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Um sentido para o Natal

Opinião Pública | 16/12/2018 | | IFE CAMPINAS

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Foto: Malene Thyssen, http://commons.wikimedia.org/wiki/User:Malene, Wikimedia Commons.

 

Estamos em tempo de natal. Uma festa que, tradicionalmente, simboliza um sentido que vai além de nossa existência desolada. Divorciado desse sentido há tempos, o natal, ao que parece, caiu na armadilha das festas com data marcada: festas que têm tudo para virar nada. Nada, porque, diz a sabedoria popular, o melhor da festa é esperar por ela.

Se o melhor da festa é a espera que ela proporciona, logo, a festa não teria lá muito sentido. Mas, se o melhor da festa – a expectativa – é justamente causada por seus preparativos, como não lhe dar algum valor? Ou, então, seria a festa a consumação daquela crescente espera, cujo ápice, o dia de sua realização, corresponderia, simultaneamente, ao fim daquela expectativa e à volta da melancolia proporcionada pela repetição do cotidiano?

Em tempos de materialismo, consumismo, hedonismo e secularismo, a expressão “Feliz natal!” vem sendo substituída pelo simpático “Boas festas!”. Nada mais coerente. Nada mais vazio de sentido genuinamente natalino: simboliza uma desmedida preocupação com presentes, ceia, roupa e convidados, porque, se, por um lado, essa inquietação demonstra o devido valor que atribuímos a essa festa, por outro, destituída daquele sentido transcendente, a agitação transformou-se num fim em si mesmo.

Otto Maria Carpeaux, o melhor presente que a Áustria já deu ao Brasil, gostava de pensar o natal com um sentido de esperança transcendental. Talvez por conta da perseguição nazista aos judeus que sucedeu à anexação da Áustria ao III Reich, quando ele morava por lá. Ou, quem sabe, por influência do cristianismo, para o qual se converteu depois de ter abandonado o judaísmo.

Não importa. Por sua influência, desde a juventude, sempre meditei o natal dessa maneira, uma maneira que dá um denominador comum de sentido aos três momentos dessa festa: sua expectativa, sua realização e, sobretudo, o dia seguinte, um cenário normalmente marcado pelo mal estar estomacal, pela ressaca ou pelo fastidio material.

A esperança é um nobre tema da teologia cristã. É uma virtude teologal, ou seja, é um dom que decorre da ação divina, cujo autor deve ser o destinatário dessa mesma esperança. Fora dele, no mundo, só há espaço para um “genérico” de esperança: a esperança humana, de credibilidade duvidosa, ao menos à luz dos estragos que o próprio homem já fez a si mesmo.

Entregue a si mesma, essa esperança vaga no vazio do desespero, carregando em si a raça dos abandonados, como bem observou Horkheimer. Ou mesmo Kafka, quando, ao ser questionado sobre o tema, afirmou que há muitas esperanças, mas não para nós. Nos dois casos, paira um certo pessimismo, provocado pelo testemunho, por parte de ambas personalidades, de um período político e histórico de progressiva desumanização do homem.

Mas ainda é possível se falar em esperança transcendente numa realidade social pautada por uma visão de mundo materialista, ou seja, em que tudo não passa de um aglomerado de átomos e moléculas de duração finita? Em que o laicismo pretende banir a religião do âmbito público? Como fomentar a esperança num ambiente que funciona como a negação da própria esperança?

Meu avô, quando tinha quinze anos, faleceu de mal de Alzheimer, mas, durante esse doloroso processo de degeneração, ele teve um tumor cancerígeno cerebral diagnosticado. Naquela altura, eu já não mais “existia” para ele. Lembro-me de ter visto as imagens do tumor no exame que chegou às minhas mãos, tumor que não decretou seu fim, porque o Alzheimer bateu na porta da vida dele antes.

Lembro-me de ter buscado refúgio em Deus, na oração, e, também, em Shakespeare, porque sua literatura repete a vida: Hamlet segurou o crânio de Yorick, o bobo da corte dinamarquesa, e perguntou se nós somos apenas aquilo, um monte de ossos enterrado a sete palmos do chão (Hamlet, V, 1).

Achei que um monte de ossos coberto por uma carne não podia ser a causa eficiente de tudo aquilo que meu avô fez ou me proporcionou. Deveria haver algo mais. Algo que animasse suas ações e desse um sentido maior à sua existência. Isso foi o começo da minha resposta, alcançada plenamente alguns anos depois.

A morte de meu avô apresentou-me a uma genuína esperança e deu um outro sentido à minha vida: o sentido da miséria de nossa existência que, graças à esperança transcendental, abre-se à beleza da perfeição. E que se renova todo ano, quando contemplo a miséria material do presépio e essa mesma esperança nas faces de cada um de seus personagens.

Por fim, despeço-me temporariamente do caro leitor, após 16 anos de presença semanal. Farei um sabático, por motivos acadêmicos de pós-doutoramento, de seis meses e, depois disso, retornarei para aquilo pelo qual sou devotadamente grato por ter nascido apaixonado: escrever.

André Gonçalves Fernandes, Ph.D., é professor-pesquisador, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 12/12/2018, Página A-2, Opinião.

Maioridade penal e impunidade

Opinião Pública | 05/12/2018 | | IFE CAMPINAS

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Recentemente, outra vítima, uma jovem com apenas 20 anos, tombou diante de um brutal assassinato cometido por um “de menor” que iria completar 18 anos três dias depois do crime. Compartilho a dor desses pais que irão enterrar um filho, um medo que carrego comigo, como pai, diante desse clima de violência social, porque acredito que os mais jovens devem suceder os mais velhos na existência. Admito que, diante de uma notícia desse naipe, leio o estritamente necessário, porque faz aflorar meus instintos mais primitivos.

Entretanto, instigado por um erudito leitor que gentilmente me solicitou uma opinião sobre o assunto da maioridade penal, lanço aqui algumas reflexões. E que cada um faça seu exame de consciência depois. Para a turma “bem pensante”, digo que um menor desajustado socialmente não é um potencial revolucionário em fase embrionária ou um fruto da árvore podre de nossas culpas pela omissão social das famílias desses menores: é uma pessoa que nasceu e cresceu num ambiente predisponente, mas não determinante, ao crime.

Um menor que pega uma arma para roubar um celular da vítima, em regra, tem pleno entendimento do caráter ilícito de sua conduta e é perfeitamente capaz de agir – ou não – conforme esse entendimento. As estruturas sociais que pervertem a sobrevivência social das famílias desses “menores” não são capazes de retirar por completo o elemento anímico – a vontade de infringir ou não a lei – do agente.

Sempre haverá um momento, por mais fugaz que seja, em que nossa vontade será chamada a dizer “sim” ou “não” para fazer aquilo que temos em mente. Seja bom ou mau. Não preciso de complicadas teorias sociológicas e nem de pesados tratados metafísicos ou antropológicos para enxergar uma realidade que anos de jurisdição na infância e juventude me ensinaram e que, de certa forma, diminuíram alguns anos de minha vida.

Mas convém distinguir para separar. Os tratados metafísicos e antropológicos confirmam minha experiência e as teorias sociológicas, em sua maioria, não passam de um exercício bem rasteiro de puerocentrismo indulgente, complacente com o menor, reduzido a uma espécie de coitado social de vontade nula, e inclemente com a vítima, a engrossar os números das estatísticas criminais.
Curioso notar que esse puerocentrismo afetou até mesmo o ambiente eclesiástico: existe apenas a pastoral dos presos, apesar de as vítimas, numericamente maiores, também pertencerem ao rebanho. Piada pronta.

