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Numa sala de espera

Opinião Pública | 21/08/2019 | | IFE CAMPINAS

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Estou aqui numa sala de espera. À minha direita, há pouco e a certa distância, havia uma moça com uma criança de uns dois anos, com seu irmão, sobrinho ou filho, ou não sei; à esquerda, em outra série de assentos, um casal de namorados; entre outros mais aos dois cantos. À minha frente, uma TV na Rede Globo passando uma velha novela chamada “Por amor”. Creio que eu era criança quando essa novela foi transmitida pela primeira vez.

Inevitavelmente, e também um pouco voluntariamente, assisto vez ou outra a novela que passa na tela neste momento. Ontem, por uns 15 minutos, assisti à novela “Bom sucesso” e daqui a pouco voltaremos a ela. Sei que tratei de novelas aqui não faz muito tempo, mas hoje peço ao leitor para ir por outro caminho abordando mais ou menos o mesmo assunto, porém com o intuito de captar nuances antes ignoradas. Ao mesmo tempo, isso pode ter utilidade para aqueles que não leram o artigo escrito no mês de abril.

Não pude deixar de notar as semelhanças entre uma e outra telenovela. O ponto em comum: prender a atenção através da tensão. Mesmo nesta novela mais velha eu vi, da primeira à última cena, adultério velado (ou algo semelhante), mentira, tensão, nervosismo, conflito e corrupção – o pai da moça, que tem dinheiro e poder, foi à delegacia tentar soltar seu namorado que fora preso em flagrante.

Enquanto escrevo aqui procuro acompanhar a tela e parece que nada muda. Pelo menos os itens elencados não foram retirados ou redimidos. A novela de ontem, “Bom sucesso”, apresentava mais ou menos os mesmos elementos. No entanto a coisa era pior: essas ou outras coisas similares apareciam de modo intensificado, de modo que quase deixei de assistir por não suportar. Eram conflitos, tensão e loucuras. Eu sei que na vida real coisas assim existem. Mas jamais na proporção de tempo com que tais novelas as apresentam. Na vida real, considerando 100% do tempo, as coisas más não preenchem esses 100% do tempo, a totalidade. Pelo contrário, o bem sempre tem prevalência. Além disso, como tu bem sabes, caro leitor, a vida não possui a enorme artificialidade dessas séries.

Como a espera foi grande, quando volto a escrever para uma segunda e última espera – eu estou no oftalmologista para trocar de óculos –, já temos outra novela na tela, depois de ter passado “Malhação – Todas as formas de amor”, a qual me pareceu ser um protótipo das malevolências e inverdades que posteriormente aparecerão nas telenovelas noturnas. Mas eu dizia: na tela já temos outra novela e a primeira cena que vejo é de corrupção. Uma mulher pede para um homem forjar um laudo a fim de mostrar que sua gravidez é mais recente do que realmente é, de modo que ela possa enganar o homem com o qual se deitou e atribuir o filho a ele.

Passadas algumas semanas, volto, neste momento, para preparar este artigo para publicação. Alguns podem negar que não são influenciados por tais programações, mas, como argumentei no artigo de 24 de abril deste ano, há dados que contestam tal demanda, além dos próprios fatos que conhecemos desmentirem isso. Quando somos jovens achamos que temos personalidade e que não somos influenciáveis. Mas – pobres de nós! – quando acordamos para a maturidade percebemos que fomos influenciados por amigos e pelos mais diferentes meios, embora nossas escolhas e decisões possuam prevalência. Dito de outro modo: não se quer dizer que receber certa influência seja algo completamente passivo. Diferentemente, isso não se sucede desta forma porque temos liberdade e responsabilidade, isto é, escolhemos ou não aceitar aquilo que temos para receber e, se aceitamos ou não, somos responsáveis pelo sim ou pelo não.

Poderia escolher aqui ficar apenas na crítica de referida rede televisiva, como no passado. Mas há este outro lado que acabo de salientar e que é importante: o lado da responsabilidade do espectador que aceita receber esse conteúdo nocivo das telenovelas, assim como de outros meios. Será que não seria saudável fazer um exame sobre aquilo que aceitamos assistir, ler e etc.? Será que aquilo que estamos consumindo contribui para nosso desenvolvimento?

