image_pdfimage_print

Todos os posts de João Marcelo Sarkis

Estado laico ou ateu?

Opinião Pública | 19/06/2019 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Com frequência se tem visto nos debates públicos a tentativa de deslegitimar certas opiniões e concepções éticas e morais, em razão da sua vinculação ou inspiração religiosa, especialmente cristã, sob a alegação de que estas posições seriam contrárias ao princípio do Estado laico. Recentemente este argumento tem sido enfrentado pelos tribunais pátrios em temas como o ensino religioso nas escolas públicas, o direito ao aborto, a criminalização da chamada “homofobia”, a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos, entre tantos outros. Trata-se de uma visão distorcida da laicidade estatal prevista pela Constituição brasileira e pela grande maioria dos países do mundo ocidental, que se traduz numa violação à liberdade religiosa.

Para compreender esta questão é preciso notar que a laicidade significa que a ordem política e a ordem religiosa não se confundem, são autônomas e, portanto, não pode haver confusão entre estas esferas, nem a intromissão direta de uma esfera na outra. De outro lado, o Estado deve manter uma imparcialidade diante das religiões, garantindo que os seus cidadãos sejam livres para professar a fé que desejam. É este o sentido legítimo da separação entre Estado e Igreja, o que não significa, de modo algum, uma ruptura e hostilidade do Estado em relação à religião ou o fechamento do âmbito social, político e cultural à transcendência.

A autonomia entre estas duas realidades não impede que possam e devam cooperar para que o bem comum, tanto temporal, quanto espiritual, seja alcançado. Neste sentido, o Estado deve reconhecer a religião como um fenômeno enriquecedor da vida social, com uma postura de valoração positiva e comprometida, inclusive com relação às suas expressões públicas, e não apenas com uma atitude de aceitação e tolerância. Por isso, toda manifestação de laicismo radical, que pretenda que a religião fique confinada no interior dos templos e das consciências, sem qualquer repercussão na vida pública, não é compatível com a ordem democrática.

Este laicismo se sustenta a partir de uma ideia de suposta “neutralidade”, como artifício para garantir um espaço privilegiado no debate público, quando, na verdade, se fundamenta em concepções da vida e do mundo que não são absolutamente neutras. Pelo contrário, refletem opções específicas, comprometidas com certas ideologias e postulados ético-filosóficos e que têm a pretensão de guiar o destino da sociedade, baseado, às vezes de forma velada, na negação da existência de Deus ou da possibilidade de conhecê-Lo, bem como na inexistência de uma lei moral de valor absoluto. Trata-se de uma rejeição da religião que, em certo sentido, é também uma atitude religiosa e que se traduz, muitas vezes, em um verdadeiro fundamentalismo laico, incompatível com a liberdade religiosa.

Em um regime de legítima laicidade, ao contrário, todos os cidadãos têm direito a expressar publicamente as suas opiniões, sem criar uma ruptura forçada à natural continuidade que existe entre as convicções pessoais e a vida política e social, que atinja exclusivamente os religiosos. Por outro lado, embora o Estado deva ser imparcial diante da pluralidade de opiniões, isto não significa que deva forçar um pluralismo desde cima, de forma planificada, que garanta a todas as convicções uma participação com igualdade assegurada, como se todas possuíssem um mesmo peso social e idêntica influência cultural. Estamos diante de um Estado imparcial, mas a serviço de uma sociedade que não é neutra e que não tem porque ver neutralizadas as suas convicções e a sua própria identidade, valores e tradições.

No caso do Brasil, sua história e cultura estão profundamente marcadas pela presença da religião, especialmente do cristianismo e, atualmente, a grande maioria da população professa a fé cristã. Portanto, é perfeitamente legítimo e natural que as instituições e as leis que regem a sociedade brasileira sejam um reflexo dos valores e convicções profundamente enraizados no seu povo. Impedir este influxo sob a alegação de violação do Estado laico, além de violar a liberdade religiosa, cria um perigoso risco a ordem democrática, pois o Estado deixar de servir à sociedade, para se tornar um poder arbitrário, que conduz os destinos da nação ao sabor de interesses e ideologias dos que ocupam os cargos políticos, como se estes nada devessem ao povo que representam.

João Marcelo Sarkis, bacharel pela Faculdade de Direito da USP, analista jurídico do Ministério Público, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.
e-mail: joaosarkis@gmail.com

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, Edição de 19 de junho de 2019, Página A2 – Opinião.

