Desde sua fundação, Campinas sempre contou com os braços fortes de centenas de escravos na sua construção; situação que repetia-se em sincronia orquestral pelo Brasil todo. Aqui havia um acento de crueldade no trato aos cativos apontado por diversos historiadores, tanto que ameaçá-los de venda a um senhor campineiro bastava para reprimir qualquer indisciplina.
Do mesmo modo que havia escravocratas, numa proporção ainda maior havia muita gente simples que não admitia os horrores da escravidão, embora também eles não tivessem uma sorte tão melhor. Junto dessa gente simples, Campinas produziu artistas, padres, médicos, professores e advogados que envidaram seus esforços pela abolição e que, justamente por isso, se esforçavam para dar a conhecer situações de sofrimento que desnudavam o grave problema da escravidão, chamando a população a um olhar literalmente “compassivo” em relação ao sofrimento dessas pessoas. Entre as várias histórias de dores, sofrimentos e mais raramente de algumas alegrias destes escravos anônimos que ajudaram a edificar a cidade, merece destaque uma que comoveu a população que viveu na segunda metade do século XIX.
Por volta de 1870, um escravo fugido, já alquebrado pelos anos de trabalho e cansado de perambular errante escondendo-se cada dia num lugar diferente, resolveu retornar a seu dono em Campinas e, para isso lançou mão de um recurso conhecido, forjado por um costume antigo nos domínios portugueses e que ficou como herança no Brasil: em caso de fuga, havendo desejo de retorno, a fim de não ser constrangido a punições físicas e morais, um escravo poderia buscar um “padrinho”. Este deveria ser livre e influente. Quanto maior sua influência local, tanto melhor.
Cansado, o pobre homem bateu à porta de um dos barões da Princesa D’Oeste, explicou-lhe sua situação, suplicou uma recomendação e indicou quem era seu dono. Num sorriso indissimuladamente sarcástico, o fazendeiro garantiu-lhe que com sua recomendação seria readmitido por seu dono sem mais problemas.
Desconfiado das intenções de seu fiador, o pobre escravo analfabeto titubeava entre voltar a seu dono e viver errante. Com passo recalcitrante adentrou a cidade que acabava na altura da atual Avenida da Abolição, próximo ao cemitério. Por ser o último bairro de Campinas era chamado de “Fundão”.
Sem suspeitar que portava nas mãos sua miserável sentença que ainda lhe reservava outros amargos sofrimentos, topou no caminho com um menino que voltava da escola carregado de seus livros e perguntou-lhe se sabia ler. Com o aceno positivo de seu pequeno interlocutor que inadvertidamente aceitou o pedido do escravo de ler o bilhete, sem o saber acabou se constituindo no terrível juiz que comunicaria a trágica sentença: o bilhete era uma troça. O fazendeiro não o recomendava, antes instava seu colega barão a dobrar a surra que daria em seu escravo. Traído, desgostoso, sem saber para onde ir e o que fazer sentou-se debaixo de uma goiabeira que existia ali e pouco tempo depois atou uma corda aos galhos mais robustos da árvore enforcando- se ali mesmo. Quando encontraram-no já sem vida, perto de seu corpo estava o dito bilhete. Ele não teve forças para acreditar que a bondade humana ainda era possível, pois não a encontrou quando a buscou. Os campineiros o sepultaram ali mesmo, abaixo da goiabeira e na frente de seu túmulo edificaram a Capela da Santa Cruz do Fundão. Em 1930 a antiga capela deu lugar a uma nova e passou a ter como orago Nossa Senhora da Penha, situa-se no local original em frente ao antigo Sanatório Santa Isabel na Avenida da Abolição, como um testemunho perene daquilo que Campinas foi no passado e do dever que temos de edificar um futuro capaz de fazer memória e se deixar transformar e conduzir pelos que nos precederam tendo como princípio a caridade e a compaixão.
Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 14 de Agosto de 2019, página A2 – Opinião.