Qualquer redução no limite da maioridade penal deve ser fruto de uma política criminal que dê um claro rumo e um propósito definido ao direito penal, algo que passa, necessariamente, pelas ideias de justiça e de bem comum. Não pode ser fruto de periódicos surtos de clamor social, ainda que tais surtos sejam muito importantes para o legislador acordar para uma consciência do problema. Além disso, o Estado deve atuar nas áreas em que está ausente e que justamente são mais sensíveis ao problema da criminalidade juvenil: educação, saúde, segurança e trabalho.

Desde os tempos de Largo, na questão da maioridade penal, sempre defendi uma posição, digamos, mais judicializada, o que torna, embora pertinente, esse debate de idade mínima – 17 ou 16 anos – indiferente para mim. Penso que esse limite deveria ser extinto, competindo ao magistrado, no caso concreto e segundo as circunstâncias pessoais do infrator, avaliar, com mecanismos interdisciplinares de apoio, sua imputabilidade penal e, caso afirmativo, condená-lo e submetê-lo à uma justa dosimetria penal, a partir da pena-base para o crime praticado e com a devida observância de fatores agravantes ou atenuantes. Pouco importa se o autor da violação ao bem da vítima tenha oito ou oitenta anos.

Creio ser uma proposta um tanto avançada para uma sociedade que ainda não está preparada para isso e que, cada vez mais, é marcada a fogo pelo cálculo egoísta, pela alteridade superficial e pela exaltação materialista. Um ambiente assim gera condições predisponentes para o incremento da delinquência juvenil. Façamos nosso mea culpa também.

Contudo, também é direito da sociedade cobrar a devida responsabilidade penal de qualquer pessoa a partir da idade em que já tiver conhecimento potencial da ilicitude de um ato e puder se comportar de acordo com esse entendimento. Do contrário, a prevalecer o panorama atual, continuaremos a enterrar nossos filhos e, talvez, nossas esperanças. No mesmo túmulo. E, na lápide, restarão apenas as lágrimas: de tristeza, por uma vida ceifada estupidamente, e de injustiça, como efeito dessa iniquidade legal proporcionada por uma concepção superada de maioridade penal, estribada no puro critério biológico. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 05/11/2018, Página A-2, Opinião.

Justiça no divã

Opinião Pública | 28/11/2018 | | IFE CAMPINAS

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Não é novidade para nenhum cidadão que o Poder Judiciário vem sendo alvo de constantes novidades e ajustes pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sem dúvida, sob a perspectiva institucional e estrutural, os avanços têm sido inegáveis, com algumas ressalvas aqui ou ali, sobretudo quando o CNJ insiste, muitas vezes, em tratar os tribunais brasileiros sob a perspectiva de um Estado unitário, quando o Brasil continua trilhando, republicanamente, pelas sendas federativas. Enfim, esse embate intestino não interessa muito ao leitor. Mas outro.

Ao leitor, o destinatário de nosso serviço público, interessa muito mais um outro Poder Judiciário: aquele das práticas judiciárias, porque diretamente envolvidas com o cotidiano do cidadão e que respeitam ao trabalho diário do magistrado de assinalar e distribuir a justiça no caso concreto.

Entretanto, convém lembrar o leitor que vivemos numa sociedade de massas e, por isso, tais práticas judiciárias vêm sendo conduzidas muito mais sob a perspectiva da eficácia do que da realização do justo concreto. É a visão, cada vez mais hegemônica, que está por trás da práxis dos principais atos administrativos, dos tribunais e do CNJ, que enfocam o “modo de produção” de decisões pelo juízes.

As práticas culturais e sociais contemporâneas, desde há muito, têm sido colonizadas pelo dado técnico, neutro, padronizado e informático. Lembra muito uma linha de produção fordista-taylorista. Ou, na versão moderna, o modelo toyotista. Não tenho a menor dúvida que esse movimento colonizador é a causa daquela perspectiva de endeusamento da eficácia que conduz os respeitáveis órgãos já citados, até porque as práticas de distribuição da justiça são, no fundo, práticas sociais.

Como representante do baixo clero judiciário, tenho uma crescente sensação de que a ritualização do “modo de produção” das decisões já provoca uma estéril postura reflexiva do magistrado no ato de julgar. Em outras palavras, o efeito prático dessa ritualização é simples: mais “juízes operadores”, expressão que diz muito, e menos “juízes prudentes”, na acepção clássica da prudência judicial.

Isso já pode ser notado em muitas expressões do jargão forense. Numa audiência, um advogado disse que o mais importante era a rapidez dos tribunais na solução dos litígios. De fato, a lentidão judiciária gera impunidade, injustiça e fomenta um clima social de autotutela, mas a dita rapidez tem um lado oculto: o maior risco de erro judiciário, o que também é uma injustiça, e isso provoca o desprestígio da instituição.

Outra expressão que vai se enraizando no inconsciente coletivo judiciário é a chamada “decisão técnica”. Nada mais positivista que isso, porque o positivismo responsabilizou-se pela transformação da justiça em técnica, por meio de uma racionalidade dogmática que foi alimentando o processo de definição do justo pelo legalmente posto.

Contudo, o pior efeito dessa ritualização do “modo de produção” é a “prática judiciária” da prolação de sentenças em série e da votação de recursos em bloco, pois, aos poucos, tais práticas vão despersonalizando a figura do juiz e, indiretamente, desumanizando o poder que zela pela distribuição da justiça.

Ao cabo, a impressão que fica é a de que, para o CNJ e para os tribunais, o importante mesmo são os números dos itens e subitens das planilhas mensais. A estatística é erigida à condição de racionalidade instrumental e “torna-se o método de cálculo do rendimento profissional e do merecimento promocional”, na feliz definição de um amigo togado.

Rapidez, tecnicidade e estatística: eis os deuses idolatrados pelos tribunais e pelo CNJ. Mas são deuses de pés de barro, porque a “justiça” dessa racionalidade desumanizante é a “justiça” que se fecha à reflexão, à prudência e à tomada de decisão inserida na articulação do real concreto, fragilidades que, com o tempo, serão percebidas pela sociedade em que vivemos. E, então, aqueles deuses cairão pela ação do próprio peso, porque uma sociedade repleta de “juízes operadores” é uma sociedade vazia de uma concreta justiça. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 28/11/2018, Página A-2, Opinião.

JUVENTUDE, CONDUÇÃO E RUMOS

Opinião Pública | 21/11/2018 | | IFE CAMPINAS

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Numa dessas manhãs, pedalava ao redor da Lagoa ouvindo a voz operística do Bruce Dickinson. O vento cortava a alma, porque o sol ainda não tinha levantado, mas a disposição de muitos já estava de pé, pondo-se a marchar na minha contramão de direção.

Gosto muito desse exercício matinal. Alia esforço físico com distanciamento da realidade e é vivida mais intensamente nos meses em que não há aulas, porque, nesse horário do dia, invariavelmente estou levando os filhos para a escola.

Nesses momentos, a reflexão costuma fazer-me companhia, sempre tirada a partir da observação dos rostos que cruzam com o meu ao longo das voltas que vão sendo vencidas até que o cansaço fale mais alto. Nesses rostos anônimos, sempre vejo inúmeras faces de alegria, tristeza, preocupação ou tédio. Algumas cabeças, ora empinadas, ora cabisbaixas e outras plugadas ao som da música ou ao som do silêncio. E a minha cabeça em ritmo de diálogo com todas essas outras.

Naquela manhã, chamou-me atenção um grupo de senhoras que caminhava acompanhado de supostos netos, recém-egressos na juventude, porque nesse horário do dia, esses seres, em férias, costumam estar imóveis e acompanhados de travesseiros e cobertores. Ao olhar para aquela cena, lembrei-me que os jovens são sempre capazes de nos surpreender. Para o bem ou para o mal: vai depender do grau de enamoramento de seu coração.

