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Minha vida, minhas regras!

Opinião Pública | 26/07/2018 | | IFE CAMPINAS

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Por trás das grandes decisões sempre existe um dilema ético. Gostemos ou não, a moral paira sobre as nossas cabeças e corações quando precisamos realmente decidir nosso destino. Ao contarmos a história, seja de povos inteiros ou de pessoas singulares, vamos nos deter naqueles grandes momentos em que escolhas definitivas se tornaram determinantes para o rumo das coisas a partir de então. A tão desejada liberdade nos é dada a um alto preço e não poucas vezes sofremos diante do peso da responsabilidade.

Talvez seja por isso que tememos tanto a percepção do que é certo e errado e somos tão seduzidos pela perspectiva de um mundo onde nossos atos não têm consequências. Somos capazes de tudo para escaparmos da verdade inexorável da nossa responsabilidade perante a vida, até mesmo renunciar à própria liberdade. A história da humanidade conta, infelizmente, inúmeros momentos em que sociedades inteiras acolheram as promessas mais variadas de líderes autoritários, entregando a eles até mesmo sua própria consciência, em troca de segurança, bem-estar e a garantia de um futuro melhor.

Todavia, há formas mais sutis pelas quais este mesmo mecanismo opera. Uma das mais fortemente atuantes em nossos dias é aquela que Joseph Ratzinger denominou a ditadura do relativismo. De índole cultural, não conhece fronteiras e facilmente invade nossos lares, seduzindo-nos com uma ideia antiga, mas que hoje se impõe como obrigatória: a verdade não existe enquanto uma realidade objetiva, a despeito das opiniões e construções sociais. Daí se deduz que, se não há verdade, então não há o certo e errado enquanto valores objetivos e definitivos, mas apenas enquanto construções subjetivas, ao gosto e conveniência de cada indivíduo, de cada época e lugar.

Como consequência desse modo de pensar, o homem, o próprio eu e suas vontades, se converte na medida de todas as coisas. Por outro lado, os códigos e valores morais são tomados como meras imposições arbitrárias, criações do superego de uma cultura repressora ou instrumentos de opressão de certos grupos sociais. Assim, com uma sofisticada argumentação intelectual, repete-se a mesma sedutora cantilena que promete imunizar as consequências dos atos humanos, com a ilusão de libertar a própria liberdade. Finalmente, não devemos mais nada à consciência, pois cada um dita o que é certo e errado para si! É proibido proibir! É intolerante corrigir! Meu corpo, minhas regras!

Importante notar que, embora defenda um relativismo absoluto (por incoerente que seja), esta mentalidade, muitas vezes, atua de forma seletiva, impondo-se especificamente sobre determinados valores, rotulados como tradicionais ou conservadores, para, na realidade, abrir caminho para a promoção de bandeiras ideológicas. É por esta razão, por exemplo, que se rotula como intolerante aquele que se levanta contra o aborto ou a ideologia de gênero, mas se tem como perfeitamente razoável aquele que pretende impor esta agenda sobre toda a sociedade com base em valores feministas; ou se considera fundamentalista a pessoa que pensa a partir de uma religião e isenta, imparcial, a outra que atua sob o ateísmo.

Uma das formas de combater a ditadura do relativismo é tomar consciência de que a ação humana sempre se orienta por valores, esteja-se ou não ciente deles. O relativismo é, na verdade, uma ilusão, que somente desorienta o homem (pós)moderno, ao deixá-lo à mercê de suas próprias decisões e da influência de ideologias poderosas, sem o amparo da verdade e dos critérios morais que estão assentados sobre a realidade das coisas, pois foram provados pelo tempo e pela experiência dos antepassados, formando a base de qualquer civilização. Quando abandonamos os critérios objetivos que orientam o bem e o mal, como se pudéssemos superar essa fronteira e agir com base exclusivamente na nossa própria vontade, não estamos nos libertando, mas sim abrindo um perigoso espaço para a mais pura arbitrariedade, onde o que vale é a lei do mais forte. O limite da barbárie é tênue e se continuarmos sob o domínio da ditadura do relativismo, negligenciando a gerações inteiras essa sabedoria de vida, não demorará até que nos defrontemos com ela.

João Marcelo Sarkis, analista jurídico, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas (joaosarkis@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 25/07/2018, Página A-2, Opinião.