Todos vivemos em Suzano

Opinião Pública | 20/03/2019 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Depois da barulhenta exposição midiática que costuma acompanhar eventos como a tragédia ocorrida na escola em Suzano, temos o desafio de impedir que os fatos simplesmente se percam na banalidade do banquete de notícias que consumimos diariamente. Diante de fatos tão sombrios, que beiram ao absurdo, depois de uma fase de absoluta consternação e luto, necessitamos buscar luzes e curar as feridas, para reencontrar esperança e redenção.

Quando fatos tão contundentes atropelam o ritmo apressado das nossas ocupações cotidianas, nos forçando a contemplação dos horrores que nos amedrontam, somos colocados diante daquelas grandes questões humanas, a que cada geração é chamada novamente a responder: “quem somos?”, “para onde vamos?”, “qual o sentido da vida e da morte?”, “como ser feliz?”, “como vencer o mal?”. Sem enfrenta-las, corremos o risco de sermos esmagados pela crua irracionalidade dos fatos, nos perdendo numa indiferença fria, num desânimo apático ou, ainda pior, numa revolta impotente, cheia de ressentimento e ódio.

Este parece ser o perigo da nossa “civilização do espetáculo” (expressão do escritor peruano Mário Vargas Llosa), que nos entorpece com sua excessiva oferta de prazeres e diversões fáceis e instantâneas, nos imunizando contra toda reflexão e responsabilidade. Numa inversão do ensinamento de Sócrates, para quem “a vida não examinada não vale a pena ser vivida”, para nós, a vida não vale a pena ser pensada, mas desfrutada. Assim, consternados, somos obrigados a confessar a enorme fragilidade da nossa civilização, que ostenta toda a potência de tecnologias e abundâncias materiais que o mundo jamais viu, mas que nesta hora crucial nos deixa completamente desamparados.

No prefácio do clássico “Sabedoria dum Pobre”, escreve Elói Leclerc: “‘Nós perdemos a simplicidade’ – talvez seja esta a mais terrível das acusações pronunciadas contra o nosso tempo. Dizer isto não é necessariamente condenar o progresso da ciência e da técnica de que o nosso mundo tanto se orgulha. […] Mas é reconhecer que este progresso não se realizou sem um detrimento considerável no plano humano. […] Perdendo esta simplicidade, [o homem] perdeu também o segredo de ser feliz. Toda a ciência e todas as suas técnicas o deixam inquieto e sozinho. Sozinho diante da morte. Sozinho perante as suas infidelidades e as dos outros, no meio do grande rebanho humano. Sozinho na luta contra os demônios que o não largam”.

Este é o grito solitário que ressoa de Suzano. Pois oferecemos o “espetáculo” aos nossos jovens, mas os deixamos sozinhos diante dos grandes enigmas da vida. Nós nos empenhamos em oferecer a eles todas facilidades de bens e diversões, mas os deixamos sozinhos diante dos desafios e perigos do mundo. Nós escolhemos curtir com eles como seus amigos, a exercer as nossas duras obrigações de pais. Nós negligenciamos a educação e o cuidado que mereciam, por estarmos ocupados demais.

Agora precisamos parar e fazer silêncio para ouvir o grito que vem de Suzano, porque ele vem da nossa própria casa. Ouvir o grito desesperado das nossas crianças e jovens, tragicamente entregues à depressão, ao uso de drogas, à violência, a sexualidade desregrada, a desmotivação generalizada pela vida. Nem todos compreenderão o chamado que nos vem desta tragédia, mas aqueles ouvidos que ouvirem precisam ter a coragem de assumir os erros e se levantar contra as hordas maléficas que nos ameaçam, para reafirmar a nossa aliança vital com os verdadeiros valores da vida, do bem, do amor, da beleza, da família, do trabalho, da fé.

São estes valores simples e fundamentais, profundamente enraizados em nossa natureza, os únicos capazes de socorrer os nossos jovens. São eles que respondem àquelas perguntas fundamentais que dão sentido à vida, oferecendo um firme chão para as alegrias e consolo real para os sofrimentos. São sempre eles que se levantam como fortalezas para nos proteger de todo o mal e destruição que nos desumanizam. Por isso, precisamos cultivá-los com zelo e dedicação, como fizeram os nossos antepassados, para transmiti-los aos nossos filhos como um inestimável legado, enchendo seus corações de esperança e entusiasmo, para que sejam capazes de abraçar o desafio da vida.