Hoje, é preciso estar atento para os anseios e as perspectivas que a realidade descortina para a juventude, porque daí devemos apontar um modelo ético de ser humano e de sociedade coerente com nossa natureza. Não estou aqui a repetir a chavão de uma certa mentalidade decrépita, tanto mais decrépita, em regra, quanto mais longe se situa de seu passado juvenil e que fica enfatizando as limitações e os fracassos da cultura atual.

É preciso abrir espaços de interlocução com os adolescentes, participar de seus ambientes, dialogar com suas representações, compreender suas expectativas, mas, sobretudo, dar rumo para que eles conduzam seus projetos de vida. Porque, quando somos jovens, costumamos pensar nas pessoas que amamos e admiramos e que, por isso, gostaríamos de imitar.

Pode ser uma pessoa da vida quotidiana ou um sujeito famoso. Vivemos numa cultura da celebridade e a juventude é, muitas vezes, encorajada a ter figuras do mundo dos esportes ou do espetáculo como modelos de vida. Devemos aproveitar essas ocasiões e, ao invés de dizer que esse não presta ou essa é assanhada demais, devemos submetê-los às perguntas cruciais: quais são as qualidades que esses modelos possuem e que você gostaria de possuir em maior medida? Que espécie de pessoa realmente você gostaria de se tornar?

Ouviremos respostas nos mais diversos sentidos, mas a maioria delas passará por rios de dinheiro ou por uma alguma espécie de vanguarda espetacular numa dada atividade profissional. Ter dinheiro torna possível ser generoso e fazer o bem no mundo. Entretanto, só isso não é suficiente para tornar uma pessoa feliz. Ser grandemente dotado numa profissão é algo positivo. Poderá tornar-nos famosos, mas isso não é sinônimo de felicidade.

A busca da mimese de uma celebridade é, no fundo, a busca da felicidade que o jovem anseia tão intensamente nessa fase da vida. No entanto, uma das grandes tragédias deste mundo é que muitos a procuram, mas não conseguem encontrá-la, pois a buscam nos lugares errados. Os sucessos mundanos não satisfazem um coração enamorado, porque ele foi feito para a transcendência e a transcendência é a porta de nossa alma que abre somente para fora.

Paul Johnson, certa vez, disse que a adoração que os jovens dedicam às celebridades é uma corruptela da espécie de adoração que os nossos antepassados dedicavam aos santos, beatos e outros tipos de aureolados. A afirmação é tão certeira que os modernos “peregrinos” imitam os antigos na busca de uma relíquia da celebridade amada, ressalvado o abismo axiológico particular entre umas e outras.

Recentemente, o vaso sanitário do John Lennon foi a leilão pelo lance mínimo de 9.500 libras. Ontem, um pedaço de tecido. Hoje, uma privada. Amanhã, quem sabe, a língua da Lady Gaga conservada num vidro de formol. Não sei. Só sei que, além de condições materiais decentes, devemos oferecer aos jovens modelos de imitação que os conduzam a um horizonte de vida autêntico. Quem sabe começando por nós mesmos, os pais, por meio de um esforço diário de exemplo, resgatando, como dizia o cantor na minha pedalada, a juventude que existe dentro de nós. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 21/11/2018, Página A-2, Opinião.

Pais ausentes, famílias desestabilizadas

Direito | 15/11/2018 | | IFE CAMPINAS

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“Órfãos”, de Thomas Kennington.

 

RESUMO

Uma das maiores descobertas antropológicas do século XX foi a de que tanto o homem quanto a mulher devem contribuir conjuntamente na construção familiar e cultural de uma sociedade. Ambos estão chamados a um sadio protagonismo nessas tarefas.

Contudo, na dimensão familiar, muitas vezes os filhos veem-se privados da presença de um modelo paterno que lhes proporcione um marco para a determinação de sua identidade existencial e uma integração equilibrada das estruturas emocionais e sociais. A paternidade é a figura familiar que ajuda o filho na descoberta de sua masculinidade e a filha na afirmação de sua feminilidade. A ausência do pai tem provocado graves dificuldades e conflitos que desembocam na perda de uma importante referência fundacional e, ao cabo, na própria desestabilização familiar.

ABSTRACT

One of the biggest anthropological discoveries of the twentieth century was that both man and woman must contribute jointly in the family and cultural construction of a society. Both are called to a healthy role in these tasks.

However, in the family range, the children are frequently deprived of the presence of a paternal model that provides them a framework for determining its existential identity as well as the balanced integration of emotional and social structures. Fatherhood is the family figure that helps the son discover his manhood and the daughter affirm her femininity. The absence of a father is causing serious issues and conflicts that lead to the loss of an important foundational reference and to family destabilization.

Palavras-Chave: Paternidade, Maternidade, Família, Desenvolvimento, Esfera Pública e Privada.

Keywords: Paternity, Maternity, Family, Development, Public and Private Sphere.

 

PAIS AUSENTES, FAMÍLIAS DESESTABILIZADAS
ABSENT FATHERS, DESTABILIZED FAMILIES

André Gonçalves Fernandes

 

INTRODUÇÃO

A situação histórica em que a família vive apresenta-se como um quadro de Goya: um conjunto de luzes e sombras, com a diferença de que projeta, para o estudioso, uma imagem confusa, como as tramas do avesso de uma colcha de patchwork. No que toca à tarefa de educação da prole, a família, sociologicamente, nos últimos cinquenta anos, passou a confiar o conjunto dessa missão ao Estado, quase como se fosse uma espécie de babá, sempre disposta a lhe delegar muitas das facetas desse conjunto. Assim, com a assunção do “Estado-babá”, a família deixou de ser o locus socialmente privilegiado para o exercício da competência educativa.

Contemporaneamente, esta competência corresponde a sete relações indispensáveis (FAMÍLIA, 2007:243), as quais tomam parte tanto do desenvolvimento biopsicológico da criança, quanto de sua educação. São elas:

Relação de identidade: permite à criança ser nomeada e inserida numa dada descendência genealógica e num certo vínculo geracional, essencial numa sociedade cada vez mais atomizada;

Relação de origem: concede à criança um termo inicial existencial, numa sociedade cada vez mais massificada, despersonalizada e individualista;

Relação de escuta: constitutiva do papel que a família concede à criança e, por isso, permite seu posterior reconhecimento nas engrenagens sociais por ocasião de sua maturidade;

Relação de espaço e tempo: ambiente simbólico e de estímulo para a vivência dos acontecimentos específicos da existência da criança e de seu ritmo vital, numa sociedade em que, crescentemente, o espaço é funcional e o tempo fragmentário;

Relação de fraternidade: permite a abertura do círculo familiar à compaixão, ao espírito de serviço e à face bem concreta do outro, numa sociedade do império da competitividade e da concorrência;

Relação de fecundidade: exprime o dom de si e estabelece o significado, o sentido e o alcance das responsabilidades pessoais e sociais, diante do hedonismo utilitarista que dá a notação no bojo das relações sociais;

Relação de separação: em razão da relação mãe-pai, permite à criança não se enclausurar numa relação exclusivamente dual, sobretudo com a mãe, atuando o pai como agente limitador da potência do elemento materno, a fim de que seja indicado simbolicamente para a criança o sentido da fronteira ética.

As relações especificadas dão bem o tom da especificidade única do locus familiar. Trata-se de uma órbita existencial onde se tece, por intermédio de cada pessoa, um conjunto de relações interpessoais – relações dos cônjuges entre si, destes com os filhos e destes entre si – propícias à comunicação do amor num mundo de ódio, de violência e de colonização do mundo da vida pelo cálculo sistêmico do custo/benefício típico das estruturas do poder e do dinheiro.

