A via Personalista (em tempos de polarização)

Opinião Pública | 24/07/2019 | | IFE CAMPINAS

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Conta-se que, após abandonar toda uma existência de conforto e luxo, o príncipe Siddharta Gautama, mais conhecido como Buda, tentou trilhar o caminho em busca da Iluminação por meio de uma vida ascética extremada. Após ter vivido por um tempo apenas à base de frutas silvestres e raízes, Gautama tinha o corpo reduzido à pele e osso, com as costelas já expostas. Certo dia, às margens do rio Nairanjana, ele ouviu a voz de uma garota entoando uma tradicional canção indiana sobre um instrumento musical de cordas, semelhante ao alaúde. A canção dizia que as cordas do instrumento arrebentam quando esticadas demais e que, quando frouxas, o som produzido é desafinado. Neste momento, Gautama descobriu o Caminho do Meio, a via que afasta dos extremismos.

Uma segunda história, apócrifa, nos informa que nos últimos anos do século XVI, o índio Peri, da tribo dos Goitacás, fez uma descoberta semelhante ao observar seu pai durante a confecção de um arco. O curumim notou que seu pai tinha preferência por empregar o pau-brasil e descobriu que havia alguns truques que garantiam a eficácia no lançamento das flechas. Não se pode fazer um arco de madeira verde, pois o arco enverga em demasia, o que diminui a sua força. Também não se pode utilizar a madeira muito seca, pois o arco pode quebrar na primeira puxada. É necessário achar um equilíbrio na umidade da madeira. Nada de extremos.

Tanto a experiência do indiano Buda, quanto a do índio Peri, servem como metáfora para constatarmos que nenhuma polarização em extremos é benéfica, seja para o indivíduo, seja para a sociedade. Nos cenários de polarização política, reforça-se a percepção de Martin Buber de que a vida e o pensamento se encontram diante da mesma problemática. Por um lado, a vida pode crer facilmente que tem que escolher entre individualismo e coletivismo. Por outro, o pensamento pode opinar que tem que escolher entre uma antropologia individualista e uma sociologia coletivista. Ambas são falsas disjunções, pois há uma terceira via excluída.

Por brevidade, podemos dizer que o “capitalismo selvagem” é um notório exemplo da consequência de um ponto de vista individualista. O “pensamento de colmeia”, que defende que a verdadeira realidade do indivíduo é o grupo e que só nele tem sentido, por sua vez, representa bem uma concepção coletivista. Como no caso do arco, quando levadas ao extremo, tais perspectivas podem criar uma maléfica espécie de coincidentia oppositorum, a coincidência dos opostos, ou uma tensão que pode fazer com que a sociedade quebre.

A Filosofia Personalista pode nos orientar na direção de uma terceira opção, uma via média. Utilizando pressupostos próprios ao Personalismo, pode-se reinterpretar a defesa dos direitos do sujeito, apresentada pelo individualismo, bem como a necessidade da construção de um projeto comum, defendida pelo coletivismo. Desse modo, em uma visão personalista, pode-se defender a primazia dos direitos da pessoa frente à sociedade, equilibrada pelo correlativo dever de servir a essa mesma sociedade. O ponto de equilíbrio para o cumprimento de tal visão, que pode exigir sacrifícios muito graves, deve ser o conceito de dignidade humana. Assim, o personalista é ao mesmo tempo diferente do individualista burguês e do fanático coletivista. Afasta-se tanto do “cada um por si” individualista, quanto do “nós contra eles” coletivista.

Chamam-se pessoas os seres dotados de razão. Os seres irracionais têm um valor meramente relativo, como meios. Já os seres racionais são fins em si mesmos. Estes têm uma dignidade. As pessoas são únicas, irrepetíveis e insubstituíveis. Em sua versão negativa, a norma personalista coincide com o imperativo kantiano: “Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio”. Por outro lado, em sua versão positiva, a norma ensina: “A pessoa é um bem com respeito ao qual só o amor constitui a atitude apta e válida”.

Para perceber a distinção entre valor e dignidade, retornamos nosso olhar à Índia, para citar um exemplo de vivência personalista prática: o de Madre Teresa de Calcutá. Ela vivia esse amor para com as pessoas, em decorrência de seu Amor por uma Pessoa. Certa vez, ao vê-la limpando a ferida infestada de vermes de um homem na rua, um repórter afirmou: “Eu não faria isso nem por um milhão de dólares!” Com um sorriso irônico no rosto ela respondeu: “Eu também não.”

Fábio Maia Bertato é Coordenador Associado do CLE – Unicamp e membro do IFE Campinas (fmbertato@cle.unicamp.br)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 24 de Julho de 2019, página A2 – Opinião.