João Toniolo é doutorando em Filosofia e membro do IFE Campinas. E-mail: joaotoniolo@ife.org.br.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 21 de Agosto de 2019, Página A2 – Opinião.

Campinas de ontem

Opinião Pública | 14/08/2019 | | IFE CAMPINAS

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Desde sua fundação, Campinas sempre contou com os braços fortes de centenas de escravos na sua construção; situação que repetia-se em sincronia orquestral pelo Brasil todo. Aqui havia um acento de crueldade no trato aos cativos apontado por diversos historiadores, tanto que ameaçá-los de venda a um senhor campineiro bastava para reprimir qualquer indisciplina.

Do mesmo modo que havia escravocratas, numa proporção ainda maior havia muita gente simples que não admitia os horrores da escravidão, embora também eles não tivessem uma sorte tão melhor. Junto dessa gente simples, Campinas produziu artistas, padres, médicos, professores e advogados que envidaram seus esforços pela abolição e que, justamente por isso, se esforçavam para dar a conhecer situações de sofrimento que desnudavam o grave problema da escravidão, chamando a população a um olhar literalmente “compassivo” em relação ao sofrimento dessas pessoas. Entre as várias histórias de dores, sofrimentos e mais raramente de algumas alegrias destes escravos anônimos que ajudaram a edificar a cidade, merece destaque uma que comoveu a população que viveu na segunda metade do século XIX.

Por volta de 1870, um escravo fugido, já alquebrado pelos anos de trabalho e cansado de perambular errante escondendo-se cada dia num lugar diferente, resolveu retornar a seu dono em Campinas e, para isso lançou mão de um recurso conhecido, forjado por um costume antigo nos domínios portugueses e que ficou como herança no Brasil: em caso de fuga, havendo desejo de retorno, a fim de não ser constrangido a punições físicas e morais, um escravo poderia buscar um “padrinho”. Este deveria ser livre e influente. Quanto maior sua influência local, tanto melhor.

Cansado, o pobre homem bateu à porta de um dos barões da Princesa D’Oeste, explicou-lhe sua situação, suplicou uma recomendação e indicou quem era seu dono. Num sorriso indissimuladamente sarcástico, o fazendeiro garantiu-lhe que com sua recomendação seria readmitido por seu dono sem mais problemas.

Desconfiado das intenções de seu fiador, o pobre escravo analfabeto titubeava entre voltar a seu dono e viver errante. Com passo recalcitrante adentrou a cidade que acabava na altura da atual Avenida da Abolição, próximo ao cemitério. Por ser o último bairro de Campinas era chamado de “Fundão”.

Sem suspeitar que portava nas mãos sua miserável sentença que ainda lhe reservava outros amargos sofrimentos, topou no caminho com um menino que voltava da escola carregado de seus livros e perguntou-lhe se sabia ler. Com o aceno positivo de seu pequeno interlocutor que inadvertidamente aceitou o pedido do escravo de ler o bilhete, sem o saber acabou se constituindo no terrível juiz que comunicaria a trágica sentença: o bilhete era uma troça. O fazendeiro não o recomendava, antes instava seu colega barão a dobrar a surra que daria em seu escravo. Traído, desgostoso, sem saber para onde ir e o que fazer sentou-se debaixo de uma goiabeira que existia ali e pouco tempo depois atou uma corda aos galhos mais robustos da árvore enforcando- se ali mesmo. Quando encontraram-no já sem vida, perto de seu corpo estava o dito bilhete. Ele não teve forças para acreditar que a bondade humana ainda era possível, pois não a encontrou quando a buscou. Os campineiros o sepultaram ali mesmo, abaixo da goiabeira e na frente de seu túmulo edificaram a Capela da Santa Cruz do Fundão. Em 1930 a antiga capela deu lugar a uma nova e passou a ter como orago Nossa Senhora da Penha, situa-se no local original em frente ao antigo Sanatório Santa Isabel na Avenida da Abolição, como um testemunho perene daquilo que Campinas foi no passado e do dever que temos de edificar um futuro capaz de fazer memória e se deixar transformar e conduzir pelos que nos precederam tendo como princípio a caridade e a compaixão.

Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 14 de Agosto de 2019, página A2 – Opinião.

