Sem rumo e sem prumo

Opinião Pública | 04/03/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print
Share Button

Quando o cruzeiro aportou logo cedo em Buenos Aires, a família dividiu-se em duas: a ala masculina queria visitar o estádio do Boca Juniors (eu queria muito tirar uma foto ao lado da estátua do Maradona, meu ídolo de infância) e, depois, um bar temático sobre futebol na região central. A ala feminina e o restante de nosso grupo de viagem pretendia visitar lojas e mais lojas da rua Florida. Não teve acordo e, assim, combinamos de nos reencontrar para o almoço num restaurante de Puerto Madero em que estivemos uns seis anos atrás.

Cumprimos nossa agenda turística e chegamos antes da hora combinada em Puerto Madero. Restava apenas localizar o restaurante ao longo dos extensos oito decks que compõem o ponto turístico. Mal sabia que, a partir de então, a programação tomaria outro rumo. Fui passando de deck em deck, eu e meus três pupilos, que gastam o dobro de passadas que eu para cobrir uma mesma trajetória, sem achar o dito restaurante.

Primeiro, segundo, terceiro, quarto deck e nada. Fazia um sol de rachar e o dinheiro vivo já tinha acabado. Meu celular estava sem sinal e dependia de uma rede wi-fi para enviar uma mensagem para o celular da ala feminina. Mas a bateria já dava seus sinais de esgotamento. Então, lá no sexto deck, comecei a observar a idade dos manobristas e, quando me deparei com um mais velho em idade, perguntei-lhe sobre o tal restaurante. Ele me respondeu secamente: “Não existe mais. Fechou há dois anos!”.

Sentei num banco com os meninos, expus o problema, passei o quadro geral de nossas provisões e equipamentos e pedi sugestões. Nossa reunião começou bem e, logo, ficou desgovernada. Parecia o encontro inicial em Valfenda para a fundação da sociedade do anel da obra de Tolkien: todos falando ao mesmo tempo sem que ninguém se entendesse. Já estava sem rumo. Agora, sem apoio logístico, também fiquei sem prumo. E, diante daquela confusão de línguas, sem palavras. Mudo.

Ficar perdido não é bom. Estar constantemente perdido é pior. Nossa vida passa por caminhos e descaminhos. Qualquer caminho conduz a alguma parte, ao centro, em suma, a algum lugar. Alguém já disse que a vida do homem é uma grande senda. De fato, o homem precisa ver e mover-se para aprender e aprender eleva o ser humano à categoria de homem capaz de assimilar as coisas e sobre elas se debruçar reflexivamente.

Aquele que caminha sem ir à parte alguma, encontra-se em estado de constante conflito ou contradição. Muitas vezes, somos colocados em caminhos inusitados e a perplexidade que daí surge pode provocar uma paralisação, justamente por não termos um caminho e, assim, não sermos capazes de buscar um desvio salvador. É a hora de perguntarmos por outros caminhos, porque, quando temos um caminho, não se quer parar. Mas a paralisação pode falar mais forte. Surge um mau silêncio.

Nesse momento, o silêncio é uma forma de expressão não expressada. Quem não se expressa, está reprimido e não maneja a forma mais comum de expressão do ser humano, a linguagem. O silêncio representa um estado de incômodo ou confusão momentânea. Aquele que não se expressa, está se despreciando e àqueles que estão ao seu redor, pois este silêncio prolongado causa mal-estar: os outros querem saber o que pensamos, ainda que nossa ideia seja exteriorizada por meio de um sorriso apenas.

Mas também há o bom silêncio. O silêncio pode ser um dar um tempo para si mesmo para pensar e, depois, passar para a ação. A palavra, então, nem é tão necessária, pois o sujeito passa a ser presente a si mesmo e aos que o cercam. É uma espécie de silêncio diáfano, onde se dá a pura presença que vence qualquer tipo de inércia arrebatadora.

Naquele dia, deixei-me levar pelo um mau silêncio. Na medida em que os minutos foram se passando, a fome e o mau humor da prole foi crescendo. A minha também. Foi quando percebi que estávamos numa zona de passagem obrigatória entre os dois decks mais frequentados. O jeito era ficar ali esperando que alguém do grupo nos encontrasse, mas com olhos atentos à nossa volta.

Algum tempo depois, fomos resgatados. Então, meu mau silêncio corporificou-se num bom silêncio. Dei um sorriso de alívio. Voltei a ter um rumo e um prumo depois de ter ficado desencontrado. E desejo o mesmo para quem está constantemente desencontrado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 04.03.2015, Página A-2, Opinião.