Em virtude desse telos peculiar do ente familiar, a sociedade e o Estado têm o dever de oferecer às famílias um adequado ambiente material, econômico, político, jurídico e social, mas também afetivo e educativo. Não é bem a realidade a que assistimos. Pelo contrário, vemos famílias fragmentadas. Em todos os sentidos e por um universo de razões. Sem dúvida, dentre todos esses fatores, um deles goza de nossa preocupação em nossa experiência nas lides familiares do mundo forense: a ausência do pai e os efeitos nefastos de perda de referência que isso provoca na criança.

A função paternal foi desvalorizada. Causa impressão de que a sociedade não está mais disposta a permitir que essa dimensão simbólica funcione. O ícone sociocultural que o homem, até algumas décadas atrás, representava, por meio de suas atribuições, valores e atitudes e que nossa sociedade tinha como atributo específico seu, foi bastante alterado, em razão da mudança de imagem que a masculinidade vem sofrendo.

Tal mudança poderia ser tida como irrelevante, se vista sob a ótica historicista. Mas não. Popper já mostrou a “miséria do historicismo” e, nessa onda histórica, algumas contribuições positivas para a masculinidade – por exemplo, a divisão das tarefas domésticas – vêm acompanhadas de outras que não beneficiam em absoluto aquilo que é próprio da masculinidade, como a desconstrução do homem feita pelo feminismo de segunda geração.

Diante disso, o homem não só está mudando o núcleo de um comportamento comum a todos os machos da espécie humana, mas também o da família a que pertence e, mais precisamente, por meio do vínculo relacional paterno, os padrões de conduta dos filhos varões[1]. E, sob certo ponto de vista, acreditamos que esse fenômeno traz consigo uma forma bem concreta de pai ausente: pais fisicamente presentes, mas relacionalmente faltantes, em virtude da desvalorização da função paternal.

Convém lembrar que, quando nos referimos à paternidade, resulta inevitável referir-se à maternidade, já que ambas as realidades estão tão ligadas entre si, atuando reciprocamente de maneira a formar um único tecido no núcleo vital das relações familiares. Queremos dizer que toda mudança nestes papéis projeta-se sobre o outro, a ponto de alterá-lo. São dois lados de uma mesma moeda.

A masculinidade e, mais concretamente, a paternidade converteram-se hoje num problema e num desafio. Num problema, porque a intenção de unificação das características do homem e da mulher criou uma certa confusão no que diz respeito à identidade sexual. Num desafio, porque há muito por fazer diante da reinante fragilidade da masculinidade frente ao atual estágio da feminilidade.

A equiparação sexual é muito bem-vinda em diversos campos de atuação do homem e da mulher, mormente na órbita dos direitos civis e trabalhistas. Todavia, na tarefa educativa, esse fenômeno, levado às últimas consequências, por intermédio da absolutização desta equiparação, acaba por provocar uma debilitação dos espíritos envolvidos, inclusive dos filhos, abrindo-se espaço para a confusão e a ignorância. Assistir a uma audiência de instrução e julgamento em matéria de guarda familiar é um verdadeiro doutorado no assunto.

Intuímos que a nova imagem do homem que se busca, no mais das vezes, estimula as velhas e recíprocas hostilidades que existiam entre os sexos e, ao invés de abrir novas portas, parecem cerrar ainda mais aquelas que já estavam trancadas. Some-se, ainda, o fato de as linhas divisórias entre o masculino e o feminino estarem demasiado desalinhadas na realidade, como efeito nefasto da ideologia de gênero, e constituírem um novo obstáculo na busca de uma via necessária de colaboração e complementariedade entres os dois sexos.

Se alguns papéis masculinos e femininos estavam mal assentados no seio da realidade familiar – por exemplo, o confinamento da mulher no lar e a distância entre pai e filhos que inviabilizava a confiança recíproca – o que justifica uma mudança, por outro, isso não importa concluir ser necessária uma completa reconstrução de cada papel ex nihilo. Tanto um como outro têm sua atuação concreta em dimensões e atributos irrenunciáveis, porquanto constituem os fundamentos inalienáveis da identidade pessoal.

A incorporação definitiva da mulher no mercado de trabalho provocou boa parte das mudanças familiares que hoje vemos, influenciando o varão na revisão do papel da masculinidade. Entretanto, como a revisão transformou-se numa desconstrução, assistimos ao fim da história do patriarcado que, em muitos aspectos, já vai tarde: o autoritarismo tradicional, que se modificara para coragem, hoje, transformou-se em covardia; o distanciamento, que fora substituído pela amabilidade, hoje, virou permissividade. E assim por diante.

Crise de autoridade, insatisfação com a nova masculinidade do varão nas relações familiares, multiplicação dos conflitos conjugais, ausência de vitalidade paterna refletida de forma patente na abstenção das responsabilidades familiares, ansiedade e sofrimento ante a perda da identidade masculina e rebaixamento da maturidade paterna ante a mimetização dos hábitos dos filhos. São os campos de batalha que estão nas entrelinhas dos processos de família que julgo diariamente. E cada um trava as batalhas que merece. Nessas linhas, faremos uma pausa nessa jornada para refletirmos sobre um fenômeno bem presente: o fenômeno do pai ausente.

 

DESENVOLVIMENTO

Historicamente, os papéis sociais foram divididos entre femininos e masculinos. O homem ocupou-se da esfera pública, ao que passo que o peso do espaço privado, do qual se proibia de sair, recaiu exclusivamente sobre a mulher. Os resultados dessa distribuição são patentes (ELSHTAIN, 1993:120): ambas esferas – pública e privada – resultaram prejudicadas, por estarem incompletas.

A esfera pública, aqui entendida como o mundo da política, da economia e do trabalho, é colonizada[2] pelos atributos da competitividade, do cálculo eficienticista (meios ajustados a fins autojustificados), do poder e do dinheiro (mecanismos de integração sistêmica), e da razão instrumental. É um mundo inóspito, porque faltam os influxos da feminilidade, principalmente aquele voltado para o zelo prioritário das pessoas.

Parece que as estruturas laborativas e sociais aguardam o aporte feminino para que cada pessoa possa, em cada circunstância profissional, o melhor de si. Em outras palavras, a esfera pública reclama a presença da mulher-mãe, a fim de que esta esfera esteja em função da pessoa e da família e não ao contrário.

Sob outro ângulo, na esfera privada do mundo familiar, os filhos veem-se privados da presença efetiva de um modelo paterno que os integre equilibradamente em suas estruturas emocionais e sociais. Essa abstenção tem provocado graves dificuldades e conflitos, diagnosticados pela psicologia[3] e pela sociologia[4] atual.

Ambos desequilíbrios, presentes ao longo de toda a história da humanidade, agravaram-se nas últimas décadas, como efeito da influência dos postulados filosóficos da modernidade. De fato, uma sociedade, historicamente, pode privilegiar o código simbólico feminino ou o masculino, intentar uma sinergia entre ambos, mas não pode anular as diferenças intrínsecas: desde uma perspectiva normativa, o que mais conta é o processo interpretativo peculiar que cada cultura histórica confere aos códigos simbólicos. Tanto o masculino como o feminino.

Nesse diapasão, a modernidade privilegiou uma leitura induvidosamente masculina de diferença sexual e de família como vínculo sexuado e relacional. Mirou com lentes masculinas: privilegiou a racionalidade, a aquisição, a competição, a força e o domínio sobre a natureza. Com a crise da modernidade, a mulher converte-se em sujeito e objeto de um novo interesse filosófico e político, a privilegiar seu código, mas não necessariamente a dimensão materna desse código, o que, justamente, é o fator distintivo em relação ao homem e seu código masculino.

