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A ciência contemporânea e a fé

Opinião Pública | 26/06/2019 | | IFE BRASIL

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É hoje predominante em nosso ensino básico a ideia de que as descobertas da ciência moderna são incompatíveis com a fé num Deus único, transcendente, onipotente e criador de todo o universo. Dependendo do público ao qual os defensores dessa tese se dirigem, os argumentos levantados a favor dela variam desde a dramatização forçada do caso Galileu até a constatação de que surgem a cada momento no universo novas partículas, sem que possamos determinar a causa desse surgimento. Não pretendo examinar aqui o caso Galileu, mas apenas o segundo argumento, que exige um pouco de reflexão. Ele pode ser formulado do seguinte modo: se no universo constatamos fenômenos sem causa, então o próprio universo não tem uma causa; ora, constatamos nos universo fenômeno sem causa, portanto, o próprio universo não tem uma causa. Vejamos quais são os pressupostos desse argumento.

Em primeiro lugar, quem proclama o incessante progresso da ciência não cansa de admitir que esta faz novas descobertas constantemente. Se, pois, no atual estado da ciência não podemos determinar a causa de certos fenômenos, nada impede que venhamos a descobri-la num futuro não muito distante. Somente isso já é suficiente para prejudicar a força do argumento. Mas ainda há mais: as novas partículas que surgem no universo surgem dentro da ordem do universo e não a partir do nada absoluto. Quem afirma a possibilidade de o ser surgir a partir do nada absoluto não está defendendo uma tese de ciência natural, mas uma tese filosófica, uma tese metafísica.

Ora, a própria inteligência humana é incapaz de pensar a ideia de um nada absoluto, pois a ideia de nada nos é acessível apenas por meio da negação de algo existente para, ao mesmo tempo, afirmar outra coisa existente, ou, dito de outro modo, só nos é acessível o nada relativo. Para compreender o que digo, tomemos uma figura geométrica que não seja um círculo. Ao negar que ela seja um círculo, estou automaticamente afirmando que ela é outra figura geométrica, um triângulo ou um retângulo, por exemplo. Mas se afirmo que se trata de um círculo quadrado, estou afirmando um nada absoluto, algo impensável, um absurdo. Ora, a ciência nos mostra que o universo em que vivemos tem idade e que, desde sua origem, vem se desenvolvendo na direção de formas cada vez mais complexas. Isto significa que, no momento de sua origem, ele deveria ter uma forma extremamente simples e compacta, sendo perfeitamente concebível que um tal compacto não tenha existido desde sempre. Contudo, uma coisa é negar a existência eterna do universo, outra bem diferente é negar a existência de todo e qualquer ser (o que equivaleria a afirmar o nada absoluto, o absurdo completo). Esta última afirmação, se defendida por pessoas supostamente dotadas de consciência científica constitui o que se costuma chamar de um “tiro no pé”, pois equivale a afirmar o completo absurdo como origem e fundamento último do inteligível. Trata-se, de qualquer maneira, de uma afirmativa que pesquisa científica nenhuma conseguiria jamais provar, uma vez que as ciências naturais nos fornecem explicações sobre a sucessão de fenômenos que ocorrem num universo realmente existente e não da passagem de um não universo para o universo.

Restaria aos cientificistas afirmar que o universo é eterno e que deve-se dizer que seu desenvolvimento é cíclico. O problema é que, quando alguém o afirma, está supondo de modo implícito que a matéria é viva e inteligente; ou, dito de outro modo, que numa massa de moléculas de hidrogênio estava “escondida” — e bem escondida —a “programação” de todos os eternos ciclos que o universo deveria percorrer. Surge então uma pergunta que, novamente, extrapola os limites da ciência: por que essa matéria eterna, inteligente e autossuficiente “decidiu” se engajar numa eterna e reiterada aventura cósmica? Examinaremos as consequências dessa pergunta em outra oportunidade.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é professor e membro do IFE Campinas.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, edição 26/06/2019, página A2.

Pedagogia da injustiça

Opinião Pública | 30/08/2017 | | IFE CAMPINAS

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A aceitação de um rol de principios incondicionais como pressuposto a qualquer diálogo, no âmbito de uma ética procedimental, não é consequência de uma postura sem crítica e subjetiva. É, pelo contrário, sinal de uma reflexão imparcial sobre nossas intuições morais elementares que, em último caso, refletem uma busca pelo justo, nem que se tenha, nesse itinerário, que se fazer uma escala no injusto.

Na famosa compilação de textos jurídicos romanos que o imperador bizantino Justiniano mandou fazer por volta do ano 530 de nossa era, o Corpus Iuris Civilis, existe uma clássica definição do saber jurídico. Atribuído a Ulpiano, o texto dizia que “a jurisprudência é a ciência do justo e do injusto”, o mesmo autor de outra célebre máxima do direito: “Os preceitos jurídicos são: dar a cada um o seu, viver honestamente e não lesar ninguém”.

Na primeira fórmula lapidar, existe uma sugestiva e inquietante integração da injustiça. Longe de pretender decretar que o homem ou um sistema ético que queira ser justo deve ser, primeiro, injusto, a perspicaz intuição de Ulpiano indica um paradoxo da existência humana: quando a humanidade, por meio da razão ou da experiência, nota que uma dada situação ou matéria é injusta, a mesma humanidade não se limitou a desmascarar essa injustiça, mas, concomitantemente, aprendeu em que consiste a justiça.

