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Numa sala de espera

Opinião Pública | 21/08/2019 | | IFE CAMPINAS

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Estou aqui numa sala de espera. À minha direita, há pouco e a certa distância, havia uma moça com uma criança de uns dois anos, com seu irmão, sobrinho ou filho, ou não sei; à esquerda, em outra série de assentos, um casal de namorados; entre outros mais aos dois cantos. À minha frente, uma TV na Rede Globo passando uma velha novela chamada “Por amor”. Creio que eu era criança quando essa novela foi transmitida pela primeira vez.

Inevitavelmente, e também um pouco voluntariamente, assisto vez ou outra a novela que passa na tela neste momento. Ontem, por uns 15 minutos, assisti à novela “Bom sucesso” e daqui a pouco voltaremos a ela. Sei que tratei de novelas aqui não faz muito tempo, mas hoje peço ao leitor para ir por outro caminho abordando mais ou menos o mesmo assunto, porém com o intuito de captar nuances antes ignoradas. Ao mesmo tempo, isso pode ter utilidade para aqueles que não leram o artigo escrito no mês de abril.

Não pude deixar de notar as semelhanças entre uma e outra telenovela. O ponto em comum: prender a atenção através da tensão. Mesmo nesta novela mais velha eu vi, da primeira à última cena, adultério velado (ou algo semelhante), mentira, tensão, nervosismo, conflito e corrupção – o pai da moça, que tem dinheiro e poder, foi à delegacia tentar soltar seu namorado que fora preso em flagrante.

Enquanto escrevo aqui procuro acompanhar a tela e parece que nada muda. Pelo menos os itens elencados não foram retirados ou redimidos. A novela de ontem, “Bom sucesso”, apresentava mais ou menos os mesmos elementos. No entanto a coisa era pior: essas ou outras coisas similares apareciam de modo intensificado, de modo que quase deixei de assistir por não suportar. Eram conflitos, tensão e loucuras. Eu sei que na vida real coisas assim existem. Mas jamais na proporção de tempo com que tais novelas as apresentam. Na vida real, considerando 100% do tempo, as coisas más não preenchem esses 100% do tempo, a totalidade. Pelo contrário, o bem sempre tem prevalência. Além disso, como tu bem sabes, caro leitor, a vida não possui a enorme artificialidade dessas séries.

Como a espera foi grande, quando volto a escrever para uma segunda e última espera – eu estou no oftalmologista para trocar de óculos –, já temos outra novela na tela, depois de ter passado “Malhação – Todas as formas de amor”, a qual me pareceu ser um protótipo das malevolências e inverdades que posteriormente aparecerão nas telenovelas noturnas. Mas eu dizia: na tela já temos outra novela e a primeira cena que vejo é de corrupção. Uma mulher pede para um homem forjar um laudo a fim de mostrar que sua gravidez é mais recente do que realmente é, de modo que ela possa enganar o homem com o qual se deitou e atribuir o filho a ele.

Passadas algumas semanas, volto, neste momento, para preparar este artigo para publicação. Alguns podem negar que não são influenciados por tais programações, mas, como argumentei no artigo de 24 de abril deste ano, há dados que contestam tal demanda, além dos próprios fatos que conhecemos desmentirem isso. Quando somos jovens achamos que temos personalidade e que não somos influenciáveis. Mas – pobres de nós! – quando acordamos para a maturidade percebemos que fomos influenciados por amigos e pelos mais diferentes meios, embora nossas escolhas e decisões possuam prevalência. Dito de outro modo: não se quer dizer que receber certa influência seja algo completamente passivo. Diferentemente, isso não se sucede desta forma porque temos liberdade e responsabilidade, isto é, escolhemos ou não aceitar aquilo que temos para receber e, se aceitamos ou não, somos responsáveis pelo sim ou pelo não.

Poderia escolher aqui ficar apenas na crítica de referida rede televisiva, como no passado. Mas há este outro lado que acabo de salientar e que é importante: o lado da responsabilidade do espectador que aceita receber esse conteúdo nocivo das telenovelas, assim como de outros meios. Será que não seria saudável fazer um exame sobre aquilo que aceitamos assistir, ler e etc.? Será que aquilo que estamos consumindo contribui para nosso desenvolvimento?

