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Os maniqueísmos historiográficos e o debate em torno dos 130 anos de abolição (por Beatriz Piva Momesso)

História | 15/11/2018 | | IFE CAMPINAS

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Libertação dos Escravos, 1889, Pedro Américo.

 

“Não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra.” Esta é uma das frases mais célebres do abolicionista Joaquim Nabuco, e em si mesma, tem poder explicativo. Talvez por essa constatação, ao fazermos memória dos 130 anos da Lei Áurea pensemos que ainda há um longo caminho a percorrer.  Sendo assim, ao olhar o passado como um espaço de nossa experiência presente, surgem perguntas sobre como se deu a abolição da escravidão no Brasil e quem foram os protagonistas dessa história.

Hoje em dia, no meio intelectual, predomina ainda o debate maniqueísta.  De um lado estão aqueles que obscurecem ou suprimem o papel dos escravos como agentes de sua própria libertação, do outro os que subestimam a importância da conjuntura internacional, da política de ações governamentais e das personagens imperiais no processo, sobretudo a atuação da Princesa Isabel. Tais posturas repercutem num embate que perpassa as arcadas acadêmicas e ecoa também entre os leigos e o público em geral.

Estudos das duas últimas décadas demonstraram que escravos não eram simplesmente peças de um sistema ou de um “modo de produção”.  Apesar dos sérios condicionamentos, eles exercitavam o livre arbítrio e agiam de modo a buscar a liberdade nas brechas do sistema. Há vários exemplos de trabalhos fundados em extenso material de pesquisa guardado em arquivos sobre esse procedimento, e não é difícil mencionar alguns deles.  O historiador João José Reis tratou com propriedade da dimensão da Revolta dos Malês, ocorrida em  1835 em Salvador. Um grande movimento de rebelião impartido pela associação de escravos e libertos em sua grande maioria originários do Golfo de Benin, no sudoeste da atual Nigéria.  Unidos pela religião islâmica e comunicando-se através do árabe, tentaram implantar uma república negra em certo paralelismo com os moldes da revolução no Haiti ocorrida décadas antes. Uma ameaça à ordem política local. A partir de 1871 com a Lei do Ventre, os escravos, sobretudo os que viviam na cidade, destacaram-se em seu protagonismo ao negociar a liberdade com seu senhor através do chamado “pecúlio”. Tratava-se de uma quantia que o escravo poderia acumular para comprar sua liberdade. Era fruto de parte do dinheiro obtido com o trabalho de venda de quitutes, temperos, refrescos nas ruas e de serviços de barbeiro. Muitos compraram assim sua alforria. Há inclusive o famoso e curioso caso citado pela historiadora Mary Karasch do astuto cativo no Rio de Janeiro que, durante o período em que juntava seu pecúlio, comprou outro escravo para assim acelerar o processo de compra da liberdade. Ao ver-se livre, gozava, ao mesmo tempo, de nova propriedade. Ao que se sabe, o pecúlio foi aceito pelos senhores a fim de impedir a fuga dos escravos.