Vocação em crise

Opinião Pública | 22/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Quando perguntamos para uma criança o que ela quer ser quando crescer, não raro encontramos respostas sonhadoras e criativas, acompanhadas de um brilho nos olhos. Às vezes inspirados nos próprios pais, rodeados de certo mistério e heroísmo, outras vezes em histórias ouvidas ou vistas no cinema. Depois o tempo vai passando e a realidade vai conformando os sonhos às possibilidades de realização e surgem, já na juventude, os projetos de vida. É uma fase difícil, que encontra hostilidades e demanda coragem e ousadia. O início da aventura em direção à própria vocação.

Vocação é uma daquelas palavras desgastadas pelo tempo e que acabam por perder a sua densidade original. Comumente, fala-se em vocação referindo-se aos estudantes do ensino médio fazendo escolhas para o vestibular. As escolas costumam oferecer testes vocacionais que prometem apontar áreas em que os estudantes poderão desenvolver uma profissão. Em geral, trata-se de equacionar gostos e habilidades pessoais à carreiras promissoras, que possam render bons ganhos financeiros.

Originalmente, todavia, a idéia de vocação nos remete a um significado mais profundo. Quem faz algo por vocação (do latim “vocare”, chamar) sente que é chamado por algo que o transcende (que está fora de si mesmo): uma obra, uma pessoa amada, Deus. A. D. Sertillanges diz que “a vocação pede atendimento, que, num esforço único para sair de si, escuta e atende“. Neste sentido, nota-se que, ao contrário do que se poderia pensar, nem sempre a resposta a este chamado procura a realização de gostos pessoais ou sucesso material, mas contém uma forte carga de sacrifício, de assunção de uma missão a ser cumprida.

O esvaziamento do significado da palavra em nossa cultura vai além da semântica, pois expressa, na verdade, o abandono da dimensão vocacional da vida. A prevalência de uma ética utilitária e individualista convida os jovens a uma busca pela satisfação imediata de prazeres e à realização de modelos de sucesso baseados em cargos, títulos e bons salários, que possam garantir comodidades e segurança, mesmo ao custo dos próprios talentos, valores e ideais.

Pouco a pouco, aquele “instinto natural” da juventude, o desejo de realizar algo maior, de se arriscar e lutar por algo que valha a pena, de enfrentar as grandes questões humanas e construir uma biografia brilhante e significativa, vai sendo soterrado, a pretexto de “ter os pés no chão”. Como consequência, a vida vai, aos poucos, perdendo a graça, dissolvendo-se em um cotidiano sem sentido, que não convida a nada além do conformismo e da mediocridade.

O psiquiatra austríaco Viktor Frankl chamou este sintoma de “vazio existencial”, um fenômeno muito comum em nossos dias. Segundo ele, o homem é um ser em busca de sentido, pois cada pessoa é uma tarefa dada a si mesma, exclusiva e específica, que somente ela mesma é chamada a realizar. É este chamado que dá sentido a sua existência, pois comunica um espírito de missão ao trabalho, enobrece e dá valor à sua vida.

Por isso, a privação deste sentido leva o homem a adoecer, conduzindo-o a uma procura neurótica por compensações, sempre frustrantes, principalmente, no poder, no dinheiro e no prazer. O acúmulo destas frustrações é gerador de depressão, agressividade e vícios, sintomas deste “vazio existencial”. Infelizmente as pesquisas mais recentes confirmam este diagnóstico em nossa sociedade, mostrando um impressionante aumento, principalmente entre os jovens, dos casos de depressão, uso de drogas, violência, sexualidade desregrada, desmotivação generalizada pela vida.

Neste contexto, torna-se ainda mais desafiador o caminho em busca da vocação, único capaz de preencher a vida de significado, de esperança e entusiasmo. Aos jovens de nosso tempo serve muito bem a provocação de Saint-Exupéry: “Julgo de pouca importância a coragem física, e a vida ensinou-me qual é a coragem verdadeira: é aquela que nos faz resistir à condenação do ambiente em que se vive”. Que saibamos inspirar os jovens nesta coragem, sem a qual ficarão à mercê de falsos e sedutores convites, para que possam responder à altura do verdadeiro chamado.

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/9/2015, Página A-2.

