossível não recordar aquele fato que contam ocorreu com Alexandre Dumas, o filho. Chegou a uma reunião social e uma das damas espetou-lhe: “Deve ser muito difícil para o senhor ter um pai com costumes tão licenciosos como o pai do senhor”. Parece que a fama de bon vivant do Dumas pai era pública. Mas o interpelado respondeu-lhe com imensa calma: “Nada disso, minha senhora. Se ele não me serve como exemplo, funciona bem como desculpa”.

Uma boa mentira - 4A reunião das virgulas ficou famosa. Lembro que alguns dias depois recebi um e-mail de um dos participantes, comentando um assunto profissional –por certo, de modo muito competente- e desculpando-se por não ter feito ainda melhor. “Sei que você não gosta de vírgulas, afirmava no final”. Não é uma questão de gosto, mas de coerência. Quando se permite que as virgulas tomem conta, as modulações e orações subordinadas acabam apagando a sentença principal.

Uma boa mentira - 5Os atores deste filme não são gente de outro planeta. São humanos, como nos, mas sem vírgulas. E ai minha imaginação voo para outro livro que também li recentemente e que comentei neste espaço, o Caçador de Pipas. Recomendo a leitura do comentário –eu mesmo acabo de reler o que escrevi- porque é um complemento ao tema das vírgulas. Atrai-nos o exótico, emociona-nos a amizade, a lealdade destes seres longínquos –do Sudão ou do Paquistão- e até nos arranca lágrimas. Mas os deixamos lá, em outro planeta, porque permitir a entrada no nosso provocaria uma enxurrada de reflexões, e vai ver que nos pega de calça curta.

Uma boa mentira - 6A maldita lealdade inabalável do protagonista do Caçador de Pipas, a amizade íntegra do sudanês da Boa Mentira, são uma bofetada para a nossa sociedade medíocre. É sabido o pouco espaço que as noticias dos países africanos ou asiáticos que estão no terceiro (ou quarto?) mundo, têm nos meios de comunicação. Dizem alguns que talvez porque não são relevantes para a economia e para os destinos do poderoso ocidente e de quem corta o bacalhau. Atrevo-me a pensar que há talvez outros motivos muito mais perigosos: vai ver que o confronto com essas vidas simples, diretas, repletas de virtudes em estado puro, sem vírgulas, nos incomodaria sobremaneira. Sim, uma bofetada; ou, pelo menos, uma luva que nos é jogada na cara, para enfrentar o duelo e resgatar uma vida digna, sem vírgulas, e tomar posse real do nosso planeta, em solidariedade de virtudes com quem tem tanto para nos ensinar.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/07/31/uma-boa-mentira-virtudes-humanas-em-estado-puro-sem-virgulas/#more-2417>