João Toniolo é doutorando em Filosofia e membro do IFE Campinas. E-mail: joaotoniolo@ife.org.br.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 21 de Agosto de 2019, Página A2 – Opinião.

Todos vivemos em Suzano

Opinião Pública | 20/03/2019 | | IFE CAMPINAS

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Depois da barulhenta exposição midiática que costuma acompanhar eventos como a tragédia ocorrida na escola em Suzano, temos o desafio de impedir que os fatos simplesmente se percam na banalidade do banquete de notícias que consumimos diariamente. Diante de fatos tão sombrios, que beiram ao absurdo, depois de uma fase de absoluta consternação e luto, necessitamos buscar luzes e curar as feridas, para reencontrar esperança e redenção.

Quando fatos tão contundentes atropelam o ritmo apressado das nossas ocupações cotidianas, nos forçando a contemplação dos horrores que nos amedrontam, somos colocados diante daquelas grandes questões humanas, a que cada geração é chamada novamente a responder: “quem somos?”, “para onde vamos?”, “qual o sentido da vida e da morte?”, “como ser feliz?”, “como vencer o mal?”. Sem enfrenta-las, corremos o risco de sermos esmagados pela crua irracionalidade dos fatos, nos perdendo numa indiferença fria, num desânimo apático ou, ainda pior, numa revolta impotente, cheia de ressentimento e ódio.

Este parece ser o perigo da nossa “civilização do espetáculo” (expressão do escritor peruano Mário Vargas Llosa), que nos entorpece com sua excessiva oferta de prazeres e diversões fáceis e instantâneas, nos imunizando contra toda reflexão e responsabilidade. Numa inversão do ensinamento de Sócrates, para quem “a vida não examinada não vale a pena ser vivida”, para nós, a vida não vale a pena ser pensada, mas desfrutada. Assim, consternados, somos obrigados a confessar a enorme fragilidade da nossa civilização, que ostenta toda a potência de tecnologias e abundâncias materiais que o mundo jamais viu, mas que nesta hora crucial nos deixa completamente desamparados.

No prefácio do clássico “Sabedoria dum Pobre”, escreve Elói Leclerc: “‘Nós perdemos a simplicidade’ – talvez seja esta a mais terrível das acusações pronunciadas contra o nosso tempo. Dizer isto não é necessariamente condenar o progresso da ciência e da técnica de que o nosso mundo tanto se orgulha. […] Mas é reconhecer que este progresso não se realizou sem um detrimento considerável no plano humano. […] Perdendo esta simplicidade, [o homem] perdeu também o segredo de ser feliz. Toda a ciência e todas as suas técnicas o deixam inquieto e sozinho. Sozinho diante da morte. Sozinho perante as suas infidelidades e as dos outros, no meio do grande rebanho humano. Sozinho na luta contra os demônios que o não largam”.

Este é o grito solitário que ressoa de Suzano. Pois oferecemos o “espetáculo” aos nossos jovens, mas os deixamos sozinhos diante dos grandes enigmas da vida. Nós nos empenhamos em oferecer a eles todas facilidades de bens e diversões, mas os deixamos sozinhos diante dos desafios e perigos do mundo. Nós escolhemos curtir com eles como seus amigos, a exercer as nossas duras obrigações de pais. Nós negligenciamos a educação e o cuidado que mereciam, por estarmos ocupados demais.

Agora precisamos parar e fazer silêncio para ouvir o grito que vem de Suzano, porque ele vem da nossa própria casa. Ouvir o grito desesperado das nossas crianças e jovens, tragicamente entregues à depressão, ao uso de drogas, à violência, a sexualidade desregrada, a desmotivação generalizada pela vida. Nem todos compreenderão o chamado que nos vem desta tragédia, mas aqueles ouvidos que ouvirem precisam ter a coragem de assumir os erros e se levantar contra as hordas maléficas que nos ameaçam, para reafirmar a nossa aliança vital com os verdadeiros valores da vida, do bem, do amor, da beleza, da família, do trabalho, da fé.