No entanto, a própria conjuntura diplomática e o que alguns chamariam de “atuação da elite” tem lá seu peso na História.  Dom Pedro II deixou-se influenciar  diretamente pela grande potência do século XIX, a Inglaterra industrial.  O poderio inglês era nítido no Brasil desde a chegada da família real portuguesa, que, aliás, fugira de Napoleão Bonaparte escoltada pela esquadra inglesa. A Inglaterra, pasmem, foi pioneira na abolição do tráfico humano de africanos e da escravidão. Sobre o porquê disso, já antecipamos que há divergências que deixaremos para discutir em outra ocasião. De todos os modos, especialistas internacionais não se contentam mais com a explicação de que a escravidão emperrava os interesses capitalistas ingleses, já que escravo “não consumia”. O site The Aboltition Project evoca essa versão, através de fontes históricas. (http://abolition.e2bn.org/index.). Pelo contrário, o uso do trabalho escravo nas colônias britânicas ia ao encontro e complementava os exorbitantes lucros da indústria. Prova disse foram os esforços descomunais que um grupo liderado pelo político Wiliam Wilbforce teve que empreender, sobretudo no parlamento, em 25 de março de 1807, para abolir primeiramente o tráfico de escravos.  Deve-se ressaltar que desde 1792, Wilbforce vinha tentando incansavelmente e sem nenhum êxito aprovar projeto pelo fim daquele comércio na Câmara dos Comuns. Idealista incansável, espirituoso, filantropo e preocupado com a situação social de seu tempo de modo inédito para a época, o parlamentar conheceu Thomas Clarckson um intelectual de raízes cristãs quackers, que em 1785 em Cambridge venceu um concurso de ensaios, com um trabalho denominado na tradução ao português “É legal escravizar aquele que é inconsciente dessa condição?” Ao terminar o ensaio, Clarckson, que era muito místico, disse que por acreditar firmemente no conteúdo de sua obra tinha o dever em consciência de dedicar todas sua vida para a abolição do tráfico de escravos.  E assim o fez. Primeiro publicou o escrito em forma de panfleto o que garantiria uma rápida e popular divulgação. Formou junto com outros quackers o Comitte for the Abolition of Slave Trade, que não obteve êxito político até a parceria com Wilbforce, no final do século XVIII. O Comitê divulgou aos quatro ventos a história de vida de Olaudah Equiano, ex escravo que comprou a liberdade em 1763 e escreveu uma autobiografia contando os horrores da escravidão. Somente em 26 de julho de 1833, três dias antes da morte de Wiliam Wilbforce, os ingleses aprovaram com muito custo o projeto de abolição da escravidão mediante indenização paga aos senhores.

Essa corrente de ideias inglesas de teor mais humanístico e cristão influenciou também a luta pelo fim da escravidão através da via parlamentar no Brasil. Já no final da década de 1860, o jovem Joaquim Nabuco traduzia para seu pai Nabuco de Araújo, ministro da justiça e relator da Lei pela Emancipação Gradativa ou Lei do Ventre Livre, jornais ingleses que tratavam da luta na Inglaterra e no mundo pelo fim da escravidão, entre eles o Anti-Slavery Reporter. Em 1868, Nabuco de Araújo, então, incluiu pela primeira vez num programa de partido brasileiro a proposta da emancipação gradativa.

O Império temia ficar excluído das redes de relações diplomáticas europeias, já que a partir de finais da década de 1860, as chamadas “nações civilizadas” viam como maus olhos países que tinham escravos como principal força de trabalho. Era como se vivessem uma fase superada já há tempos pelos membros do velho continente. Foi a partir dessa preocupação que em 1867, D. Pedro II enfatizou, em uma de suas Falas ao Trono, a necessidade de pensar a substituição do “elemento servil”, eufeminismo usado para evitar usar expressões que evocassem a barbárie (escravo.)

Durante a viagem do pai a Europa, a Princesa Regente Isabel Cristina, provavelmente de comum acordo com o monarca, aboliu a escravidão pela pena.  A participação do arcebispo Dom José Pereira da Silva Barros, capelão-mor de dom Pedro II, conhecido como “o bispo abolicionista” parece ter provocado forte influência na princesa, conforme atesta partes do seu diário e de uma de suas missivas publicada na Revista do Instituto Archeológico e Geográfico de Pernambuco em 1891.     

Alguns historiadores viram uma atitude oportunista de Isabel, já que, afirmaram eles, a escravidão já estava falida, restando pouca mão de obra escrava ativa em 1888. No entanto, há pelo menos dois fatores que podem levar inverter a reflexão.  Em primeiro lugar é evidente que através desse ato Isabel colocou em risco a sobrevivência do sistema imperial. Não o faria se não fosse por convicção. A famosa máxima do Barão de Cotegipe por ocasião da proclamação da Lei Áurea atesta o fato. Dirigindo-se a princesa afirmou: “Libertaste uma raça, mas perdeste a coroa.” De fato no ano seguinte, o Império foi abaixo pelo golpe republicano de 1889.