O discurso de construção da mulher é um dos fatores mais importantes na desconstrução do sujeito racional moderno. Exalta-se o feminino como categoria abstrata ou como sujeito histórico concreto. Todo pensamento ocidental está empenhado em revisar a modernidade como leitura sexuada masculina do mundo, inaugurado com Kant. O projeto desconstrucionista é elaborado a partir da evocação do self feminino, mas um self que não passa pela noção de mulher e é reputada como totalizante e emancipatória. Esse self passa pela ideia de uma mulher que vem antes do homem, não é dele derivada e é ontologicamente independente.

Mas, sociologicamente, os sexos sempre pertenceram ao gênero comum, o humano, embora masculino e feminino fossem duas dimensões autônomas e coexistentes nas pessoas de ambos os sexos. Os estudos empíricos, sociológicos e psicológicos sobre a percepção do self atestam que indivíduos concretos singulares, apesar de estarem localizados num dado sexo, são capazes de desenvolver atributos do sexo oposto. Em outros termos, o humano distingue-se em masculino e feminino, sem que possa ser repartido entre ambos. É de um e de outro, ainda que de formas existencialmente diferentes. Os papéis sociais, tomados a partir dos respectivos códigos, são complementares e não opostos.

Some-se, a esse quadro de um mundo dividido entre o materno afetivo doméstico e o paterno racional laboral, os influxos da teoria de gênero[5], a qual radicaliza a reflexão ao questionar as realidades psíquicas e simbólicas de cada sexo, derivadas da constituição da corporalidade, e denuncia a manipulação social do poder masculino. A influência desse panorama pouco aberto à paternidade na constituição familiar e no agir concreto dos pais é enorme, a julgar pelas modalidades parentais já observadas em nossa sociedade.

Não seria, assim, necessário, construir (CASTILLA DE CORTÁZAR, 2005:15) uma família com um pai e uma sociedade com uma mãe, sendo ambos pais e trabalhadores? Acreditamos que a paternidade e a maternidade podem dar notáveis aportações ao bem comum, cada qual a partir de recursos distintos. Servindo-se da analogia das mãos, podemos afirmar que (MARÍAS, 1980:54) ser varão ou ser mulher consiste numa referência recíproca intrínseca: ser varão é estar referido à mulher e ser mulher significa estar referida ao varão, como na relação entre as mãos esquerda e direita.

Se só existisse a mão esquerda, ela não seria chamada de esquerdas. Ela é assim denominada em referência à mão direita. As diferenças, portanto, são relacionais. Homens são de Marte e mulheres são de Vênus, mas, como os planetas colaboram, nas trajetórias celestes entre si, para um equilíbrio universal no sistema solar, mulheres e homens atuam recíproca e complementarmente nos sistemas familiar e social. E, porque suas peculiaridades são relacionais, complementares e recíprocas, cada um se apoia no outro, cada um encontra sua possibilidade no outro.

A maternidade tem, entre outras uma nítida função: prover a sociedade de novos descendentes. Esse dado existencial e sociológico, que se dá no seio de uma família, com a cooperação de um pai, recai, em grande parte, sobre a mulher. Frente a ela, o varão está em dívida, porque ela aporta mais num dado que consiste num bem para todos: muitas mães suportam quase todo o peso e dedicação a seus filhos pequenos, depois de já terem resistido a toda uma gestação, nem sempre isenta de complicações médicas.

Se o homem-trabalhador fosse realmente um pai, a mãe-trabalhadora poderia ser felizmente uma realidade. Mas isso requer que o homem não se esqueça de ser pai. Quando está em casa, mas também enquanto trabalha. Eis um atualíssimo desafio para nossa sociedade: a maternidade agredida busca homens que tenham superado sua paternidade ausente. Paternidade que compartilha as cargas do lar e a atenção dos filhos. Paternidade que apoia os planos profissionais da mãe de seus filhos. Paternidade que crie condições para que outras mulheres possam exercer sua maternidade.

Trazer filhos ao mundo é uma tarefa de primeiríssima importância social que plenifica a mulher em muitos valores, os quais ela pode transmitir, por meio de seu trabalho profissional, para toda a sociedade. A maternidade, exemplo universal e perene de amor incondicionado, pode e deve ser valorizada por homens que descubram modos acertados de viver a paternidade, presentificando-a. Dessa forma, conseguirão superar a síndrome de abstenção que a caracteriza. Onde e como podemos visualizar essa ausência da figura paterna?

Com anos e anos de trabalho em matéria de direito de família, podemos notar uma série de transformações na noção de paternidade, nuances naturais antes pouco valorizadas e agora incorporadas pelas leis e pela mudança do sentido e do alcance da noção de família.

No terreno da educação familiar, a ausência do pai sempre foi uma constante. Hoje, a julgar pela tônica dos processos de família, em muitos casos, a falta do pai virou desterro: ele foi expulso do âmbito familiar e esta carência, que não se resume à ausência meramente física, adentra em outros setores que resultam irrenunciáveis para a formação dos filhos. Muitos dos relatórios psicossociais lidos nos processos são sempre uma desventura e a decisão do juiz acaba por ser uma espécie de assinalação de uma certa prudência judicial familiar de redução de danos ao caso concreto.

Hoje, na leitura judicial dos casos de família, a falta do pai é, além de física, sobretudo emotiva, cognitiva e espiritual. Tais privações influem em todos os filhos. No entanto, as consequências repercutem mais nos filhos varões. O eclipse da paternidade gera uma relação mais empobrecida entre pai e filho, pois a vida de ambos não mais se compartilha e, logo, não há convivência. A paternidade tem uma dívida de responsabilidade ad intra familiar.

A mãe, até alguns anos atrás, era considerada a principal educadora da prole, por uma série de razões sociológicas, culturais e sociais, mas que, no fundo, levavam em conta certas peculiaridades e características psicológicas diferenciadas em razão de sua identidade sexual. Como efeito, entendia-se que a educação da prole era uma tarefa tipicamente feminina, por ter mais conta o concreto e os detalhes e em virtude de seu instinto maternal, realismo e especial sensibilidade à unidade de vida que se manifesta nos filhos.

Por outro lado, a revelia paterna justificava-se pela incapacidade do pai em ter aquelas qualidades maternas, agravado pela exacerbada competitividade profissional e pela natural tendência à abstração. Sua imagem era pouco útil para a educação do filho varão. Para essa lógica monolítica, o filho não precisava integrar ambos os mundos – paterno e materno – para, depois, na maturidade, assumir e responder adequadamente às complexas contradições que estamos expostos socialmente. Pais e mães, nessa mesma lógica, não tinham parecidas habilidades educativas, matizadas por um rico contraste e, ao cabo, acabavam por justificar a exclusão de um ou de outro.

Nessa visão, o filho varão não precisava se relacionar com ambos, de maneira isolada e conjunta, pois a mãe substituía o pai completamente, donde sequer se cogitava a necessidade de um equilíbrio quantitativo e qualitativo nas maneiras pelas quais pai e mãe deveriam relacionar-se com os filhos em seus respectivos papéis pedagógicos.

Nos dias atuais, seguramente, a maioria dos estudiosos de família está de acordo com a gravidade deste problema, que afeta toda a sociedade e, mais especialmente, aqueles que se ocupam do ente familiar, como pais, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e educadores, na tarefa de zelar pela formação das futuras gerações.