São estes valores simples e fundamentais, profundamente enraizados em nossa natureza, os únicos capazes de socorrer os nossos jovens. São eles que respondem àquelas perguntas fundamentais que dão sentido à vida, oferecendo um firme chão para as alegrias e consolo real para os sofrimentos. São sempre eles que se levantam como fortalezas para nos proteger de todo o mal e destruição que nos desumanizam. Por isso, precisamos cultivá-los com zelo e dedicação, como fizeram os nossos antepassados, para transmiti-los aos nossos filhos como um inestimável legado, enchendo seus corações de esperança e entusiasmo, para que sejam capazes de abraçar o desafio da vida.

João Marcelo Sarkis, analista jurídico, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.
e-mail: joaosarkis@gmail.com

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 20 de março de 2018, Página A2 – Opinião.

Dilemas do homem atual

Filosofia | 13/10/2017 | | IFE BRASIL

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A figura de Sônia, do livro Crime e Castigo, de Dostoiévski, traduz o diagnóstico do genial escritor russo para o homem contemporâneo. Sônia é uma menina de 17 anos, filha de um pai alcoólatra e irresponsável e de uma madrasta deprimida, neurótica, agressiva e tuberculosa, com vários irmãos daqui e dali. Neste contexto, Sônia é levada, pelas circunstâncias, à prostituição para o sustento da família, mas nunca deixou sua fé de lado.

Contudo, ao contrário da percepção esperada pelo leitor e, principalmente, por Raskólnikov, um estudante influenciado por teorias sobre a origem estritamente humana da moral, na tradição de Maquiavel a Nietzsche, Sônia não guarda rancores do próximo. Muito pelo contrário, sente misericórdia por todos e, inclusive, por sua clientela, composta por bêbados, doentes e velhos que possuíam seu corpo de menina em troca de uns rublos.

Sônia não brilha para nós, seres voltados para o nosso umbigo, simplesmente porque ela ama. Para ela, se alguém ama, então é livre. Segundo o autor russo, quando Sônia, em seu movimento de amor, torna-se opaca (antes, uma menina perdida que, agora, necessita reencontrar-se), estamos no reino do niilismo chique e científico, a saber, a ciência e sua cultura, incapaz de produzir valores perenes.

O homem atual é caracterizado por um relativismo cultural e histórico, fruto do próprio processo filosófico e científico contemporâneo que, por vezes, é apontado como a única solução para uma boa convivência democrática, dentro do espectro da “tolerância às diferenças”, fato gerador daquilo que foi chamado por Ratzinger como a “tolerância intolerante”, mormente quando o debate público refere-se à dimensão religiosa do homem.

No entanto, tal espectro gera, sob outro ângulo, um impasse intelectual e prático, sobretudo no campo dos inúmeros dilemas éticos que vivemos, muitos dos quais encerram verdadeiras aporias, a serem “superadas”, em muitos países, pelos trabalhos das Cortes Constitucionais que, ultimamente, ao invés de interpretar a realidade jurídica a partir das chaves de leitura existentes na realidade ontológica, têm resolvido inovar nessa mesma realidade, ao arrepio do conselho de Gadamer: “Se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto lhe diga algo antes”.

Outro dado marcante do homem atual é sua completa dependência de toda situação que realize seu desejo. Aliás, tal constatação, que poderia ser meramente empírica, deixou essa esfera e ingressou no terreno axiológico, como um dos poucos e válidos critérios de valor. Some-se o apego generalizado pelas coisas materiais, as quais precisam ser adquiridas de forma imediata, paradoxalmente, na mesma velocidade com que, depois, saturam a pessoa, um círculo vicioso gerado pela dinâmica de uma “sociedade de mercado”, em que tudo é precificado e que são criadas sempre novas “necessidades”, com o intuito de o mercado satisfazê-las depois.