Sem rumo e sem prumo

Opinião Pública | 04/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Quando o cruzeiro aportou logo cedo em Buenos Aires, a família dividiu-se em duas: a ala masculina queria visitar o estádio do Boca Juniors (eu queria muito tirar uma foto ao lado da estátua do Maradona, meu ídolo de infância) e, depois, um bar temático sobre futebol na região central. A ala feminina e o restante de nosso grupo de viagem pretendia visitar lojas e mais lojas da rua Florida. Não teve acordo e, assim, combinamos de nos reencontrar para o almoço num restaurante de Puerto Madero em que estivemos uns seis anos atrás.

Cumprimos nossa agenda turística e chegamos antes da hora combinada em Puerto Madero. Restava apenas localizar o restaurante ao longo dos extensos oito decks que compõem o ponto turístico. Mal sabia que, a partir de então, a programação tomaria outro rumo. Fui passando de deck em deck, eu e meus três pupilos, que gastam o dobro de passadas que eu para cobrir uma mesma trajetória, sem achar o dito restaurante.

Primeiro, segundo, terceiro, quarto deck e nada. Fazia um sol de rachar e o dinheiro vivo já tinha acabado. Meu celular estava sem sinal e dependia de uma rede wi-fi para enviar uma mensagem para o celular da ala feminina. Mas a bateria já dava seus sinais de esgotamento. Então, lá no sexto deck, comecei a observar a idade dos manobristas e, quando me deparei com um mais velho em idade, perguntei-lhe sobre o tal restaurante. Ele me respondeu secamente: “Não existe mais. Fechou há dois anos!”.

Sentei num banco com os meninos, expus o problema, passei o quadro geral de nossas provisões e equipamentos e pedi sugestões. Nossa reunião começou bem e, logo, ficou desgovernada. Parecia o encontro inicial em Valfenda para a fundação da sociedade do anel da obra de Tolkien: todos falando ao mesmo tempo sem que ninguém se entendesse. Já estava sem rumo. Agora, sem apoio logístico, também fiquei sem prumo. E, diante daquela confusão de línguas, sem palavras. Mudo.

Ficar perdido não é bom. Estar constantemente perdido é pior. Nossa vida passa por caminhos e descaminhos. Qualquer caminho conduz a alguma parte, ao centro, em suma, a algum lugar. Alguém já disse que a vida do homem é uma grande senda. De fato, o homem precisa ver e mover-se para aprender e aprender eleva o ser humano à categoria de homem capaz de assimilar as coisas e sobre elas se debruçar reflexivamente.

Aquele que caminha sem ir à parte alguma, encontra-se em estado de constante conflito ou contradição. Muitas vezes, somos colocados em caminhos inusitados e a perplexidade que daí surge pode provocar uma paralisação, justamente por não termos um caminho e, assim, não sermos capazes de buscar um desvio salvador. É a hora de perguntarmos por outros caminhos, porque, quando temos um caminho, não se quer parar. Mas a paralisação pode falar mais forte. Surge um mau silêncio.

Nesse momento, o silêncio é uma forma de expressão não expressada. Quem não se expressa, está reprimido e não maneja a forma mais comum de expressão do ser humano, a linguagem. O silêncio representa um estado de incômodo ou confusão momentânea. Aquele que não se expressa, está se despreciando e àqueles que estão ao seu redor, pois este silêncio prolongado causa mal-estar: os outros querem saber o que pensamos, ainda que nossa ideia seja exteriorizada por meio de um sorriso apenas.

Mas também há o bom silêncio. O silêncio pode ser um dar um tempo para si mesmo para pensar e, depois, passar para a ação. A palavra, então, nem é tão necessária, pois o sujeito passa a ser presente a si mesmo e aos que o cercam. É uma espécie de silêncio diáfano, onde se dá a pura presença que vence qualquer tipo de inércia arrebatadora.

Naquele dia, deixei-me levar pelo um mau silêncio. Na medida em que os minutos foram se passando, a fome e o mau humor da prole foi crescendo. A minha também. Foi quando percebi que estávamos numa zona de passagem obrigatória entre os dois decks mais frequentados. O jeito era ficar ali esperando que alguém do grupo nos encontrasse, mas com olhos atentos à nossa volta.

Algum tempo depois, fomos resgatados. Então, meu mau silêncio corporificou-se num bom silêncio. Dei um sorriso de alívio. Voltei a ter um rumo e um prumo depois de ter ficado desencontrado. E desejo o mesmo para quem está constantemente desencontrado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 04.03.2015, Página A-2, Opinião.