João Marcelo Sarkis, analista jurídico, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.
e-mail: joaosarkis@gmail.com

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 20 de março de 2018, Página A2 – Opinião.

A lição de uma trégua

Opinião Pública | 16/01/2019 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Eu deveria escrever um artigo de opinião, tomar posição diante de assuntos polêmicos que estão na pauta nacional. Ocupar o espaço, diriam, para uma militância necessária e urgente. É tempo de empunhar a espada, elevar gritos de ordem, exercer a cidadania. Mas, hoje, gostaria de mergulhar um pouco mais profundo, longe da confusão de narrativas que invade diariamente o nosso noticiário. Estou farto de discursos de opiniões convictas e suspeito que se algum discernimento não nos socorrer, de nada valerá todo esse esforço de convencimento.

Se ainda fosse dezembro, eu traria comigo a esperança de uma “Trégua de Natal”, como naquele histórico episódio ocorrido na véspera do Natal de 1914, durante a Primeira Guerra Mundial, quando os soldados ingleses e alemães, tomados pelo espírito natalino, depuseram as armas. Conta-se que os ingleses começaram a cantar canções natalinas e, imediatamente, os alemães se uniram ao coral. Com a promessa recíproca de cessar fogo, aos poucos os soldados foram deixando as trincheiras para trocar presentes, bebidas, chocolate, cigarros, chegando até mesmo a jogar futebol. Estima-se que durante os dias de trégua cerca de 100 mil soldados deixaram de lutar.

Com esta trégua, não quero fazer coro às ideologias pacifistas. É verdade que, às vezes, a guerra é que garante a paz e o sacrifício da vida, a própria vida. Mas este episódio magnífico faz pensar que mesmo uma guerra justa e legítima jamais pode abandonar aqueles limites que tocam a nossa própria humanidade, sob pena de perder todo o seu sentido. Não devemos esquecer, como diz Chesterton, que “o verdadeiro soldado luta não porque odeia o que está à sua frente, mas porque ele ama o que está atrás”, isto é, o sentido da sua luta não é a destruição do inimigo, mas a preservação e o sustento do que ama. Por isso, a necessidade do combate contra o seu semelhante pesa-lhe sobre os ombros como remédio amargo, que aceita com responsabilidade, estritamente por amor ao bem e à verdade, jamais pelo ódio, pela vaidade de vencer ou pela cobiça de conquistar.

Penso que esta é uma lição importante para a atual momento político brasileiro, em que temos visto um acirramento do debate político-ideológico que, embora saudável para a nossa democracia, também deve se pautar por estes mesmos princípios, sob pena de a busca pelo bem comum, finalidade precípua da verdadeira política, degenerar numa luta cega pelo poder. Infelizmente é o que acontece quando o exercício da política é dominado pera mera militância ideológica.

As ideologias tendem a produzir fanáticos que, seduzidos por narrativas prontas e simplificadas da realidade, nada mais fazem que bradar os mesmos lemas e bandeiras, como cães adestrados, sem espaço para a reflexão racional e o livre debate. Absorvidos pela narrativa do “partido” e convencidos da superioridade moral dos seus membros, passam a considerar qualquer um que pense diferente um inimigo a ser combatido, entrando em um perigoso jogo de “nós contra eles”. Sua grande tarefa não é enfrentar os problemas concretos que a realidade apresenta, em prol do bem comum, mas simplesmente implantar uma agenda pronta e destruir tudo o que a contrarie, custe o que custar.

Esse modo de pensar e agir é uma real ameaça à democracia e combatê-lo é um dever, mas devemos resistir ao impulso de utilizar os mesmos meios, aceitando os pressupostos de uma guerra inescrupulosa e irracional. No atual contexto brasileiro, fica o convite de não nos esquecermos da lição daquela “trégua de natal”, para impedir que nossas convicções políticas extrapolem os seus limites, justificando brigas em famílias, rompimento de amizades, disseminação de mentiras e fake news, destruição de reputações e atos ainda piores.