Podemos nos lembrar do diagnóstico marxista acerca das relações trabalhistas no bojo da revolução industrial; dos movimentos emancipatórios femininos do início do século XX; do holocausto judeu durante o último conflito mundial armado; da luta pelos direitos civis dos negros americanos na década de 60 e da marginalização econômica de vários povos no recente fenômeno da globalização.

O superior talento prático dos romanos captou com precisão esta misteriosa pedagogia da injustiça, formulando-a teoricamente ao ensinar que é bom jurista aquele que conhece o justo, mas também o injusto. Afinal, quem descobre a razão da injustiça de algo, foi porque andou trilhando pelas sendas da justiça. Em suma, conhecer o injusto elimina qualquer risco de ingenuidade e confere profundo realismo ao conhecimento do justo.

Procurar compreender este paradoxo, sem se deixar levar pela vertigem do ceticismo ou do pessimismo, significa perceber a miséria e a grandeza da realidade social do homem. A experiência mais elementar, desde a grecidade, ensina-nos que o homem sente com muito mais antecedência e intensidade o que os demais homens não devem fazer com ele do que aquilo que ele está obrigado a reconhecer e dar ao próximo.

Se o mesmo homem, por amor à coerência, procede de acordo, ou seja, entende que ele também não deve fazer com o seu próximo aquilo que não deseja que façam com ele, o nosso homem terá captado corretamente a sugestão de Ulpiano: a experiência da injustiça é um caminho para a justiça.

Em alguns momentos históricos, o embotamento da sensibilidade e a desorientação da razão, a par da evidência de flagrantes injustiças, convidam nossa esperança a uma rendição sem luta e sem horizonte.

Nesse momento, nossas intuições morais elementares sempre nos alertam para a necessidade de um combate sem tréguas na busca do justo, aquilo que dá legitimidade à ética do consenso, servindo-lhe de apoio axiológico sólido, tal como Atlas, o titã da mitologia grega que sustentava o peso da abóbada celeste sobre os ombros.

Convém lembrar-se nessas horas de que, quanto mais escura é a noite, mais próximo se está do crepúsculo. E que o reencontro com o justo é, com bastante frequência, fruto de um sofrimento sem acomodação à iniquidade. Com razão, já revelou o poeta que, quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor. Ainda que essa dor seja efeito de uma injustiça. Salvo melhor juízo, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 30/08/2017, Página A-2, Opinião.

[resenha de livro] “1914, El año que cambió la historia”, de Antonio López Vega (por Pablo G. Blasco)

História | 15/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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1914-el-ano-que-cambió-la-historia-189x300Recebi o exemplar autografado das mãos do autor. Somos amigos faz anos e veio ao Brasil para dar umas conferências num congresso de Humanidades Médicas que estávamos organizando. Construir o médico humanista implica ajudar a inseri-lo na realidade social onde se movimenta, facilitar o entendimento do mundo. Dai a importância do tema, amplo, que este livro aborda e que também foi pauta das conferências comentadas.

Não é propriamente um livro de história. É um passeio, quase um trailer de cinema,  pela história contemporânea –a modernidade- com ênfase no século XX, e um grande zoom em 1914 de onde o autor realiza elegantes flashback e projeções para o futuro. Um livro original  centrado no tema que Lopez Vega domina, e sobre o qual leciona na Universidade de Madrid.

Cada um dos doze capítulos se corresponde com os meses do ano. Arranca de um fato concreto em cada mês do ano 1914, e sobre ele desenvolve a temática e o corpo do livro. O resultado é um banho de cultura, ou melhor, um índice para adentrar-nos nos diversos temas. Como já disse um trailer de cinema que te provoca e te incita a saber mais.

Temos na ouverture, a mudança de percepção, com Einstein e Freud, minando os valores absolutos, com a relatividade científica e novos paradigmas morais.  Agudizam-se os desentendimentos entre Igrejas e Estados, entre a fé e a razão. Os valores clássicos –aquilo que racionalmente vemos- se questiona e surge o existencialismo e o racio-vitalismo, como modo de lidar com as incertezas.

Seguem-se os intelectuais, palavra que passou de ser um adjetivo a constituir-se em substantivo, personalizou-se. Os intelectuais surgem como voz pública, convertendo-se num referencial da vida coletiva e social. No dizer de Ortega –santo da devoção do autor- os intelectuais saíram da apatia política à praça publica.

A entrada das mulheres na vida pública, tanto como profissionais como na conquista do direito ao voto. Um premio Nobel duplo para Marie Curie; o premio Nobel da paz para Bertha von Suttner, que foi por um breve período secretária de Alfred Nobel. Ela foi quem inspirou ao descobridor da dinamite, para promover a fundação que outorgaria os prêmios que levam seu nome, como um modo de compensar a riqueza que amealhou às custas do seu invento destrutivo.

A primeira guerra mundial, onde se pratica um novo modo de fazer a guerra: os lideres nos gabinetes –Londres, Paris, Berlim- enquanto os oficiais e soldados permanecem no campo de batalha sem terem ideia clara de “a quantas está a guerra e as batalhas”. A emergência da super potencia americana (do canal do Panamá às entradas nas duas guerras) e o contraponto soviético com a Guerra Fria.

Comenta-se em outros capítulos a experimentação artística, abrindo infinidade de vias à criatividade individual;  os nacionalismos como elemento desestabilizador dos sistemas políticos, as massas e o movimento operário e sindical, aspirando a uma maior justiça social. Um mundo conectado e globalizado, a guerra total com o assassinato em massa de civis, a a queda do euro centrismo e a emergência de um mundo além da realidade europeia.