Coragem espartana

Opinião Pública | 07/08/2019 | | IFE CAMPINAS

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“Em 480 a.C., as forças do império persa, comandadas pelo rei Xerxes, com cerca de dois milhões de homens, transpuseram o Helesponto para invadir e dominar a Grécia. Em uma ação desesperada, quase suicida, uma tropa seleta de trezentos espartanos foi despachada para o desfiladeiro de Termópilas, ao norte da Grécia, onde as estreitas fronteiras rochosas acabariam por neutralizar a avassaladora superioridade dos persas. Trezentos espartanos e seus aliados conseguiram conter, durante sete dias, dois milhões de homens. Trezentos espartanos e a força de um ideal resistiram bravamente, até que suas armas fossem destroçadas e passassem a lutar, segundo o historiador Heródoto, ‘com mãos vazias e dentes’. Trezentos homens corajosos foram, enfim, dominados e massacrados”.

Perdi a contagem das vezes que li e reli, a ponto de decorar cada letra, esse trecho extraído da orelha do livro “Portões de fogo”, de Steven Pressfield. A obra relata, em uma mistura de ficção e história, a batalha de Termópilas, que, em minha modesta visão de historiador, consagra-se como um dos embates mais marcantes do Mundo Antigo. Mais do que um relato seco sobre um acontecimento histórico, o livro desenvolve, com rara sensibilidade de seu autor, uma narrativa envolvente sobre a sociedade espartana e a natureza da coragem humana.

Um soldado pode ser tecnicamente habilidoso, mas se lhe faltar destemor, fraquejará, e até mesmo sua destreza será inútil perante o inimigo. Com base nesta premissa, os espartanos, no relato de Steven Pressfield, exercitavam incansavelmente corpo e mente. O corpo era levado à exaustão através de treinos físicos descomunais, que iniciavam desde a tenra idade e se prolongavam até o final da vida adulta. Por sua vez, a mente era trabalhada em uma disciplina específica chamada de phobologia, a ciência do medo.

Segundo essa disciplina fobológica dos espartanos, o medo na mente deve ser combatido com o corpo. Se a carne for tomada, um circuito de medo pode ter início, alimentando a si mesmo e se tornando uma corrente incontrolável de terror. Por isso, colocando o corpo em uma situação de aphobia, destemor, a mente o acompanhará, mesmo diante de uma situação naturalmente desesperadora.

Apesar da engenhosidade da narrativa, é tanto incerto quanto impossível determinar o quanto da ficção criada por Steven Pressfield retratava a realidade da vida dos espartanos e o modo como trabalhavam o medo. Por outro lado, analisando o fato histórico, seria ingenuidade, até mesmo do ponto de vista lógico, supor que tão poucos homens conseguiram fazer frente, durante dias, a um inimigo exponencialmente superior sem estarem psicologicamente forjados para o desafio.

Os tempos mudaram e, com os anos, nossos problemas. Não é natural temer, ainda que verdade em algumas regionalidades do planeta, uma iminente invasão por outro povo. Não por isso nossas preocupações diminuíram. Hoje, o medo e o desafio se apresentam em situações mais sutis, mas não menos potencialmente aterrorizadoras, das quais não somos incentivados e ensinados a enfrentar, como a escolha de um curso, de um emprego, de um casamento, da maternidade/paternidade, de defender a verdade… Os cenários são infinitos.

É curioso, os séculos passam, mas nossa natureza não varia. É humano sentir medo e impressiona como o terror, se não lutarmos contra, pode tomar conta do corpo e desestabilizá-lo completamente. Nessas situações, pode ser útil recordar da coragem espartana, que ensina que corpo e mente devem trabalhados e forjados a não vacilarem perante o imenso desafio. Felizmente, não somos espartanos. Não marcharemos livremente a um desfiladeiro para combater um inimigo absolutamente superior até a morte literal. Mas certamente nos depararemos com situações que exigirão uma postura digna de um combatente de primeira linha: firme e destemida.

Marcos Moraes é bacharel em história pela Unicamp, advogado e membro do IFE Campinas (marcos.jimoraes@gmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 07 de Agosto de 2019, página A2 – Opinião.