Definitivamente, os fins não justificam os meios e uma luta política que não se fundamente na ética, na honestidade, no respeito ao próximo e à coisa pública, no debate livre e racional de ideias, perde completamente o seu sentido. Que o motor da nossa cidadania não seja o fanatismo das ideologias, o ódio pelo outro ou a cobiça pelo poder, mas a busca pelo bem comum, o amor ao próximo, à pátria e aos valores que nos sustentam.

João Marcelo Sarkis é analista jurídico e gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.
E-mail: joaosarkis@gmail.com.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 16 de Janeiro de 2018, Página A2 – Opinião.

Minha vida, minhas regras!

Opinião Pública | 26/07/2018 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Por trás das grandes decisões sempre existe um dilema ético. Gostemos ou não, a moral paira sobre as nossas cabeças e corações quando precisamos realmente decidir nosso destino. Ao contarmos a história, seja de povos inteiros ou de pessoas singulares, vamos nos deter naqueles grandes momentos em que escolhas definitivas se tornaram determinantes para o rumo das coisas a partir de então. A tão desejada liberdade nos é dada a um alto preço e não poucas vezes sofremos diante do peso da responsabilidade.

Talvez seja por isso que tememos tanto a percepção do que é certo e errado e somos tão seduzidos pela perspectiva de um mundo onde nossos atos não têm consequências. Somos capazes de tudo para escaparmos da verdade inexorável da nossa responsabilidade perante a vida, até mesmo renunciar à própria liberdade. A história da humanidade conta, infelizmente, inúmeros momentos em que sociedades inteiras acolheram as promessas mais variadas de líderes autoritários, entregando a eles até mesmo sua própria consciência, em troca de segurança, bem-estar e a garantia de um futuro melhor.

Todavia, há formas mais sutis pelas quais este mesmo mecanismo opera. Uma das mais fortemente atuantes em nossos dias é aquela que Joseph Ratzinger denominou a ditadura do relativismo. De índole cultural, não conhece fronteiras e facilmente invade nossos lares, seduzindo-nos com uma ideia antiga, mas que hoje se impõe como obrigatória: a verdade não existe enquanto uma realidade objetiva, a despeito das opiniões e construções sociais. Daí se deduz que, se não há verdade, então não há o certo e errado enquanto valores objetivos e definitivos, mas apenas enquanto construções subjetivas, ao gosto e conveniência de cada indivíduo, de cada época e lugar.

Como consequência desse modo de pensar, o homem, o próprio eu e suas vontades, se converte na medida de todas as coisas. Por outro lado, os códigos e valores morais são tomados como meras imposições arbitrárias, criações do superego de uma cultura repressora ou instrumentos de opressão de certos grupos sociais. Assim, com uma sofisticada argumentação intelectual, repete-se a mesma sedutora cantilena que promete imunizar as consequências dos atos humanos, com a ilusão de libertar a própria liberdade. Finalmente, não devemos mais nada à consciência, pois cada um dita o que é certo e errado para si! É proibido proibir! É intolerante corrigir! Meu corpo, minhas regras!

Importante notar que, embora defenda um relativismo absoluto (por incoerente que seja), esta mentalidade, muitas vezes, atua de forma seletiva, impondo-se especificamente sobre determinados valores, rotulados como tradicionais ou conservadores, para, na realidade, abrir caminho para a promoção de bandeiras ideológicas. É por esta razão, por exemplo, que se rotula como intolerante aquele que se levanta contra o aborto ou a ideologia de gênero, mas se tem como perfeitamente razoável aquele que pretende impor esta agenda sobre toda a sociedade com base em valores feministas; ou se considera fundamentalista a pessoa que pensa a partir de uma religião e isenta, imparcial, a outra que atua sob o ateísmo.

Uma das formas de combater a ditadura do relativismo é tomar consciência de que a ação humana sempre se orienta por valores, esteja-se ou não ciente deles. O relativismo é, na verdade, uma ilusão, que somente desorienta o homem (pós)moderno, ao deixá-lo à mercê de suas próprias decisões e da influência de ideologias poderosas, sem o amparo da verdade e dos critérios morais que estão assentados sobre a realidade das coisas, pois foram provados pelo tempo e pela experiência dos antepassados, formando a base de qualquer civilização. Quando abandonamos os critérios objetivos que orientam o bem e o mal, como se pudéssemos superar essa fronteira e agir com base exclusivamente na nossa própria vontade, não estamos nos libertando, mas sim abrindo um perigoso espaço para a mais pura arbitrariedade, onde o que vale é a lei do mais forte. O limite da barbárie é tênue e se continuarmos sob o domínio da ditadura do relativismo, negligenciando a gerações inteiras essa sabedoria de vida, não demorará até que nos defrontemos com ela.