No capítulo final oferece um belo resumo do amplo espectro do livro que é, insisto, apenas um índice da história do século XX.  Depois de ler o livro, o efeito é previsível: o desejo de adentrar-se com calma em cada um dos temas sugeridos, de conhecer mais, para entender o mundo que nos rodeia. Um mundo de pós modernidade e, em palavras extraídas das conferências do autor, de trans humanismo. Um desafio que nos toca viver. Cumpre preparar-se à altura.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

LIVRO
Autor: Antonio López Vega.
Título: 1914, El año que cambió la historia.
Publicação/ano: Madrid: Taurus, 2014.
Páginas: 239 págs.

Publicado originalmente no site do autor em 26/01/2016, link: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/01/26/antonio-lopez-vega-1914-el-ano-que-cambio-la-historia/#more-2575> Acesso em 15 de Abril de 2016.

Que é o homem? – por Pedro Ribeiro

Filosofia | 08/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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que é o homem

“A todos os homens é permitido conhecerem a si mesmos e pensarem sensatamente”

Heráclito de Éfeso

 

Todo ser humano adulto – e este é um fato bastante natural – traz consigo certas memórias afetivas da infância: cenas muito específicas das quais se tem uma imagem uma tanto vaga, lembranças de situações vivenciadas com os pais, recordações de um jogo ou um alimento de que se gostava muito. Para um tipo um tanto melancólico e introspectivo como eu, mergulhar nessas memórias é um hábito constante, de modo que a cada dia se torna menos clara a distinção entre o que é o fato objetivo, efetivamente rememorado tal como se viveu, e o que é mera projeção, mais ou menos inconsciente, para edulcorar o passado. Seja como for, de todas as recordações pueris que guardo comigo, uma tem significado particularmente especial: trata-se da derrota de Garry Kasparov para o Deep Blue. Àquela altura, em 1997, contava eu com apenas quatro anos. Lembro, porém, como se fosse hoje, do quanto fiquei atônito ao receber aquela surpreendente notícia, anunciada em tons tão severos pelo apresentador do telejornal: aquele que é provavelmente o maior enxadrista de todos os tempos havia sido derrotado no jogo por um computador. Naturalmente, à época, eu não tinha a menor ideia do que era o xadrez. Entretanto, a confiar em minha memória (e, é claro, há uma enorme possibilidade de projeção aqui), recordo ter apreendido, em minha surpresa diante da TV, o que tornava aquele evento tão singular: um homem extraordinário havia sido vencido, naquilo que tinha de mais brilhante, por uma máquina[1].

Em tempos como os nossos, nos quais se fala tão frequentemente de inteligência artificial e em que a tecnologia impera nas relações humanas, de modo que a fronteira entre o real e o virtual se torna cada vez menos discernível, recordar o confronto Kasparov–DeepBlue parece-me uma boa maneira de começar este artigo. De fato, em sua trágica derrota para Blue, Kasparov nos mostrou o que há de mais profundo na essência humana; Kasparov nos mostrou o que é o homem. Em verdade, eu digo isso por uma razão muito simples: na série do confronto de 1997, o enxadrista russo e o computador enfrentaram-se ao todo seis vezes – em uma oportunidade, o homem venceu, em três se deu o empate e em duas ocasiões a máquina saiu vencedora. No entanto, o fato inquestionável que ultrapassa todos esses dados é um só: tanto em suas vitórias quanto em suas derrotas, apenas Kasparov estava efetivamente jogando xadrez. Com efeito, Deep Blue pode ter sido muitíssimo engenhoso e eficiente, pode mesmo ter feito jogadas absolutamente geniais, jogadas que nem mesmo o mais brilhante enxadrista poderia imaginar, entretanto, Deep Blue nunca jogou verdadeiramente uma única partida de xadrez. E o motivo é muito óbvio: do ponto de vista do computador, se assim pode-se dizer, o que se desenrolou naquele fantástico confronto de 1997 não foi uma “partida de xadrez”, mas tão somente a operação de um programa de software. Na perspectiva da máquina, tratava-se então de uma fria e indiferente sequência de bits, nada mais. O computador não ficou desapontado quando perdeu uma partida para Kasparov, tampouco feliz quando dele venceu. Aliás, de modo geral, computadores não têm estado de espírito ou desenvolvem capacidade reflexiva: não se sentem excitados quando rodam sites pornográficos, nem se questionam sobre a licitude de suas ações quando servem de meios para a realização de fraudes bancárias. Para o Deep Blue, vencer Kasparov diante do mundo inteiro, tornando-se célebre e requisitado por jornalistas, deu no mesmo que rodar o Paint para uma criança se distrair fazendo desenhos disformes. Não há, aos olhos da máquina, diferença qualitativa nenhuma entre uma operação e outra. Isto por uma razão elementar: computadores são capazes de imitar perfeitamente algumas das mais sofisticadas operações da inteligência humana, mas são inteiramente incapazes de enxergar qualquer significado naquilo que fazem. Daí porque a expressão “inteligência artificial”, quando se exige algum rigor terminológico, faz tanto sentido quanto “círculo quadrado” ou “flamenguista infeliz”. Com Kasparov, porém – todos sabemos –, a coisa é um bocado diferente.

De fato, o enxadrista russo mostrou sua superioridade em relação a Deep Blue não apenas quando dele ganhou, mas até mesmo, e talvez sobretudo, quando dele perdeu. Afinal, Kasparov sabia que perdia, mas Blue desconhecia que ganhava. Kasparov, mesmo em seu insucesso, era capaz de enxergar significado naquela realidade, e era precisamente por isso que sofria; aos olhos de Blue, fosse qual fosse o resultado, o mundo permaneceria sempre opaco, destituído de sentido. Ora, é precisamente aí que reside a singularidade da experiência humana: nós somos seres efetivamente racionais.