Panteísmo, ateísmo e ciência

Opinião Pública | 31/07/2019 | | IFE CAMPINAS

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Em um artigo anterior (A Ciência Contemporânea e a Fé), publicado nesta mesma página 2 no dia 26/06/2019, começamos a esboçar as consequências teóricas que decorrem da recusa em admitir – em face das descobertas da ciência moderna – a existência de um Deus transcendente ao universo, livre e criador de tudo o mais. Se o surgimento do universo por si mesmo a partir do nada absoluto é uma contradição (com efeito, como aquilo que não é nada daria a si mesmo o ser? Ademais, o nada absoluto é algo contraditório, impensável), resta a possibilidade de que ele seja eterno. Examinemos as consequências disso em face dos dados atuais da ciência. As teses aqui expostas foram desenvolvidas no instigante livro Comment se pose aujourd’hui le problème de l’existence de Dieu, de Claude Tresmontant.

Em primeiro lugar, assumir hoje que o universo seja eterno sem mais não é uma possibilidade, pois o suprimento de hidrogênio nele existente é finito e a transformação deste elemento em hélio é irreversível, pelo menos em quantidades relevantes. Portanto, para sustentar de modo consistente a eternidade do universo, é necessário assumir que seu desenvolvimento é cíclico e que esses ciclos jamais tiveram começo, e que jamais terão fim.

Uma tal tese foi defendida na história do pensamento pelas antigas teosofias indianas e por alguns filósofos pré-socráticos, notadamente Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso: para eles, o próprio universo é o Ser, a Divindade, portadora de toda a sabedoria e todo o poder (o nome disso é panteísmo). É também comum a esses pensadores apresentarem-se como portadores de um saber de ordem sobrenatural, que ultrapassaria infinitamente a capacidade de compreensão dos reles mortais. A pergunta que então deixamos no ar é a seguinte: cientistas modernos sérios, com verdadeiro compromisso de compreender a realidade, estariam dispostos a assumir hoje, diante da imagem do universo descoberta por suas respectivas ciências, uma tese de ordem mística como essa?

Uma vez que o método científico, quando levado a sério, só nos permite tirar conclusões amparadas por sólidas evidências empíricas, e que estas apontam cada vez mais no sentido de que as transformações presentes no universo são de caráter irreversível, torna-se difícil sustentar essa opinião sem extrapolar as evidências disponíveis. Resta, contudo, para quem deseja se manter fiel à ciência e ao mesmo tempo fazer profissão de fé no ateísmo, o caminho escolhido pelos antigos atomistas gregos: Leucipo, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Para esses autores, o universo é composto de átomos eternos e indestrutíveis, que estariam perpetuamente em movimento e cuja combinação – que se daria ao acaso – seria a causa da existência de todos os entes complexos. Esse posicionamento implica, diante dos dados atuais da ciência, consequências que o colocam numa posição insustentável. Examinemo-las brevemente.

Do ponto de vista da organização dos corpos, o acaso é incapaz de explicar a formação de um mero aminoácido. Sobre isso, os biólogos são hoje unânimes. Se assim é, forçosamente não poderá explicar o surgimento de um organismo vivo vegetal, menos ainda o de um organismo vivo animal e, muito menos ainda, o da inteligência humana. Mas isso não é tudo: uma teoria como o atomismo deixa justamente de responder às perguntas fundamentais da filosofia (pois aqui se trata de uma investigação filosófica, visto que se debruça sobre a estrutura última da realidade): quais são as causas do movimento e do ser?

Ora, o fato é que na história do pensamento há uma solução bastante sólida para essas perguntas: a metafísica bíblica, segundo a qual o universo é criado por um Deus onipotente, inteligente e absolutamente livre. Esta crianção não se daria “por necessidade”, mas pela exclusiva bondade de Deus, que, como Ser Infinito e Onipotente, não necessita de nada além de si mesmo.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é professor e membro do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 31 de Julho de 2019, página A2 – Opinião.