Em segundo lugar, quase todos possuíam escravos no Brasil. Apesar da recente  substituição da força de trabalho escravo pelo assalariado, os grupos de proprietários do Sudeste sentiram-se ameaçados pela nova lei. Segundo o mesmo Joaquim Nabuco em Minha formação, o grupo de fazendeiros do Vale do Paraíba chegou  ameaçar apoiar à República caso a lei viesse à tona. Ademais, a adesão explícita da princesa ao catolicismo romano incomodava as elites liberais.

Sendo assim, propõe-se a consideração de um equilíbrio historiográfico. Os africanos e seus descendentes escravos poderiam não ter a liberdade de ir e vir, mas conservavam a liberdade interior da escolha e empreenderam importantes ações em busca da abolição da escravidão. O livre – arbítrio nunca foi atributo apenas dos senhores ou dos escravos, é dom estrutural da humanidade. Percorrer o caminho até o fim da escravidão foi tarefa desempenhada pelos próprios escravos, mas também o foi pelos personagens da monarquia por aqueles pertencentes a extratos intelectuais ou parlamentares,  influenciados pelas ideias e pela conjuntura estrangeira. O passo foi dado em 1888, embora ainda há muito o que fazer para acabar com a “obra de escravidão”.

A riqueza da História reside em superar a esfera de heróis e vilões e adentrar à investigação meticulosa e profunda sobre os motivos pelos quais se moviam cada um desses personagens, que a nossos olhos podem  parecer mais ou menos nobres. Tal ação exige rigor na investigação e a busca de informações em fontes primárias que nem sempre reafirmam convicções políticas pessoais do historiador e, por ora, podem até contrariá-las. Se por um lado, a hipóteses iniciais instauradas no início da pesquisa podem ser desconstruídas pela pesquisa documental, por outro enriquecem o nosso entendimento sobre humanidade, contingência e liberdade ….e História é justamente isso e não outra coisa!

Beatriz Momesso é Historiadora pela UNICAMP, professora e doutora em História pela UERJ. Pesquisa, entre outros, historiografia oitocentista e jornalismo político. Atualmente, exerce atividades de docência e de pesquisa como bolsista de Pós-Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Um renascimento brasileiro?

História| Opinião Pública | 10/01/2018 | | IFE CAMPINAS

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As férias escolares são época em que recebemos – de primeira ou segunda mão – grande quantidade de notícias da Europa. Como incluo-me no segundo grupo e a filosofia não tira férias, partilho algumas reflexões – possivelmente surpreendentes – sobre o paralelo que podemos traçar entre a presente situação no velho continente e no Brasil.

À primeira vista, pode parecer que a Europa seja um mar de civilidade, segurança e cultura, enquanto nós, com nossos quase setenta mil homicídios anuais, escândalos de corrupção, consumo desenfreado de drogas e vergonhosos índices de iletramento estancamos nossa marcha civilizacional na idade da pedra. Com efeito, se compararmos nossas estatísticas em cada um desses setores com as de qualquer país da União Europeia, certamente teremos motivos de sobra para corar de vergonha.

Contudo, se analisarmos o quadro social europeu e tentarmos traçar um prognóstico de longo prazo, perceberemos que a Europa entrou há muitos anos em uma das piores crises de sua história e que – tudo leva a crer – dela não sairá tão cedo. A causa dessa crise é complexa, mas, se quisermos atribuir-lhe um nome, podemos utilizar o de “cultura da morte”. Assim entendo uma visão de mundo ancorada no relativismo moral e que inclui aberrações como ideologia de gênero, legitimação do uso de entorpecentes, proliferação da prática do aborto e da eutanásia e – conseguintemente –, desagregação da instituição familiar. Soma-se a isso o problema da crise migratória, com a qual a maior parte das autoridades europeias tem lidado de maneira completamente inábil e que, no longo prazo, contribuirá para a ruptura do tecido social de muitos países.