Naturalmente, a esta altura, qualquer sujeito, em especial um intrépido defensor do direito dos animais, poderá objetar que, se é verdade que as máquinas não têm consciência de seus atos e são, portanto, verdadeiramente irracionais, o mesmo não é válido para os outros animais que não o homem. E, então, aquilo que eu apresento aqui como apanágio exclusivo do ser humano seria, na verdade, uma dádiva comum a todos os bichos deste mundo de meu Deus. De fato, se entendermos por racionalidade a mera capacidade de se comunicar com os outros, de tomar decisões, de responder a comandos ou de realizar estimativas, então é óbvio que animais são, sem dúvida alguma, seres racionais. Qualquer sujeito que tenha um cachorro ou um gato em casa, por exemplo, poderá contar histórias fantásticas a respeito da esperteza e companheirismo de seus animais, por vezes até mesmo muito surpreendentes. Entretanto, é de algo muito mais profundo que falamos aqui. Quando velhos pensadores, séculos atrás, se dispuseram a definir o homem como um animal racional, o que eles procuravam indicar com estas palavras era algo muito mais relevante e extraordinário do que a mera sagacidade ou inteligência prática, que, é verdade, em grau maior ou menor, os outros bichos partilham conosco. O que se procurava indicar aí, em verdade, é que o homem é o único animal capaz de perscrutar sentido nas coisas que o cercam.

Com efeito, é claro que, em um sentido prosaico, animais irracionais têm consciência. Um cavalo e um leão percebem o mundo à sua volta, detectam ameaças, calculam ações. Não obstante, o fato é que, para um bicho, tal como para o Deep Blue, as coisas não têm significado: elas simplesmente são o que são. Pensemos, por exemplo, em uma casa na qual há dois cachorros que convivem há anos, e um dos dois falece. Evidentemente, em uma circunstância assim, o cãozinho sobrevivente irá ficar bastante deprimido e, eventualmente, poderá até morrer de tristeza. Ora, os cães percebem a morte e, diferente das frias máquinas que jogam xadrez, são também capazes de desenvolver sentimentos a partir das situações que vivenciam. No entanto, por mais trágica que seja a experiência da morte de um companheiro de lar, um cão jamais terá a habilidade de ultrapassar a mera dor sentida nesta experiência e enxergar um significado no que lhe aconteceu. Em suma, qualquer cachorro pode sentir uma profunda dor pela morte de um ente querido, mas nenhum cão, por mais esperto que seja, tem a capacidade de se perguntar por que existe a morte e o que ocorre após o término desta vida.

Eis aqui o ponto essencial. De fato, há um abismo gigantesco entre ter o simples poder de realizar ações práticas, mais ou menos inteligentes, e possuir a capacidade puramente teórica de questionar-se a respeito do mundo que nos cerca, procurando encontrar nele uma lógica interna e uma razão de ser. Só nós, seres humanos, somos capazes disso. Para todas as outras criaturas desta terra, como disse acima, as coisas são o que são; a realidade se impõe – dura, fria, indiferente. Para nós, ao contrário, o real é mistério, enigma, incógnita. Para nós, não é suficiente supor que as coisas se dão assim e não de outro modo. Do mais profundo de nosso ser, nós exigimos sentido, significado; nós aspiramos por perceber uma ordem no mundo, uma harmonia pré-estabelecida, uma estrutura fundante da realidade. O que separa o homem das outras criaturas, o que nos singulariza é, portanto, muito mais do que apenas um lugar um tanto mais privilegiado em um longo processo biológico evolutivo. O que possuímos de próprio é a potencialidade única de assumir perante o mundo não o comportamento indiferente das máquinas e dos objetos inanimados, tampouco a postura ingênua dos demais bichos, mas sim a atitude própria de seres que têm sede de sentido. Como bem afirmou o filósofo Blaise Pascal, “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota d’água, bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso.”

Tal atitude inquiridora, tal capacidade de questionar-se a respeito das coisas é o cerne da experiência humana especialmente porque, ao contrário do que pensaria uma mente um tanto superficial, isto não é privilégio específico de uma classe de homens iluminados. Com efeito, é um tanto evidente que nem todos os seres humanos têm vocação para se tornarem filósofos ou místicos. É claro que nem todos levam nossa capacidade de exigir sentido da realidade que nos cerca até às últimas consequências. No entanto, não há ser humano que deste poder não participe, em maior ou menor grau. Não há homem ou mulher adultos, por certo, que não tenham se questionado, ao menos uma vez na vida, a respeito da origem do mundo, da existência de Deus ou do sentido da vida. Questões deste tipo atordoam tão profundamente a alma humana que não há meios de delas fugirmos senão pelo esquecimento de nós mesmos e de nossa natureza. Como já se disse mais de uma vez, o ser humano é um animal metafísico e todo homem tem naturalmente em si o desejo de conhecer.