Assim, a tríade relativismo-consumismo-hedonismo substituiu, num só golpe, o eixo que sustentou a humanidade por séculos, formado pela transcendência, esperança e caridade. Evidentemente que a assunção daquela tríade foi fruto do desenvolvimento do pensamento moderno, definido, primeiramente, pelo paradigma de cisão entre filosofia e teologia (Descartes) e entre filosofia e ciência (Kant). Ato contínuo, tomou corpo o paradigma de identidade, o qual identifica o absoluto com a história (Hegel) ou com a ciência (Comte), acompanhado, depois, pelo paradigma do efêmero, que nasce com a adoração do tempo, e, ao cabo, pelo paradigma do desprezo à verdade (pragmatismo), seguido de sua negação (niilismo).

Entretanto, não se trata de refutar totalmente a cultura moderna, pois pensamos que muitas de suas facetas contribuíram materialmente para o incremento do tesouro intelectual da humanidade, naquilo que de sentido transcendente subsistiu em cada esforço em direção à órbita veritativa. As lições úteis devem ser conservadas: dentre as quais, uma maior sensibilidade filosófica na captação dos erros de algumas correntes de pensamento e a depuração epistemológica de uma visão estritamente intelectualista da filosofia.

Diante desse “humanismo antropocêntrico” que assinala a humanidade atual, convém refutar o antropocentrismo e não o humanismo, porquanto é legítima uma fecunda valorização do homem, mas não a sua absolutização, que degenera no niilismo mais pedestre. Em substituição, propomos um “humanismo teocêntrico”, infenso a alguns atavismos nostálgicos da Idade Média, justificantes da historicidade dessa importante época humana e que, hoje, padecem de sentido, sem refutarmos o magnífico desenvolvimento das ciências no curso dos últimos séculos, desde que suas conquistas respeitem a dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, acreditamos que as ciências e a filosofia não mais estarão, como outrora, numa relação de instrumentalidade nos confrontos com a teologia, conferindo-se, por outro lado, o lugar certo na ordem de valores para as mais elevadas formas do conhecimento. É induvidoso que uma inteligência formada exclusivamente pelos hábitos mentais da tecnologia e das ciências dos fenômenos dificilmente vive um ambiente normal aberto para o transcendente. Não obstante, a inteligência natural, que opera no senso comum, está centrada no ser espontaneamente e, com frequência, dá muitas pistas para o conhecimento da verdade para aqueles cujo coração está aberto a tanto.

Nunca os homens tiveram tanta necessidade do clima intelectual da filosofia e da teologia, irmanadas num propósito específico: o homem. Talvez, por isso, exista algum medo nesta aventura existencial, a única senda eficaz para reintegrar a inteligência ao seu funcionamento mais natural e profundo e, logo, reconciliar suas vias com o caminho próprio da transcendência.

Nesse momento, a menina Sônia torna-se menos opaca, e podemos perceber que ela é, na literatura, a encarnação do verdadeiro humanismo que vaga, como um cego, pelas “Sibérias” do pensamento humano. Ela está sempre pronta a nos fazer ressurgir, como fez com Raskólnikov que, depois da leitura da passagem evangélica sobre a ressureição de Lázaro, inicia seu processo de regeneração existencial e moral rumo ao resgate do homem novo de São Paulo apóstolo, esse homem teocentricamente reconciliado consigo mesmo.

 

André Gonçalves Fernandes é graduado cum laude pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre e Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (DGP – Lattes) e professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação. Juiz Instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura. Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo – Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões. Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras.

 

 

 

Espírito de Dunquerque

Opinião Pública | 16/08/2017 | | IFE CAMPINAS

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“Caro pai, fui assistir ao filme que combinamos ir juntos no último mês de janeiro, quando você ainda entendia as coisas e respondia por seus atos: ‘Dunkirk’, outra película para nossa galeria de filmes da IIGM, evento que seu pai, meu avô, participou como soldado da FEB, para desespero de sua mãe, minha avó.