Também é verdade que o Brasil encontra-se em uma das piores crises de sua história e seria enfadonho listar novamente nossos principais problemas. Mas, se tivermos mais atenção, descobriremos que há por aqui algo de novo: um grupo cada vez maior de jovens está se dedicando com afinco ao estudo e ao resgate de nossas raízes culturais que, segundo a feliz imagem oferecida por Bento XVI, remontam a Jerusalém, Atenas e Roma. Diferentemente da prática universitária – que muitas vezes encara seu objeto de estudo com o distanciamento de um antiquário – esses jovens buscam cultura antes de tudo para tornarem-se pessoas melhores e plasmarem o resultado de seus estudos em obras valiosas. Em resumo: não nos interessamos em ler (nos originais) Cícero, Virgílio, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino e tantos outros movidos por um vão pedantismo, mas para aprendermos a pensar como eles e para que – subindo nos ombros de gigantes – sejamos capazes de ver mais longe e, finalmente, colocar o Brasil no lugar que tantos grandes homens do passado desejaram: o de grande centro formador de cultura.

Ainda é cedo para dizer que a atual geração e as seguintes terão o vigor necessário para debelar nossos gravíssimos problemas, mas alguns sinais animadores já se fazem visíveis: diferentemente dos saudosistas do maio de 68, esses jovens já possuem uma consciência clara do certo e do errado e não hesitam em fomentar aquele enquanto combatem este. Prova disso tivemos na enérgica mobilização nacional contra a ideologia de gênero nas câmaras municipais e contra as múltiplas tentativas empreendidas por certos grupos para legalizar o aborto e ampliar sua prática. Paralelamente, muitos jovens têm percebido o inestimável valor do casamento e da família e que acudir aqueles que passam por necessidades materiais e perda do rumo existencial não é meramente questão política, mas dever individual de todos que possam fazê-lo.

Segundo o filósofo francês Rémi Brague, a marca fundamental da civilização europeia é a capacidade de produzir renascimentos culturais voltando ao tesouro de suas origens. Façamos votos e esforcemo-nos para que – diante das fraquezas da Europa – o palco do novo renascimento seja o Brasil.

Fabio Florence é professor de filosofia e membro do IFE Campinas (florenceunicamp@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 10/01/2018, Página A-2, Opinião.

O triunfo no fracasso

História| Opinião Pública| Teologia | 27/12/2017 | | IFE CAMPINAS

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Há mais de dois mil anos, um casal buscava lugar para se abrigar, a mulher estava para dar à luz. Estavam na cidade de Belém, por conta do censo ordenado pelo imperador romano e todas as casas e hospedarias estavam lotadas, não havendo lugar para eles, restava como alternativa se abrigar num estábulo, junto dos animais.

Esse acontecimento, marcado pelo fracasso de um casal revela o evento que mudaria a História: Deus se fez Homem e sendo eterno decidiu prender-se ao tempo, sendo infinito, decidiu encerrar-se no seio de uma Virgem, ser gerado e nascer como todos os homens. O fracasso humano de Maria e de José foi o pretexto usado por Deus para entrar na História. Na miséria do presépio Deus se aniquila e exulta de alegria porque Ele é amor e vem até o homem, sua criatura que perdeu-se pelo pecado, pelo mau uso de sua liberdade; por isso o Verbo de Deus se torna homem “para ensinar o homem a ser homem” (João Paulo II), já que o pecado o havia desviado de seu fim primordial. Com o nascimento de Cristo, no dizer de C.S. Lewis, “pela primeira vez, a humanidade viu um homem de verdade”.

Deus se encarna por amor e o amor implica doação, entrega total à pessoa amada e esse é o desejo de Deus pela humanidade, de modo que só é possível compreender o mistério do nascimento do Homem-Deus Jesus Cristo em sua íntima conexão com o Calvário, com sua morte na Cruz, onde seu amor vai até as últimas consequências. No presépio Deus se aniquila ao descer de sua glória à nossa miséria humana, fazendo-se a nós semelhante (Fl. 2,7) e na Cruz Ele novamente se aniquila perdendo o aspecto humano, conforme recorda a profecia de Isaías ao afirmar que “não tinha beleza nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse. Era desprezado como o último dos mortais, homem coberto de dores, cheio de sofrimentos; passando por ele, tapávamos o rosto; tão desprezível era, não fazíamos caso dele”(Is. 53,1-2). Mistério do amor divino que inscreve neste jeito de agir a sua Lei, ou seja, por sua própria natureza de Criador, Deus ama os homens incondicionalmente como suas criaturas.