Aliás, se examinamos estes fatos elementares de um modo mais cuidadoso, somos imediatamente levados a crer que há, efetivamente, no interior de cada homem, um órgão especial, uma faculdade particular responsável por esta capacidade que temos de pôr o mundo diante de nós como incógnita. Tal capacidade, para ser honesto, muito dificilmente poderia ser reduzida ao nível do orgânico ou mesmo do físico – aqueles que o tentam fazer, é porque desconhecem a si mesmos. Quanto ao seu nome, pode-se chamá-la intelecto, pensamento, espírito. O fato é que, na medida em que é responsável por operar aquilo que há de mais fundamental em nós, aquilo que nos distingue de todos os outros entes que conosco transitam por este mundo, o espírito é muito mais do que um mero órgão de que dispomos; ele é nosso próprio eu. E é por isso, precisamente, que, muito antes de qualquer reflexão elaborada ou leitura de textos, a certeza que temos da existência de nosso espírito se impõe como uma realidade inquebrantável e primeira. A todo instante, por mais silencioso que o mundo esteja ao nosso redor, somos capazes de ouvir dentro de nós aquela voz que nos orienta, que conosco mesmo dialoga, que não se cala jamais. Há dentro de cada homem um eixo existencial que constitui a sua interioridade e que o permite exigir, tanto de si mesmo quanto daquilo que percebe ao seu redor, sentido, significado. Quantas vezes não nos pegamos discutindo intensamente conosco mesmos, ao mesmo tempo em que o silêncio sepulcral permanece na realidade exterior! Quantas vezes não guardamos conosco segredos, preconceitos, cismas e sandices que de nós mesmos só nós conhecemos! Quantas vezes não encenamos, conforme o ambiente, papéis sociais e temperamentos os mais diversos, mantendo somente para nossa consciência interna a nossa verdadeira singularidade! Quantas vezes nãos nos apanhamos fugindo de nós mesmos! Já animais e Deep Blue’s não têm vida interior. Por isso não pensam. Por isso não vêem o mundo como incógnita. Por isso, aos seus olhos, as coisas apenas são o que são.

Neste ponto, a tradição bíblica, em toda a sua riqueza particular, é bastante pertinente. Com efeito, ao fazerem alusão a este eixo existencial a que me refiro, a este recesso profundo da alma que geme dentro de nós, os autores sacros não usavam nem o termo espírito, nem o termo intelecto, nem o termo alma, mas sim a palavra “coração” . Em verdade, para os judeus, o coração não era, como para nós, um mero órgão físico do corpo ou mesmo, simbolicamente, o signo da afetividade e da sede dos sentimentos. Muito mais do que isso, o coração era o eu, o núcleo da personalidade, o centro de decisão onde o homem, do mais profundo de seu ser, para além de todos os ritos exteriores e papéis sociais, resolvia verdadeiramente unir-se ou não a Deus. Daí porque o Senhor é aquele que sonda os corações (I Samuel 16,7). Mais: sendo o coração aquilo que há de mais profundo no homem, é ele também o centro de sua vida moral. É aí, pois, que se realiza, no fundo de cada ser humano, a fatídica luta entre o bem e o mal, entre a retidão e o vício. Ora, na medida em que se tem isso em vista é que se entende o precioso conselho do sábio: “Guarda teu coração acima de todas as outras coisas, porque dele brotam todas as fontes da vida” (Provérbios 4,23). Assim também se entendem as duras palavras do Cristo: “Aquilo que sai da boca provém do coração, e é isso o que mancha o homem. Porque é do coração que provêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as impurezas, os furtos, os falsos testemunhos, as calúnias.” (Mateus 15,18b-19)

Percebe-se, neste corte, um dado que é essencial ao conhecimento de nós mesmos: quando se diz que o homem é um animal racional, não se está apenas afirmando que ele possui certas capacidades ou poderes específicos. O que se está a dizer que é o homem é um tipo de ser absolutamente diferenciado. Isto porque a racionalidade não é uma habilidade abstrata ou meramente formal. Ser racional não significa ser um computador orgânico; significa ter vida interior; significa ser capaz de ensimesmar-se e então realizar a fatídica pergunta: “Por quê?”. Em virtude da natureza mais íntima de nosso ser, cada um de nós não é apenas uma coisa, mas um eu; não apenas um algo, mas um alguém. Em suma, o fato de sermos seres racionais faz com que sejamos não apenas objetos, mas pessoas. E é por isso que é sempre tão perigoso quando nós preferimos nos embrutecer e nos entregarmos ao que há de mais animalesco e irracional. Com isso, não ferimos apenas talvez a normas moralistas ou padrões sociais de comportamento: ferimos a nós mesmos, nos despersonalizamos, nos coisificamos. É no fundo de nossas almas que se decide e se constitui o nosso eu. É no recesso oculto de nosso espírito, invisível a todo outro espírito humano, que nós construímos efetivamente nossa personalidade: ao elaborar nossos projetos de vida, ao estabelecer nossas prioridades existenciais, ao fugir das questões de consciência que nos afligem, ao perfazer as intenções que moldam desde dentro as ações que tomamos. Aí apenas é que realmente demonstramos possuir o precioso dom da liberdade. É nisto e tão-somente nisto que consiste a imagem de Deus presente em nós de que fala a Escritura (Gênesis 1,27). Esta é a centelha divina em nós, aquilo porque nossa alma se torna um espelho do Criador, que é Espírito e tem Coração também. Eis a luz do Verbo que ilumina todo homem (João 1,9).

Todas essas que enunciei aqui são, evidentemente, verdades bastante elementares, proclamadas por sobre os telhados desde tempos inauditos, mas que andam incompreensivelmente esquecidas em nossa era. Verdades que se apreendem observando com cuidado a trágica derrota de Garry Kasparov.

Pedro Ribeiro é graduado em filosofia pela UERJ e trabalha como professor da disciplina nos âmbitos do Ensino Médio e de pré-vestibular.