Você resolveu ir embora antes. Paciência. Perdeu um trabalho cinematográfico bonito, com um visual impecável, uma fotografia maravilhosa e um áudio – e mesmo a ausência dele – que nos transporta para a condição de mais um soldado nas praias e nos céus de Dunquerque.

São três narrativas – a do aviador, a do soldado e a do pai de famíila – que protagonizam e rivalizam entre si, intercaladamente, em arcos narrativos distintos e que, durante uma semana perdida de 1940, acentuam a dificuldade prudencial nas decisões cruciais e os egos inflados que costumam pagar a conta com muitos cadáveres.

Mas não é só. O filme, por retratar uma retirada geral e, como dizia Churchill, não se ganham guerras com debandadas, é o oposto de outras obras do gênero a que pudemos assistir juntos, amado pai, como ‘Band of Brothers’, ‘Pacífico’, ‘A Conquista da Honra’ e ‘O Resgate do Soldado Ryan’.

Aqui, não há uma batalha final, um enfrentamento militar clássico vencido sem munição e na ponta da baioneta ou mesmo uma virada militar estratégica, padrão ‘General Patton’, de última hora: existe um ambiente desolado e apocalíptico sem a pornografia de guerra, um cenário de vergonha na praia repleta de soldados zumbificados pela derrota e um teatro de operações militares dominado pelo inimigo alemão na terra e, sobretudo, no ar.

O desenho do enredo praticamente nos conduz para uma postura estática, a mesma que, ao longo do filme, é vivenciada pelo grisalho oficial da marinha real britânica, quando contempla as poucas vinte milhas náuticas que separam as silenciosas falésias de Dover das turbulentas areias das praias de Dunquerque.

Entretanto, estimado pai, nas entrelinhas das ações das três linhas narrativas dessa jornada nada épica existe algo bem visível por detrás do manto diáfano de toda essa humilhação existencial. Algo que lhe agradaria muito, como militar e historiador que, durante 50 anos, você foi. Nesse filme, descortina-se a epopeia do cumprimento do dever-missão por meio de uma série de valores que você nos ensinou em casa.

Valores que, hoje, são apresentados como peças de um museu de obsolescências morais do século XX. Algo que foi bom, que não existe mais e que ajuda como azeite na alma atribulada pela ausência de compromisso ético, realidade que pauta o cotidiano das sociedades do século XXI.

Certamente, isso lhe incomodaria muito. Para essas almas, esses valores poderiam ser sonhados no conforto de uma poltrona de cinema. Todavia, no frenesi dos dias que se sucedem, eles não teriam mais sentido. E nem mesmo a noção de dever-missão. Uma combinação niilista-pessimista de Sartre com Bauman.

Lembro-me daquilo que você chamava de ‘idealismo prático’: o idealismo que muda a vida e que não somente tempera o final de tarde com pipoca e refrigerante diante da telona. Não somos peças de museu. Somos reais e um filme de guerra, você dizia, é perfeito se nos leva a transformar nossa vida diária numa grande película de chamado ao sentido de dever-missão.

Quando Dunquerque ficou no horizonte continental e o último soldado inglês aportou na ilha, Churchill fez seu famoso discurso ‘We shall fight on the beaches’ e, lá no meio da exortação, ao dizer que ‘nunca nos renderemos’, o estadista que mais admiro só fez, amado pai, reforçar sua lição doméstica de dever-missão.

Como na evacuação inglesa, do caos de nossas vidas, é possível, no meio da névoa da guerra interior, na expressão de Clausewitz, fazer emergir uma derrota virada ao avesso, pelas sendas do espírito que ali, naquelas praias, uniu o aviador, o soldado e o pai de família: o espírito de um dever que se converte em missão existencial. O espírito de Dunquerque.

É isso, querido pai. Fico por aqui. Saudades e obrigado”.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/08/2017, Página A-2, Opinião.

