Justiça no divã


Não é novidade para nenhum cidadão que o Poder Judiciário vem sendo alvo de constantes novidades e ajustes pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sem dúvida, sob a perspectiva institucional e estrutural, os avanços têm sido inegáveis, com algumas ressalvas aqui ou ali, sobretudo quando o CNJ insiste, muitas vezes, em tratar os tribunais brasileiros sob a perspectiva de um Estado unitário, quando o Brasil continua trilhando, republicanamente, pelas sendas federativas. Enfim, esse embate intestino não interessa muito ao leitor. Mas outro.

Ao leitor, o destinatário de nosso serviço público, interessa muito mais um outro Poder Judiciário: aquele das práticas judiciárias, porque diretamente envolvidas com o cotidiano do cidadão e que respeitam ao trabalho diário do magistrado de assinalar e distribuir a justiça no caso concreto.

Entretanto, convém lembrar o leitor que vivemos numa sociedade de massas e, por isso, tais práticas judiciárias vêm sendo conduzidas muito mais sob a perspectiva da eficácia do que da realização do justo concreto. É a visão, cada vez mais hegemônica, que está por trás da práxis dos principais atos administrativos, dos tribunais e do CNJ, que enfocam o “modo de produção” de decisões pelo juízes.

As práticas culturais e sociais contemporâneas, desde há muito, têm sido colonizadas pelo dado técnico, neutro, padronizado e informático. Lembra muito uma linha de produção fordista-taylorista. Ou, na versão moderna, o modelo toyotista. Não tenho a menor dúvida que esse movimento colonizador é a causa daquela perspectiva de endeusamento da eficácia que conduz os respeitáveis órgãos já citados, até porque as práticas de distribuição da justiça são, no fundo, práticas sociais.

Como representante do baixo clero judiciário, tenho uma crescente sensação de que a ritualização do “modo de produção” das decisões já provoca uma estéril postura reflexiva do magistrado no ato de julgar. Em outras palavras, o efeito prático dessa ritualização é simples: mais “juízes operadores”, expressão que diz muito, e menos “juízes prudentes”, na acepção clássica da prudência judicial.

Isso já pode ser notado em muitas expressões do jargão forense. Numa audiência, um advogado disse que o mais importante era a rapidez dos tribunais na solução dos litígios. De fato, a lentidão judiciária gera impunidade, injustiça e fomenta um clima social de autotutela, mas a dita rapidez tem um lado oculto: o maior risco de erro judiciário, o que também é uma injustiça, e isso provoca o desprestígio da instituição.

Outra expressão que vai se enraizando no inconsciente coletivo judiciário é a chamada “decisão técnica”. Nada mais positivista que isso, porque o positivismo responsabilizou-se pela transformação da justiça em técnica, por meio de uma racionalidade dogmática que foi alimentando o processo de definição do justo pelo legalmente posto.

Contudo, o pior efeito dessa ritualização do “modo de produção” é a “prática judiciária” da prolação de sentenças em série e da votação de recursos em bloco, pois, aos poucos, tais práticas vão despersonalizando a figura do juiz e, indiretamente, desumanizando o poder que zela pela distribuição da justiça.

Ao cabo, a impressão que fica é a de que, para o CNJ e para os tribunais, o importante mesmo são os números dos itens e subitens das planilhas mensais. A estatística é erigida à condição de racionalidade instrumental e “torna-se o método de cálculo do rendimento profissional e do merecimento promocional”, na feliz definição de um amigo togado.

Rapidez, tecnicidade e estatística: eis os deuses idolatrados pelos tribunais e pelo CNJ. Mas são deuses de pés de barro, porque a “justiça” dessa racionalidade desumanizante é a “justiça” que se fecha à reflexão, à prudência e à tomada de decisão inserida na articulação do real concreto, fragilidades que, com o tempo, serão percebidas pela sociedade em que vivemos. E, então, aqueles deuses cairão pela ação do próprio peso, porque uma sociedade repleta de “juízes operadores” é uma sociedade vazia de uma concreta justiça. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 28/11/2018, Página A-2, Opinião.