Ao nascer, Cristo triunfa sobre o mal no mundo e sobre o mal que há em cada ser humano que Nele crê. Na história humana, quando Deus triunfa, não o faz de modo aparente e esplendoroso. A lógica do triunfo de Deus é o escondimento, a alegria e salvação se recobrem com a aparência do fracasso: o fracasso do presépio, onde todos o rejeitaram, o fracasso da pregação, onde muitos não o ouviram, o fracasso da cruz, onde o conduziram à morte, o fracasso das perseguições à Igreja, seu corpo ao longo da História… No entanto, é nestes aparentes fracassos que a glória de Deus se manifesta. Não há modo mais humano de Deus entrar na história do que através do fracasso. A vida de qualquer pessoa é constantemente marcada por eles, seja um projeto que dá errado, alguma situação que leva à desagregação da família, a fome, o desemprego, o endividamento, a miséria… Nada mais humano que o fracasso e por isso, ao entrar no mundo como homem, Cristo assume o fracasso como caminho para a glória.

Na noite de Natal os anjos anunciaram aos pastores: “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc. 2,14). Nasceu o príncipe da paz, aquele que ensinará a Lei de Deus, segundo a qual do mesmo modo que Deus triunfa a partir do fracasso na História da humanidade, assim também em nossa vida pessoal, pois quando fracassamos temos a oportunidade de reconhecer que somos pobres, pequenos, pecadores, mas que Deus é por nós, se fez homem e veio em nosso socorro e por isso, se caímos, cabe a nós o esforço de nos levantamos, insistir e seguir nosso caminho Se queremos que Deus faça parte de nossa História temos de aprender de Cristo a transformar nossa dor em amor, nosso fracasso em decisão de fazer o bem a nós mesmos e aos outros.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia, Ensino Religioso e gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 27/12/2017, Página A-2, Opinião.

[RESENHA] Caçadores de mitos (por Marcio Antonio Campos)

História | 05/11/2016 | | IFE BRASIL

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LIVRO | Dados técnicos: Ronald Numbers (org.), Galileo goes to jail and other myths on science and religion. Harvard University Press, 2009, 302 pp.

No começo de 2009, enquanto aguardava a divulgação do resultado do vestibular da Universidade Federal do Paraná, fiz um teste: abordei alguns vestibulandos e perguntei o que eles tinham aprendido sobre Galileu Galilei no ensino médio ou no cursinho. Apenas um adolescente se lembrava de algo: que o italiano tinha sido perseguido por afirmar que a Terra era redonda. Desde então não faço mais esse tipo de enquete, até porque a Harvard University Press lançou uma coletânea abrangente das respostas que inevitavelmente sairão da boca de vestibulandos, professores, jornalistas e “intelectuais”: é Galileo goes to jail and other myths on science and religion, organizado por Ronald Numbers.

A relação entre ciência e religião é um dos temas mais importantes do século XXI, ao menos na metrópole, onde a cada ano são lançados inúmeros livros sobre o assunto e organizam-se debates televisivos em universidades envolvendo gente como Michael Shermer, Dinesh D’Souza, Richard Dawkins e John Lennox (basta procurar no YouTube). Por aqui, o mercado editorial ignora solenemente autores como Karl Giberson, Kenneth Miller, Ian Barbour e John Polkinghorne (apenas um livro de cada um desses dois últimos autores recebeu edição brasileira), enquanto publica a rodo as obras de ateístas militantes, fazendo à sensatez uma única concessão ao ter lançado A linguagem de Deus, de Francis Collins. Como conseqüência, por pouco ler e muito repetir, o cérebro dos “formadores de opinião” secou a ponto de perpetuar irrefletidamente os mitos do livro de Numbers, apesar das evidências contrárias – que não são poucas.