A via Personalista (em tempos de polarização)

Opinião Pública | 24/07/2019 | | IFE CAMPINAS

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Conta-se que, após abandonar toda uma existência de conforto e luxo, o príncipe Siddharta Gautama, mais conhecido como Buda, tentou trilhar o caminho em busca da Iluminação por meio de uma vida ascética extremada. Após ter vivido por um tempo apenas à base de frutas silvestres e raízes, Gautama tinha o corpo reduzido à pele e osso, com as costelas já expostas. Certo dia, às margens do rio Nairanjana, ele ouviu a voz de uma garota entoando uma tradicional canção indiana sobre um instrumento musical de cordas, semelhante ao alaúde. A canção dizia que as cordas do instrumento arrebentam quando esticadas demais e que, quando frouxas, o som produzido é desafinado. Neste momento, Gautama descobriu o Caminho do Meio, a via que afasta dos extremismos.

Uma segunda história, apócrifa, nos informa que nos últimos anos do século XVI, o índio Peri, da tribo dos Goitacás, fez uma descoberta semelhante ao observar seu pai durante a confecção de um arco. O curumim notou que seu pai tinha preferência por empregar o pau-brasil e descobriu que havia alguns truques que garantiam a eficácia no lançamento das flechas. Não se pode fazer um arco de madeira verde, pois o arco enverga em demasia, o que diminui a sua força. Também não se pode utilizar a madeira muito seca, pois o arco pode quebrar na primeira puxada. É necessário achar um equilíbrio na umidade da madeira. Nada de extremos.

Tanto a experiência do indiano Buda, quanto a do índio Peri, servem como metáfora para constatarmos que nenhuma polarização em extremos é benéfica, seja para o indivíduo, seja para a sociedade. Nos cenários de polarização política, reforça-se a percepção de Martin Buber de que a vida e o pensamento se encontram diante da mesma problemática. Por um lado, a vida pode crer facilmente que tem que escolher entre individualismo e coletivismo. Por outro, o pensamento pode opinar que tem que escolher entre uma antropologia individualista e uma sociologia coletivista. Ambas são falsas disjunções, pois há uma terceira via excluída.

Por brevidade, podemos dizer que o “capitalismo selvagem” é um notório exemplo da consequência de um ponto de vista individualista. O “pensamento de colmeia”, que defende que a verdadeira realidade do indivíduo é o grupo e que só nele tem sentido, por sua vez, representa bem uma concepção coletivista. Como no caso do arco, quando levadas ao extremo, tais perspectivas podem criar uma maléfica espécie de coincidentia oppositorum, a coincidência dos opostos, ou uma tensão que pode fazer com que a sociedade quebre.

A Filosofia Personalista pode nos orientar na direção de uma terceira opção, uma via média. Utilizando pressupostos próprios ao Personalismo, pode-se reinterpretar a defesa dos direitos do sujeito, apresentada pelo individualismo, bem como a necessidade da construção de um projeto comum, defendida pelo coletivismo. Desse modo, em uma visão personalista, pode-se defender a primazia dos direitos da pessoa frente à sociedade, equilibrada pelo correlativo dever de servir a essa mesma sociedade. O ponto de equilíbrio para o cumprimento de tal visão, que pode exigir sacrifícios muito graves, deve ser o conceito de dignidade humana. Assim, o personalista é ao mesmo tempo diferente do individualista burguês e do fanático coletivista. Afasta-se tanto do “cada um por si” individualista, quanto do “nós contra eles” coletivista.

Chamam-se pessoas os seres dotados de razão. Os seres irracionais têm um valor meramente relativo, como meios. Já os seres racionais são fins em si mesmos. Estes têm uma dignidade. As pessoas são únicas, irrepetíveis e insubstituíveis. Em sua versão negativa, a norma personalista coincide com o imperativo kantiano: “Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio”. Por outro lado, em sua versão positiva, a norma ensina: “A pessoa é um bem com respeito ao qual só o amor constitui a atitude apta e válida”.

Para perceber a distinção entre valor e dignidade, retornamos nosso olhar à Índia, para citar um exemplo de vivência personalista prática: o de Madre Teresa de Calcutá. Ela vivia esse amor para com as pessoas, em decorrência de seu Amor por uma Pessoa. Certa vez, ao vê-la limpando a ferida infestada de vermes de um homem na rua, um repórter afirmou: “Eu não faria isso nem por um milhão de dólares!” Com um sorriso irônico no rosto ela respondeu: “Eu também não.”

Fábio Maia Bertato é Coordenador Associado do CLE – Unicamp e membro do IFE Campinas (fmbertato@cle.unicamp.br)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 24 de Julho de 2019, página A2 – Opinião.