As soluções divergem num sentido ou noutro para a resolução de boa parte dos problemas que os filhos enfrentam em casa, na escola ou na sociedade e que são, em grande parte, reflexo da síndrome do pai ausente, definida a partir de duas perspectivas bem diversas: do filho varão, que sofre o efeito dessa falta, e pela do pai que a causa, ainda que também sofra as consequências dessa privação.

Pela primeira, a síndrome compreende um rol de privações afetivas, cognitivas, físicas e espirituais que sobrevivem ao filho como consequência do vazio que existe nas relações entre ele e o pai. Pela segunda, a ausência do pai significa sua falta de empenho na educação do filho varão, qualquer que seja o tempo presencial no lar familiar, normalmente mitigado por pendor demasiado ao ócio ou mesmo ao trabalho profissional. Vários são os exemplos.

Vários são os exemplos em ambas as perspectivas. Pai ausente corresponde àquela figura paterna que, embora divida o mesmo teto dos filhos, oscila entre um comportamento apropriado à sua condição e outro pouco condizente. Nesse caso, tomo uma realidade muito constante: o pai que mimetiza os hábitos do filho varão, acreditando, firmemente, que, dessa forma, aproxima-se dele. Ele veste-se como o filho varão, fala como o filho varão e participa ativamente dos divertimentos do filho varão. Em essência, é uma caricatura de pai, formada pelo vazio na relação paterno-filial.

Pai ausente é o pai que se tornou uma espécie de espectro caseiro, dado o escasso tempo que passa no lar ou pelo abandono de seus deveres familiares, quando não se vale de evasivas ou, passivamente, assiste a esposa fazendo o que lhe devia. Pai ausente é o pai que cria uma redoma incomunicável quando está em casa, é incapaz de mostrar aos filhos manifestações naturais de afeto, encouraça-se nas estritas exigências de rendimento escolar e de competitividade profissional ou, em casos extremos, sobrepõe-se pelo estéril despotismo viril.

Pai ausente é aquele pai não realiza os valores masculinos verificados sociologicamente ou mesmo os rechaça, quando não acomoda sua conduta conforme os valores femininos reinantes segundo o modismo social vigente. Em casos mais exóticos, transforma-se numa figura feminilizada, tal é o grau de adoção de hábitos consagrados pelo uso das mulheres.

Pai ausente é o pai que desnaturaliza seu comportamento propositadamente e por completo, a fim de ser bem quisto pelos filhos. Nesse caso, reprime sua personalidade e frustra a possibilidade de identidade do filho, pois impede o fato de poder ser imitado ou respeitado no lar, na ótica do filho ou da filha respectivamente. Esses e outros exemplos tirados de nossa experiência profissional, como magistrado que assinala e distribui o justo concreto nas lides familiares, demonstram que esse pais não têm nada para oferecer aos filhos, principalmente os varões, e, em todo caso, oferecem uma masculinidade desvertebrada, multiplicando e estendendo uma série de modelos úteis apenas para o desamparo filial, já que nenhum deles consegue transmitir uma imagem positiva de paternidade, pela qual esperam e precisam os filhos.

O pai que falta em casa gera um filho falto de pai. Diante da figura ausente do pai, os filhos vão buscar um substituto. Surge a imagem indireta da paternidade. O filho sem pai foca sua atenção numa outra figura masculina frequente em sua vida: um tio, um professor, um avô e mesmo a mãe que, por melhores que sejam como pessoas, não são capazes de transmitir uma identidade paterna consolidada.

Inconscientemente, tais figuras substitutas são heróis varonis provisórios, pois apenas oferecem aos filhos sem pai um apoio transitório muitas vezes ambíguo e sempre circunstancial, já que serviram somente de bálsamo para aliviar a dolorosa ferida gerada pela revelia paterna, para a qual a melhor solução seria a cura. Uma cura que passa pelo desafio de uma ressignificação da paternidade, a fim de que o pai ausente não se faça mais presente e, como efeito, devolva aos filhos sua verdadeira pátria filial.

Em quais âmbitos, então, poderíamos desencadear esse desafio? É uma realidade que ainda está, em grande parte, por definir e realizar. O terceiro milênio está chamado a reconfigurar os papéis da mãe e do pai no seio familiar sem apelos nostálgicos e, à luz de uma antropologia filosófica que respeite a ontologia do ser familiar, descobrir os âmbitos de desenvolvimento próprio do varão, sem se olvidar de suas dimensões esponsal e paternal que, até o século passado, eram tidas como acidentais em sua personalidade social.

Por outro lado, convém superar um dado sociológico marcante em favor da mulher: a preponderância da maternidade frente à paternidade, porque, durante séculos, podemos dizer que a alma feminina sempre foi trespassada pela maternidade. Superar no sentido de que, apesar dessa constatação empírica confirmada sociologicamente, num órbita maior, a antropológica, paternidade e maternidade equivalem-se, porque pertencem à mesma categoria ontológica, ainda que essas dimensões dialoguem com seus respectivos sexos de maneira diversa.

A maternidade é mais inata à mulher que a paternidade ao varão. Quando uma mulher dá a luz a um novo ser, sabe, quase sem necessidade de aprendizagem, o que deve fazer com seu filho em tenra idade. Em virtude de sua peculiar intuição para conhecer as pessoas, uma mãe sabe o que se passa com seu filho nessa fase, ainda que, nos primeiros anos de vida, ele não saiba falar.

Depois, na medida do desenvolvimento do filho, chegará o momento em que ele deverá ser educado formalmente e, então, sua maternidade terá que se sujeitar à uma aprendizagem. Tal como a paternidade, com a diferença de que o varão deve aprender a paternidade desde o início: ele se sabe pai por meio da maternidade. A mulher não só ensina a seus filhos quem é seu pai como ensina ao pai quem são seus filhos.

No último modelo familiar sociologicamente marcante, o da sociedade patriarcal, considerava-se que a tarefa do pai encerrava-se por completo ao chegar, depois de um dia exaustivo de trabalho, no reconfortante lar familiar, já que havia assegurado à família os bens materiais necessários para um digno sustento. Nessa ótica, o marido já dava por encerrada sua tarefa conjugal e paternal: esse concerto de posturas materna e paterna devia-se, entre outras razões, à organização econômica das sociedades ocidentais, nas quais a solução do salário familiar ficava a cargo da paternidade.

Sob o ângulo dos valores atuais, reduzir a paternidade à função estritamente econômica parece ser não só um reducionismo do papel do pai, mas um reducionismo da pessoa humana. Hoje, vemos com acuidade a importância do pai na tarefa de imprescindível de formação do lar, na vivificação de seu ambiente, na dedicação aos seus filhos e filhas.

Num e noutro caso, na insubstituível missão de construção de suas identidades e de abertura de perspectiva de um futuro digno para cada um deles. No limite, o papel paterno é, sobretudo, crucial para a mãe, mormente sob a dimensão relacional. Podemos afirmar que a família funciona com base num vínculo relacional tripartite, donde intervêm sempre três lados, fato que, na atualidade, emerge com força cada vez maior nos estudos filosóficos e psicológicos da família.

Assim, a paternidade não pode descobrir todos os aspectos de sua missão por si mesma, em razão daquele vínculo citado: a paternidade desvela-se a partir da maternidade e sua profundidade vai sendo explorada na exata proporção com que o vínculo relacional é cultivado pelas partes envolvidas. E, no que toca ao pai, isso passa pelo descobrimento de sua específica dimensão existencial, a dimensão paterna.