NOTA:

[1] Para aqueles que quiserem conhecer os detalhes do confrontohttp://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/revelado-foi-erro-no-computador-deep-blue-da-ibm-que-fez-vencer-kasparov-em-1997-14349363. Aliás, algo que reforçou para mim mesmo o caráter em boa medida projetivo da lembrança que tenho foi a rápida pesquisa que tive de fazer para lembrar detalhes do evento, tais como o seu ano de ocorrência, por exemplo. É que, nesse processo de pesquisa, descobri que os fatos não haviam ocorrido exatamente como deles me lembrava. De todo modo, como a história permanece elucidativa para o que me proponho aqui, que seja.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta,  em 22 de Janeiro de 2016.

A complementaridade entre razão e religião no âmbito democrático e os desafios do mundo contemporâneo: dez anos do debate Habermas-Ratzinger, por Tarcísio Amorim

Filosofia | 12/02/2015 | | IFE RIO

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No inverno de 2004, dois renomados pensadores da atualidade – o filósofo Jürgen Habermas e o teólogo Joseph Ratzinger – reuniram-se para um debate na Academia Católica de Baviera, em Munique, na Alemanha. Com o título Dialética da Secularização: sobre Razão e Religião, o diálogo abordou temas como o secularismo político, direitos humanos, bioética e terrorismo religioso.

De um lado, o filósofo buscou conciliar a defesa de fundamentos seculares para o Estado democrático com a possibilidade de acomodação dos argumentos religiosos para fins deliberativos. Em sua visão, a democracia não dependeria de nenhuma base transcendental para justificar-se, mas as razões religiosas poderiam – e deveriam – contribuir para o debate público por meio de conceitos e imagens de mundo que viriam a ser apropriadas pela razão secular, especialmente através da filosofia. De fato, Habermas sublinhou que, no Ocidente, o entrelaçamento das tradições cristãs com a metafísica grega influenciou as intuições morais com conceitos como o de responsabilidade, despojamento, justificação e recomeço, além da própria crença na semelhança do homem com Deus, cuja transposição para a noção de igual dignidade ainda preserva seu valor nos dias atuais[1].

Como um filósofo político liberal, em seu sentido amplo, Habermas acredita que a democracia se baseia no exercício livre de uma razão que questiona seus próprios fundamentos, estabelecendo redes comunicativas das quais o consenso político em torno do melhor argumento deve emanar, depois de sucessivas transformações nas percepções e interpretações pessoais da realidade. Nesse sentido, em vista de sua igualdade jurídica, os argumentos morais provindos de indivíduos ou grupos religiosos devem ser acolhidos, pois “a neutralidade ideológica do poder do Estado que garante as mesmas liberdades éticas a todos os cidadãos é incompatível com a generalização política de uma visão de mundo secularizada”[2].

Por sua vez, o teólogo Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (hoje Papa emérito Bento XVI), enfatizou a necessidade de princípios normativos de direito que evitem tanto o extremismo religioso quanto um cientificismo desprovido de restrições morais. Igualmente, seria preciso prevenir o jogo de poder das maiorias, que na história já mostraram ser capazes de usar de instrumentos democráticos para oprimir as minorias. Assim, além de um exercício de mútua purificação por meio do confronto de razões religiosas e seculares, Ratzinger defendeu o reconhecimento da existência de valores intrínsecos “que decorrem da essência do ser humano e que, por esse motivo, são invioláveis em todos os detentores dessa essência”[3].

Embora tivesse sublinhado que tal princípio ainda encontrava sua expressão nos chamados direitos humanos – ininteligíveis sem o pressuposto de uma concepção universalista do homem que envolva a razão natural – Ratzinger, aproveitando-se das reflexões de Habermas e de seu pragmatismo, preferiu utilizar-se de sua lógica deliberativa para ressaltar o fato de que a visão democrática secular não pode ser generalizada, mas deve engajar-se no diálogo com as perspectivas religiosas. De fato, além das interpretações cristãs que continuam a influir no Ocidente, as grandes culturais do mundo (islâmica, indiana, africana e ameríndia) permanecem avançando intepretações teístas da realidade. Uma vez que a democracia pressupõe o pluralismo e a interculturalidade, seria preciso incluir todas essas perspectivas “na tentativa de uma correlação polifônica, na qual elas próprias possam abrir-se à complementaridade essencial de razão e fé” [4].

A ocorrência desse encontro entre Habermas e Ratzinger em 2004 foi oportuna por vários motivos. Dentre eles, o fato de que os fluxos imigratórios entre o Oriente o Ocidente vieram a reforçar o questionamento das bases seculares do pensamento liberal europeu. Com efeito, um mês após o 11 de Setembro, em um discurso proferido por ocasião do Prêmio da Paz da Associação de Editores Alemães, Habermas pontuou que o desenvolvimento de uma linguagem comum que reconhece a fluidez das fronteiras entre razões seculares e religiosas é fundamental para que a sociedade possa ir “além do violento silêncio dos terroristas e dos mísseis” e evitar “a batalha das culturas” [5]. De acordo com o filósofo, a visão do processo de secularização como um jogo de soma zero entre as forças progressistas da ciência e as correntes conservadoras da religião “não se enquadra em uma sociedade pós-secular que busca adaptar-se à contínua existência de comunidades religiosas” [6]. Ao contrário, a secularização para Habermas é um processo dialético no qual a atitude racional permanece autônoma, mas sem desprezar as perspectivas oferecidas pelas razões religiosas.