Os 25 ensaios – escritos por 12 ateus ou agnósticos, 5 protestantes tradicionais, 2 protestantes pentecostais, 1 católico, 1 judeu, 1 muçulmano, 1 budista e 2 autores com “um lado espiritual independente de religiões”, como dizem no Orkut – estão ordenados cronologicamente, iniciando com o surgimento do Cristianismo e terminando com os debates sobre o criacionismo e a secularização da cultura ocidental moderna. Isso significa que o desfile de cérebros parte de Agostinho, com o seu De Genesi ad litteram, e passa por Avicena, Giordano Bruno, Copérnico, Descartes (descrito como “o mais incompreendido dos filósofos”), Newton, até chegar a Darwin (nada menos que 9 dos 25 mitos abordam a teoria da evolução) e Einstein – sem falar, claro, de Galileu, a cujo respeito foi lançado, também este ano, um livro muito completo sobre seu processo inquisitorial: Galileu, pelo copernicanismo e pela Igreja, de Annibale Fantoli.

O objetivo do livro não é defender nenhuma religião em especial – sequer tenta defender a religião em si: um dos ensaios questiona a “lenda piedosa” sobre uma suposta reconversão de um Darwin moribundo, e outro desmente a crença de Einstein em um Deus pessoal. O capítulo 9 diminui o impacto do Cristianismo na construção da ciência moderna, mas recorrendo a um espantalho: não consta que Rodney Stark, Stanley Jaki ou Thomas Woods considerem o Cristianismo a única base da ciência moderna, desprezando as contribuições clássicas, judaicas ou islâmicas. Ainda assim, no fim das contas a religião sai ganhando nesse trabalho de desconstrução, mas apenas porque na maioria das lendas os vilões andam de batina e não de jaleco branco.

Alguns mitos, à primeira vista, parecem simplórios demais para merecer ensaios no livro. Os cristãos medievais acreditavam que a Terra era plana? Mas Stephen Jay Gould já não tinha dedicado um trecho de seu Pilares do tempo, na década passada, para desmentir essa idéia? Pois Lesley Cormack, autora do texto sobre a “Terra plana”, mostra que, no mesmo ano em que Gould publicava sua obra sobre ciência e religião, eram lançados livros didáticos de ensino médio nos Estados Unidos reforçando a lenda – que, a julgar pela resposta do vestibulando da UFPR, segue firme e forte. Aliás, todos os capítulos têm como epígrafes textos que deram origem ou que mantêm viva a mitologia. Assim, vemos que em 2006 há quem ainda afirme que os calvinistas escoceses se opunham à anestesia durante o parto porque ela contrariava a determinação divina de Gênesis 3;16, ou que a Igreja Católica havia proibido a dissecação de cadáveres.

Entre os criadores de mitos, no entanto, os mais citados no livro editado por Numbers são os norte-americanos Andrew Dickson White e John William Draper, autores de A History of the Warfare of Science with Theology and Christendom (1896) e History of the Conflict Between Religion and Science (1874) respectivamente. Podemos dizer que são os pais do conflito entre fé e ciência. A invenção – ou reinterpretação – dos fatos feita por White e Draper continua tão popular que só é possível concluir que seus discípulos, defensores modernos da guerra entre ciência e religião, os Hitchens, Dennetts e Dawkins da vida, podem até pensar que estão levando seus leitores ao século XXI, mas na verdade estão é mantendo todo mundo preso no século XIX.

Marcio Antonio Campos é jornalista, editor da Gazeta do Povo, em Curitiba, e mantém o blogue Tubo de Ensaio, sobre ciência e religião (http://www.gazetadopovo.com.br/blog/tubodeensaio).

Resenha publicada na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro de 2009.