Nesse afã, o varão deve recordar-se de um princípio básico nesse vínculo relacional com a mulher: a reciprocidade. Trata-se de uma relação tipicamente esponsalícia, ainda que o grau de intimidade ou de compromisso diversifique-se em cada caso. A relação paternidade-maternidade no bojo familiar e na relação com o filho tem uma base dual – a conjugal – e com vistas à abertura geracional. Paternidade e maternidade dizem-se ambas em relação ao filho, mas referem-se também à relação dual já citada.

Neste caso, é significativo que, para o desenvolvimento harmônico da afetividade e da personalidade do filho, é necessário o aporte de sentimentos de amor da parte do pai e da mãe, mas é importante que os pais queiram-se muito. Daí brota uma sadia fecundidade e que não é um mero resultado biológico e esporádico, pois consiste num efeito permanente da relação mútua varão/mulher, fundada na reciprocidade e na complementaridade.

A reciprocidade instaura um trato entre iguais que dependem um do outro, cujas decisões são tomadas por consenso. Se a maternidade torna possível a paternidade, a missão da paternidade está, em última análise, fazer possível a maternidade. Dessa forma, não há espaço para o paternalismo, onde se decide pelo outro em virtude de uma incapacidade intrínseca, e que, em regra, rompe o equilíbrio da reciprocidade. A reciprocidade pressupõe uma fundamental igualdade que leva cada um estar ao serviço do outro, a partir da qual exsurge o exercício da paternidade.

Delimitados os marcos da relação esponsal, no plano familiar, a paternidade deve se fazer atuante e, não raro, com a ajuda da mulher, porque ela leva o maior peso de ser pais em comum. Uma espécie de dívida que o marido deve quitar ao longo da relação temporal entre ambos.  Dessa maneira (JOÃO PAULO II, 1998:18),

“a maternidade da mulher constitui uma parte especial de ser pais em comum, assim como a parte mais qualificada. Ainda que o fato de ser pais pertença aos dois, trata-se de uma realidade mais arraigada na mulher, especialmente no período pré-natal. A mulher é quem paga diretamente a conta deste comum engendrar, a ponto de absorver as energias de seu corpo e de sua alma. Por conseguinte, é necessário que o varão seja plenamente consciente de que neste ser pais em comum, ele contrai uma dívida especial com a mulher. Nenhum programa de igualdade de direitos do varão e da mulher é válido se não tem em conta esse dado de um modo totalmente essencial”.

A reciprocidade no lar deve conduzir o varão a compartilhar as cargas que supõe o cuidado com o lar e com os filhos pequenos, sobretudo se a mulher suporta uma dupla jornada laboral, formada pelo trabalho profissional e pelas tarefas domésticas. E, outrossim, ajudá-la indiretamente em seu trabalho profissional. Sabemos que as legislações trabalhistas e sociais de muitos países atuam em detrimento da maternidade, principalmente nos primeiros anos de vida dos filhos.

Nesse quadro, o varão pode assumir encargos que sejam domesticamente fungíveis e mesmo outros infungíveis, por motivos temporariamente profissionais dela, como uma viagem de negócios ou para um congresso internacional ou um curso intensivo de altos estudos. Com efeito, nota-se que o papel paterno na órbita familiar é bem mais rico e interessante do que o de mero responsável pelo aporte de recursos econômicos ou o de protagonista de papéis típicos do pai ausente, já descritos e criticados nas linhas anteriores.

Entretanto, o exercício da paternidade não se reduz à esfera familiar. O varão deve estar “à serviço” da maternidade também no âmbito em que atua profissionalmente, reino das dimensões da eficácia utilitarista, da competência instrumental e da concorrência muitas vezes desleal, por meio de uma legislação trabalhista e social que crie as condições necessárias para tanto. Explica-se. Se esse arcabouço legal favorece o gozo da maternidade de uma forma plena, desde a gestação até os primeiros anos de vida e por meio criteriosas licenças remuneradas ou instrumentos similares, evidente que a carga maior recairá sobre a porção masculina dos trabalhadores e, assim, essa faixa estará à serviço daquela dimensão familiar.

Contudo, por outro lado, se o varão está mais inclinado ao domínio das coisas, à técnica e à produtividade, ao se colocar à serviço da maternidade, ele estará mais aberto ao outro, à cooperação e à afetividade. A cosmovisão que propomos acarretará uma consequência prática, ainda que pareça, num primeiro momento, impossível: a reestruturação do mundo do trabalho a fim de que a relação entre labor profissional e família seja compatível não só para a mulher, mas também para o varão em sua pessoa, porque, atualmente, em que pesem os esforços políticos para o melhoramento dessa relação, o trabalho parece organizado como se a família não existisse.

A reestruturação que propomos passa por uma reforma profunda nas estruturas econômicas, políticas e sociais. Para que o trabalho esteja em função da família, não é possível, ao que parece, um desenho simples e linear do mundo do trabalho. É necessária uma análise dos casos concretos, sem cair em generalizações, a fim de se dar a cada situação aquilo de que se necessita: algumas vezes, haverá revés econômico para os agentes envolvidos, com licenças não remuneradas, que podem ser compensadas com auxílios estatais; outras vezes, será necessária a contratação temporária de outros trabalhadores ou a perda de eficácia laborativa, quando a substituição for de pessoas experientes por outras jejunas no ofício.

A dimensão da paternidade ad extra familiar está em, precisamente, superar todos estes inconvenientes para que, no âmbito em que se trabalha, outras mulheres possam fazer compatível trabalho e família. A paternidade, assim, estará à serviço da maternidade precisamente fazendo-a possível. Esse esforço que, indubitavelmente, é uma fonte de sacrifícios, num terreno caracterizado pelos influxos do poder e do dinheiro, mas, a longo prazo, abriremos as perspectivas para uma sociedade mais humana.

Significa que devemos refletir com criatividade e realismo. Nem todas as pessoas têm a mesma capacidade ou o mesmo empenho: ainda que seja mais cômodo para uma empresa adotar um padrão de trabalhador jovem, forte e solteiro e pedir para ele trabalhar de sol a sol sob incentivo de mais dinheiro e ascensão profissional, pode-se pensar numa maior flexibilidade desse padrão, como meia jornada de trabalho, jornada consecutiva com descanso, day off, jornada semanal reduzida, home office, entre outras modalidades já presentes entre nós.

Facilitar a aportação da maternidade na sociedade não só é um ato de justiça social, mas também uma necessidade. Boa parte dos graves problemas vividos pelas sociedades contemporâneas demandará uma resposta tomada a partir de uma maior presença social da mulher, porque ela, ao contrário do homem, está mais apta a manifestar as contradições de uma sociedade organizada sobre puros critérios de eficácia e produtividade e a indicar os caminhos para uma abordagem humana dos sistemas sociais.

O peso da maternidade não pode recair exclusivamente sobre a mulher e a família. Não basta tampouco que o varão exerça a paternidade ad intra de sua família. Facilitar os canais da maternidade dentro e fora do lar requer muitos câmbios sociais: flexibilidade organizacional, projeção dos recursos humanos e das matrizes de responsabilidade, ao longo do ciclo vital, de programas, métodos e projetos em função da disponibilidade real dos recursos como varões, mulheres, solteiros, casados, pais e mães, sãos e enfermos. É uma conta que não será só assumida pela iniciativa privada, mas também pela subsidiariedade estatal.

 

Considerações finais

Na atualidade, assistimos ao debate teórico sobre a fragmentação da família. Não é propriamente uma novidade, porque este tema tem estado presente em todas as épocas desde o início de nossa era. Sem embargo, o quadro parece hoje mais crucial e dramático, pois as bases que deveriam ser suas funções insubstituíveis, como a educação dos filhos e a reciprocidade entre adultos unidos por vínculos de amor, parecem corroer-se, ainda que, em muitas dimensões, a família pareça regenerar-se a partir da descoberta da dinâmica relacional, por meio dos eixos de estruturação sexual e de pertença geracional.