As reflexões sobre a secularização no Ocidente também ganharam alento devido ao processo de integração da Comunidade Europeia. O papel da religião para a construção de sua identidade cultural mostrava-se uma questão controvertida, e a rejeição à proposta de menção ao cristianismo na Carta Europeia naquele mesmo ano de 2004 não esvaziou o debate. Ao receber o Prêmio São Bento para a Promoção da Vida e da Família em 2005, Joseph Ratzinger afirmou que a oposição a tal referência se relacionava com o contexto cultural do Ocidente, que vinha privilegiando uma perspectiva positivista, e por tanto, antimetafísica, na qual as questões sobre Deus e sobre os fins últimos da vida humana não têm lugar. Para o teólogo, esta filosofia não expressaria a razão humana em sua totalidade, constituindo-se como o verdadeiro obstáculo para a união entre o Ocidente e as grandes civilizações não cristãs, especialmente aquelas formadas no seio do islamismo [7]. Vale recordar que em 2011, durante a presidência Húngara da União Europeia, um evento reunindo lideranças políticas dos países membros foi organizado na cidade de Gödöllo, região metropolitana de Budapeste, em vista da reflexão sobre a cooperação entre cristãos, judeus e muçulmanos na Europa e no mundo. O então vice-primeiro-ministro, Zsolt Semjén, sublinhou que a separação entre Igreja e Estado não exclui as relações entre religião e sociedade e que “o ser humano está aberto para os infinitos horizontes da existência, levantando questões que vão além das coisas visíveis, ansiando por explorar a vida última” [8].

Hoje, dez anos depois daquele encontro, as mesmas questões que delinearam as diretrizes do debate ainda se fazem presente nas nossas sociedades democráticas. Em meio à relativização dos discursos morais que permeia o âmbito do Direito, os dois autores apresentam uma perspectiva comum quanto ao papel da razão para o estabelecimento de normas democráticas: a rejeição do chamado “contextualismo”, como defendido pelo filósofo Richard Rorty, no qual definições de verdade e de justiça são reduzidas aos resultados de práticas culturais de justificação. Mesmo para Habermas, que situa as razões religiosas e seculares em igualdade no processo deliberativo, a justiça não é um arranjo nacional ou comunitário, mas é fruto de um processo de aprendizagem no qual a razão se expressa orientada pela verdade, transcendendo os contextos locais. Na percepção do filósofo, a concepção de um progresso sócio-cultural como resultado do desenvolvimento moral pela razão seria, a princípio, independente da religião, mas acabaria por ter de confrontar as razões transcendentes que desafiam suas bases durante o exercício deliberativo.

Nesse sentido, a lacuna entre o pensamento do filósofo para com a teologia de Ratizinger – embora persistente – acaba por se estreitar no resultado do processo democrático – se não na forma, ao menos no conteúdo. Pois, a partir do momento em que as razões religiosas (metafísicas) questionam os fundamentos profanos da democracia, elas introduzem uma crítica à forma do modelo de Habermas, crítica que o próprio sistema democrático – como esboçado pelo filósofo – teria que admitir.

Em todo o caso, tanto um quanto o outro endossam o potencial racional dos argumentos religiosos e metafísicos. Para Ratzinger, trata-se também de reconhecer que os direitos humanos podem estar em risco a partir do momento em que já não se define mais o que é o homem, tendo em conta sua origem e seu fim. Em Fé, Verdade e Tolerância, o teólogo reflete sobre esse ponto a partir do embate entre liberdade e solidariedade na demanda de alguns setores do movimento feminista em prol da autonomia do corpo. Como explicita, o feto constitui um ser-de que, por sua vez, reclama um ser-para (a mãe) a fim de se desenvolver. Mesmo após o nascimento – ainda que seja entregue a outro lar – ele continuará a depender dessa figura antropológica, assim como o adulto deverá também se reportar aos outros, como um ser em relação que é. A liberdade, então, abrange não somente direitos negativos (aquilo que podemos fazer sem a interferência de outros), mas também direitos positivos (aquilo que devemos fazer em vista da própria existência pessoal e comunitária). Dessa forma, contraponto a demanda feminista em favor do livre uso do corpo, Ratzinger afirma que a liberdade do homem apenas pode constituir-se na coexistência ordenada de liberdades, que acarreta, por si mesmo, a referência ao outro, pois toda subsistência e desenvolvimento da vida humana se apoia na interdependência das relações entre liberdade e solidariedade. Nos termos do teólogo: “se a verdade sobre o homem não existe, então ele também não possui nenhuma liberdade. Somente a verdade liberta” [9].

Como se percebe, o debate sobre razão e religião é fundamental em uma época em que novas demandas culturais reivindicam uma redefinição do lugar da religião nas democracias contemporâneas. De modo particular, ele se faz cada vez mais importante no Brasil, onde a percepção da organização política de grupos religiosos e a persistência de símbolos cristãos na esfera pública têm estado em pauta. Por um lado, como destacou Habermas, os cidadãos que partem de uma visão do mundo secularizada “não podem nem contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos concidadãos religiosos o direito de contribuir para os debates públicos servindo-se de uma linguagem religiosa” [10]. Por outro, os cidadãos que avançam razões religiosas devem apresentá-las em uma linguagem racional que, sem perder seu caráter transcendente, seja acessível aos outros participantes do processo deliberativo.