João Marcelo Sarkis, analista jurídico, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas (joaosarkis@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 25/07/2018, Página A-2, Opinião.

Tem valor os nossos votos?

Direito| Opinião Pública | 03/01/2018 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Nas mensagens de fim de ano é comum desejarmos votos de paz, saúde, alegria, amor, sucesso. Esses desejos podem ser mais ou menos conscientes, mas a verdade é que ninguém está muito preocupado com isso em meio à euforia do réveillon. Passada a festa, no entanto, se queremos concretizar esses bens em nossas vidas, sem que se percam apenas no efeito emotivo que provocam, nos vemos diante desse desafio: o que de fato cada uma dessas palavras significam? Que paz pretendo buscar, que alegria desejo, que amor anseio, qual sucesso devo alcançar? Por outro lado, essas questões nos remetem ao campo dos valores, pois são eles que nos indicam o caminho a seguir para alcançar os bens que desejamos.

Encontrar essas respostas nunca é um exercício meramente individual, pois não é possível alcançar esses bens sozinho. Mesmo o efeito emocional que essas palavras provocam pressupõe um mínimo entendimento entre os interlocutores sobre os bens verdadeiros que elas designam. E na medida em que avançamos na busca da realização desses mesmos bens, a exigência de compreensão também se torna maior. Aqui transparece, justamente, uma das maiores fragilidades da sociedade plural em que vivemos, onde é cada vez mais raro encontrar esses consensos.

Em um contexto em que já não cultivamos valores comuns, torna-se difícil construir um caminho de comunhão, pois já não reconhecemos o outro, não compreendemos o seu mundo, suas escolhas e atitudes. Por isso, o pluralismo tão festejado em nossas democracias mostra, na verdade, uma face cruel, pois, levado às últimas consequências, dissolve os vínculos reais que dão alicerce às nossas comunidades.

De fato, se “os valores são subjetivos”, se “todos os valores são iguais”, se “não há certo e errado”, então cada indivíduo se converte na instância máxima de seu próprio sistema, onde encontrará por si mesmo as respostas a que nos referimos, protegido de qualquer enfrentamento e isolado em seu mundo de referências pessoais. Se já não há uma verdade a ser buscada, com humildade e esforço comum, então resta-nos conviver sob o critério da tolerância, imposto por um relativismo que pretende igualar desde cima todas as “verdades”, sem qualquer oportunidade de diálogo.

Em outras palavras, sem a construção de um espaço comum de convivência, assentado sobre uma base de valores firmes e reconhecidos como verdadeiros, palavras como paz, alegria, justiça, amor ficam reduzidas a meras exortações, sem uma densidade real que possa guiar nossas condutas no dia-a-dia, restando-nos suportar uns aos outros, como estranhos obrigados a dividir o mesmo teto.

Portanto, se pretendemos de fato que os votos de Ano Novo não se percam no vazio das boas intenções e das emoções fugazes, precisamos ter a coragem de resistir à chamada “ditadura do relativismo” e reafirmar o compromisso com determinados valores, abrindo espaço à sua realização comum na esfera pública. Pluralidade e tolerância são maus necessários, mas estão muito longe de se constituírem num ideal de convivência.

Acredito que a nossa maior esperança reside em um paradoxo, pois o anseio por um bem é tanto maior quanto menos o possuímos. Ninguém conhece mais o valor da paz, do que aqueles que estão imersos na guerra. Aprendemos muito mais sobre o sucesso, quando experimentamos o fracasso. Zelamos mais por nossa saúde, quando estamos doentes. Diante das enormidades que temos presenciado em nosso país nos últimos tempos, em grande parte fruto da dissolução dos valores que sempre nos guiaram, ao menos podemos esperar que a carência dos bens que tanto desejamos nas saudações de Ano Novo se converterá, pouco a pouco, em um empenho sério e determinado, sem espaço para as velhas desculpas e comodismos, sem chance para as conhecidas mancomunações. Nossos votos é que o despertar dessa consciência não tarde demais.

João Marcelo Sarkis, analista jurídico, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas (joaosarkis@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 03/01/2018, Página A-2, Opinião.