Um tesouro a descobrir

Opinião Pública | 15/06/2016 | | IFE CAMPINAS

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Um amigo resolveu pregar uma peça e postou uma foto de uma planície toda branca e, num relance, parecia um campo coberto de neve, iluminado pelo sol a pino. Curti a foto e o elogiei dizendo que, finalmente, ele não havia publicado nenhuma vaca sendo ordenhada, um monte de saco de cebola enfileirado ou qualquer imagem de padrão agropecuário. Nada contra as vacas ou as cebolas. Tudo contra o odor campestre que ambos exalam.

Logo em seguida, veio a resposta: “Isso aí é uma plantação de algodão aqui em Brasília!”. Ele não perdoou e disse que enganar juiz não é muito difícil no Brasil. Depois, mandou uma foto do STF e perguntou para mim quando iria para lá. Respondi que não tenho amigos políticos e me sinto mais confortável entre juízes de carreira. Ele afirmou: “Você tem ótimos amigos então!”. Emendei: “E você é um deles! Desde o ginásio”.

Toda vez que o tema da amizade surge, lembro-me sempre de um amigo cético que tem uma pérola sobre o assunto: “A amizade, como o amor, não passa de um nome!”. Nominalismos à parte, quem não crê na amizade, certamente, é um indivíduo sem amigos. Por isso, vale o conselho de Cícero: “Penso que deveis perguntar sobre a amizade aos que a praticam”.

Contudo, hoje, quem for seguir a sugestão do mais ilustre orador romano, vai ter alguns problemas no caminho. Há muitos que creem ser a amizade algo supérfluo e uma coisa do passado. Os interesses econômicos e a ambição de poder do mundo dos negócios e da política limitam muito o espaço necessário para relações pessoais desinteressadas e sinceras. O mesmo vale para as órbitas social e acadêmica, onde as fogueiras das vaidades nunca se apagam. Em todos esses campos, networking é o novo nome da amizade.

Nesses meios, as pessoas costumam ser apreciadas pelo que têm e não pelo que são, ou seja, pelas vantagens materiais e imateriais que podem nos proporcionar. Ter “amigos” é uma política de trato a fim de se ter mais possibilidades de privilégios e recomendações. Desde suplente de diretor de quadra de bocha até cargo comissionado na presidência de alguma empresa pública.

Aqui em Pindorama, muitos atribuem esse trato “político” da amizade aos tempos de Pero Vaz, quando, em sua famosa carta do “Achamento”, ele já teria solicitado, para Dom Manuel, um favor para seu genro. Vista dessa forma, a amizade perde seu valor e vira uma fonte de injustiças. Históricas, inclusive.

Outro obstáculo no cultivo da amizade atende pelo nome de sociedade massificada. Adorno, lá atrás, já alertava que “nos dias atuais, falta vida e sobra coesão. Nossa sociedade sobre de uma unidade imposta, de uma aglutinação forçada e violenta. São multidões esmagadas pelo império das leis, pelas necessidades técnicas e pelas exigências materiais”.

Esse tipo de sociedade conduz seus indivíduos à despersonalização e, progressivamente, o sujeito deixa de agir como um ser singular, livre e criativo, cujo efeito mais deletério é o de perder a capacidade de se relacionar intimamente.

Surgem indivíduos gregários, solitários e que repetem, como autômatos, as formas abstratas que aprenderam, sem nenhum vigor, entusiasmo ou convicção verdadeiramente pessoal. Some-se a isso o crescente predomínio do público sobre o privado, quando não uma invasão daquele no mundo da intimidade do relacionamento pessoal. As individualidades cederam espaço para as coletividades.

Ao contrário da vida animal, é preciso que se redescubra nossa condição de pessoa e se valorize isso: no fundo, nós somos, para os outros, nossas irrepetíveis individualidades. Sem dúvida, é um bom propósito nesse ano em que reencontrei minhas turmas de ginásio do Porto Seguro e de direito do Largo de São Francisco. Resgatar a amizade, pelo que são, de cada um daqueles que escreveram no livro da minha vida. Não sem estar acompanhado de um bom destilado ou fermentado, pois, afinal, como diz outro grande amigo, nunca cultivei amigos e amigas tomando leite de vaca. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 15/6/2016, Página A-2, Opinião.