Como ressalta a filósofa irlandesa Maeve Cooke, essa universalidade não deve referir-se ao tipo de linguagem empregada, na tentativa de reduzir os argumentos religiosos a uma razão secular, mas à própria racionalidade do processo comunicativo, pois – conforme a própria lógica habermasiana – quando os argumentos são confrontados, o resultado de um consenso não resulta necessariamente na conversão à perspectiva do outro, mas em uma nova perspectiva, diferente de ambas, na qual as razões metafísicas podem seguir desempenhando um papel fundamental [11]. Nesse contexto, as reflexões de Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger podem ser úteis, não tanto para questionar o ideal democrático, mas para assegurar seus próprios fundamentos, prevenindo-se o relativismo que atenta contra a dignidade humana, bem como o extremismo religioso que se fecha ao diálogo racional.

Por fim, suas ideias também podem trazer luz sobre o tenebroso contexto de violência religiosa no Iraque e em outras partes do mundo. Com a ascensão do Estado Islâmico e o surgimento de um novo conflito internacional, pode-se questionar como um diálogo público seria capaz de reconciliar visões tão díspares acerca do papel da religião e do Estado na vida civil. Sobre esse ponto, Razinger sublinha que, assim como não há um discurso homogêneo acerca do secularismo político no Ocidente, também a esfera cultural islâmica se divide quanto ao tema, com posturas que vão desde “o absolutismo fanático de um Bin Laden” até aquelas que estão abertas a uma racionalidade tolerante [12].

Como demonstra Abdulaziz Sachedina, no que diz respeito aos direitos humanos o pensamento no mundo muçulmano tem se divido entre o tradicionalismo legal dos defensores da Declaração do Cairo (que contempla somente os seguidores da Sharia), e as abordagens teológico-políticas que levam em conta a racionalidade prático-filosófica na formulação da jurisprudência islâmica (fiqh), bem como sua contingência em termos de cultura, tempo e espaço. Acadêmicos como Muḥammad al-Ghazālī, Yūsuf al-Qarāḍāwī, Aytollah Jawādī Āmolī e Allāma Muḥammad Taqī Jafarī Tabrīzī, entres outras autoridades sunitas e xiitas, vêm defendido uma visão universalista de Direitos Humanos, buscando um diálogo que permita o reconhecimento das origens teológicas da concepção de Dignidade Humana, explicitada na Declaração da ONU, por meio de uma ética filosófica inclusivista e multicultural [13].

Como bem pontou Maeve Cooke, um secularismo excludente não apresentaria nenhuma consistência para o tratamento das questões levantadas pelo islamismo político, ou pela constante imigração para o Ocidente de povos cujas visões de mundo são fortemente marcadas pelo senso religioso – e para os quais a experiência secular ocidental é amplamente remota ou completamente estranha. Ao contrário, a inerente abertura do processo de aprendizagem, combinada com o princípio de autonomia política que permite que cada indivíduo busque a autorrealização em concordância com os próprios valores, sugere que é tempo de reconsiderar os argumentos em prol de fundamentos exclusivamente seculares da autoridade política [14]. Dessa forma, razão e religião devem caminhar juntas, aparando-se e aperfeiçoando-se mutualmente, provendo novos discursos de moralidade pública e atualizando as fontes ético-jurídicas do Estado democrático.

Dez anos após o encontro de Munique, o diálogo entre Habermas e Ratzinger ainda repercute no mundo acadêmico, e suas reflexões se fazem cada vez mais atuais em meio ao ressurgimento religioso testemunhado não só nos países orientais, mas também em partes da Europa, África e América Latina. A foto acima mostra o Parlamento da República da Polônia, onde uma moção destinada a remover o crucifixo sob o argumento da laicidade foi derrubada em 2013 pela Corte de Varsóvia. A decisão converge com julgamento da Corte de Estrasburgo, sobre a exposição de crucifixos nas escolas publicas italianas em 2011, levando em conta aspectos da cultura nacional. Na Ucrânia, o levante que derrubou o governo de Yanukovich – embora diversificado em sua natureza – foi marcado por uma forte presença do clero, além de diversas manifestações religiosas em sítios públicos.

Como se percebe, a ideia de secularização como um processo linear ao longo da história destoa tanto das recentes reflexões acadêmicas acerca da pós-secularidade quanto da realidade sócio-política das democracias contemporâneas. Nesse sentido, o debate Habermas e Ratzinger torna-se significativo ao ilustrar o encontro da reflexão filosófica com a razão religiosa em prol de uma sociedade universalmente solidária e de uma cultura política legitimamente democrática.

[1] HABERMAS, Jürgen. Fundamentos pré-políticos do Estado de direito democrático?. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 50.
[2] Ibidem, p. 57.
[3] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 68.
[4] Ibidem, p. 90.
[5] HABERMAS, Jürgen. Faith and knowledge. 2001. Disponível em: . Acesso em: 4 jan. 2014.
[6] Ibidem.
[7] RATZINGER, Joseph. La última conferencia de Ratzinger: Europa en la crisis de las culturas. 2005. Disponível em . Acesso em: 4 jan. 2014.
[8] Hongaars Voorzitterschap benadrukt belang van vrijheid van religie (en). Europa Nu, 2 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 4 jan. 2014.
[9] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: O Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2007, p. 222-232.
[10] HABERMAS, Jürgen. Op. Cit. 2007, p. 57.
[11] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 224-238.
[12] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 90.
[13] SACHEDINA, Abdulaziz. Islam and the Challenge of Human Rights. New York: Oxford University Press, 2009.
[14] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 233-234.

Tarcísio Amorim é doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fonte: http://www.dicta.com.br/a-complementaridade-entre-razao-e-religiao-no-ambito-democratico-e-os-desafios-do-mundo-contemporaneo-dez-anos-do-debate-habermas-ratzinger/