A par do debate teórico, empiricamente, o universo de famílias desestabilizadas cresce a cada dia em nossa realidade social pelos mais diversos fatores. Mas um deles exerce uma certa preponderância sobre os demais e diz respeito à ausência do pai, no sentido assinalado na introdução deste trabalho. Esse estado crescente de negação da função paternal produz consequências que põem em risco toda a sociedade.

Caso a família não possa mais gozar de estabilidade a fim de existir como uma microssociedade em que se vive a experiência da paternidade – pelos filhos e pelas filhas, cada qual com as especificidades que já tratamos –, ela  corre o risco de se tornar um ambiente indiferenciado com parceiros adultos de papéis mutáveis ou desequilibrados, incapazes de transmitir uma representação das funções paterna e materna sob os influxos da reciprocidade e da complementariedade, os quais devem tomar assento no âmago da relação esponsal que une o marido à sua mulher. E em prejuízo da relação do casal para com a prole.

Uma fecunda relação entre maternidade e paternidade é um desafio para os protagonistas desses papéis. A paternidade não pode mais ser prejudicada pela síndrome do pai ausente e, no que concerne ao seu vínculo com a maternidade, não pode mais insistir na ideia de que esta dimensão é um problema afeto à mulher. Organizar uma sociedade, onde possam bem conviver ambos os papéis, demanda a tomada de consciência, pelo homem, de que essa decisão deve feita em conjunto com a mulher, a fim de assumir sua responsabilidade na promoção social da maternidade.

Uma sociedade que a mulher não tem espaço – mãe e trabalhadora – está mal desenhada. Ao pai, além de solucionar a questão da paternidade ad intra família, deve promovê-la ad extra família, por meio de medidas políticas, econômicas e sociais que valorizem as dimensões sociais da maternidade. Assim, por meio da revalorização plena da maternidade, a dimensão simbólica da paternidade será resgatada, superando-se a síndrome do pai ausente, tanto na esfera privada quanto na pública, e a família voltará a se constituir num projeto pleno de expectativas, a contemplar tanto os destinos do indivíduo como o de toda uma comunidade.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANATRELLA, Tony. Famílias fragmentadas. Rio de Janeiro: Revista Communio, Vol. XXVIIII, nº4, edição 104, 2009.

CASTILLA DE CORTÁZAR, Blanca. La Complementariedad varón mujer. Nuevas hipótesis. Madrid: Revista del Instituto de Ciencias para la Familia, Rialp, 2005.

DONATI, Pierpaolo. Manual de sociología de la família. Pamplona: EUNSA, 2003.

ELSHTAIN, Jean Bethke. Public man, private woman. Women in social and political thought. New Jersey: Princeton University Press, 1993.

FAMÍLIA, Pontifício Conselho para. Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Brasília: CNBB, 2007.

FERNANDES, André Gonçalves. Tapetão, Ideologia e Totalitarismo. Disponível em: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2015/06/colunistas/andre_fernandes/292399-tapetao-ideologia-e-totalitarismo.html. Acesso em 03.07.15.

HABERMAS, Jürgen. Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des Kommunikativen Handelns. München: Hueber Verlag, 2011.

JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Mulieris dignitatem. São Paulo: Vozes, 1998.

 

NOTAS

[1] A educação, em geral, e a vida familiar, mais particularmente (ANATRELLA, 2009:977) determinam com bastante clareza o comportamento futuro dos indivíduos. Portanto, não é de surpreender que o psicanalista ouça amiúde os pacientes lhe falarem das relações familiares. Evocam, sobretudo, a experiência subjetiva do pai e de mãe que tiveram, assim como a de irmãos e irmãs: todas elas personalidades que moldam os indivíduos. Para uma criança, a vida familiar é o fundamento da realidade e o lugar donde brotará a maneira pela qual ela estabelecerá, mais tarde, os vínculos sociais. Quando um indivíduo experimenta dificuldades para viver é necessário, então, retornar a esse momento fundacional.

[2] A colonização (Kolonialisierung) é um fenômeno típico da modernidade e que (HABERMAS, 2011:380), na medida em que se fortalece, passa a impor sua própria lógica e suas regras do jogo, a saber, o dinheiro e o poder, a todo o corpo social, mediante mecanismos de racionalidade instrumental (custo/benefício).

[3] A sociedade (BLANKENHORN, 1995:03) em que vivemos padece de um grande déficit de paternidade, fruto de uma equivocada e desiquilibrada interação entre trabalho, família e desenvolvimento social.

[4] A Sociologia mostra que (DONATI, 2003:15) a crise que afetou a família no mundo moderno tem, como efeito, a emergência de novos tipos familiares, muitos carentes da figura paterna, e, portanto, isso gera novas reflexões sobre a família. (…) a família tem sido objeto de uma nova e ampla reflexão teórica.

[5] A respeito da dita teoria, escrevemos (FERNANDES, 2015:2), a propósito dos Planos Municipais de Educação, que “segundo o MEC, a ‘teoria de gênero’ seria uma forma bem concreta de tutela das minorias e sua adoção, como proposta pedagógica, seria um avanço civilizacional em respeito aos direitos humanos. Contudo, a ‘teoria de gênero’ é tão arbitrária quanto a chicana que procura favorecê-la. A ‘teoria de gênero’ defende a total irrelevância do dado biológico, com seus componentes fisiológicos, psíquicos e psicossomáticos, na constituição da identidade sexual do indivíduo. Ela simplesmente elimina, sem qualquer critério científico sustentável, esse dado como premissa epistemológica no estudo da sexualidade humana. Nesse sentido, não existiria um gênero só (humano), fundado em dois sexos (feminino e masculino). Agora, seriam dois sexos, determinados naturalmente (masculino e feminino), com uma infinidade de gênero, entendido como os papéis sexuais exercidos pelos indivíduos na sociedade no curso da história (heterossexual, homossexual, bissexual, transsexual e outros).  O gênero do indivíduo seria uma elaboração estritamente pessoal e cambiável ao longo de sua existência, toda vez que ele ˜descobrisse-se” pertencente a esse ou àquele papel sexual. Então, como efeito, o dado biológico seria uma dimensão aprisionante, da qual o indivíduo deveria libertar-se histórica e culturalmente em prol de sua emancipação sexual.  Ao ignorar, solenemente, o dado biológico e, somado a isso, transformado o CNE numa espécie de um tapetão para chamar de seu, a aludida teoria começa a deixar a cair a máscara pedagógica para mostrar sua faceta ideológica, porque, além de carecer de cientificidade, ainda atua em favor do proselitismo de uma concepção única da sexualidade, tomada a partir das premissas do movimento feminista de gênero. Percebemos claramente que, se o combate à toda forma de injusta discriminação impõe-se em nossa realidade social, por outro lado, não é por intermédio da instituição governamental de um único modo de pensar, ver ou sentir à sociedade que isso será superado. Essa postura tem o nítido aroma da intolerância, tal como tudo que namora com o totalitarismo político: as notações desse aroma são a mordaça ao pensamento divergente, a mobilização do patrulhamento inquisitório e a ridicularização do adversário na arena dialógica. No meio desse cenário composto por tapetão, ideologia e pendor totalitário, notamos que seus artífices são incapazes de lidar com nossa rica diversidade democrática, bem avessa à canga da prosápia que sustentam, porque um verdadeiro e próprio democrata deveria apenas pensar que posicionamentos opostos nada mais são que outros modos de pensar de outros cidadãos, os quais têm tantos direitos quanto ele”.