[resenha de livro] “1914, El año que cambió la historia”, de Antonio López Vega (por Pablo G. Blasco)

História | 15/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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1914-el-ano-que-cambió-la-historia-189x300Recebi o exemplar autografado das mãos do autor. Somos amigos faz anos e veio ao Brasil para dar umas conferências num congresso de Humanidades Médicas que estávamos organizando. Construir o médico humanista implica ajudar a inseri-lo na realidade social onde se movimenta, facilitar o entendimento do mundo. Dai a importância do tema, amplo, que este livro aborda e que também foi pauta das conferências comentadas.

Não é propriamente um livro de história. É um passeio, quase um trailer de cinema,  pela história contemporânea –a modernidade- com ênfase no século XX, e um grande zoom em 1914 de onde o autor realiza elegantes flashback e projeções para o futuro. Um livro original  centrado no tema que Lopez Vega domina, e sobre o qual leciona na Universidade de Madrid.

Cada um dos doze capítulos se corresponde com os meses do ano. Arranca de um fato concreto em cada mês do ano 1914, e sobre ele desenvolve a temática e o corpo do livro. O resultado é um banho de cultura, ou melhor, um índice para adentrar-nos nos diversos temas. Como já disse um trailer de cinema que te provoca e te incita a saber mais.

Temos na ouverture, a mudança de percepção, com Einstein e Freud, minando os valores absolutos, com a relatividade científica e novos paradigmas morais.  Agudizam-se os desentendimentos entre Igrejas e Estados, entre a fé e a razão. Os valores clássicos –aquilo que racionalmente vemos- se questiona e surge o existencialismo e o racio-vitalismo, como modo de lidar com as incertezas.

Seguem-se os intelectuais, palavra que passou de ser um adjetivo a constituir-se em substantivo, personalizou-se. Os intelectuais surgem como voz pública, convertendo-se num referencial da vida coletiva e social. No dizer de Ortega –santo da devoção do autor- os intelectuais saíram da apatia política à praça publica.

A entrada das mulheres na vida pública, tanto como profissionais como na conquista do direito ao voto. Um premio Nobel duplo para Marie Curie; o premio Nobel da paz para Bertha von Suttner, que foi por um breve período secretária de Alfred Nobel. Ela foi quem inspirou ao descobridor da dinamite, para promover a fundação que outorgaria os prêmios que levam seu nome, como um modo de compensar a riqueza que amealhou às custas do seu invento destrutivo.

A primeira guerra mundial, onde se pratica um novo modo de fazer a guerra: os lideres nos gabinetes –Londres, Paris, Berlim- enquanto os oficiais e soldados permanecem no campo de batalha sem terem ideia clara de “a quantas está a guerra e as batalhas”. A emergência da super potencia americana (do canal do Panamá às entradas nas duas guerras) e o contraponto soviético com a Guerra Fria.

Comenta-se em outros capítulos a experimentação artística, abrindo infinidade de vias à criatividade individual;  os nacionalismos como elemento desestabilizador dos sistemas políticos, as massas e o movimento operário e sindical, aspirando a uma maior justiça social. Um mundo conectado e globalizado, a guerra total com o assassinato em massa de civis, a a queda do euro centrismo e a emergência de um mundo além da realidade europeia.

No capítulo final oferece um belo resumo do amplo espectro do livro que é, insisto, apenas um índice da história do século XX.  Depois de ler o livro, o efeito é previsível: o desejo de adentrar-se com calma em cada um dos temas sugeridos, de conhecer mais, para entender o mundo que nos rodeia. Um mundo de pós modernidade e, em palavras extraídas das conferências do autor, de trans humanismo. Um desafio que nos toca viver. Cumpre preparar-se à altura.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

LIVRO
Autor: Antonio López Vega.
Título: 1914, El año que cambió la historia.
Publicação/ano: Madrid: Taurus, 2014.
Páginas: 239 págs.

Publicado originalmente no site do autor em 26/01/2016, link: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/01/26/antonio-lopez-vega-1914-el-ano-que-cambio-la-historia/#more-2575> Acesso em 15 de Abril de 2016.