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Panteísmo, ateísmo e ciência

Opinião Pública | 31/07/2019 | | IFE CAMPINAS

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Em um artigo anterior (A Ciência Contemporânea e a Fé), publicado nesta mesma página 2 no dia 26/06/2019, começamos a esboçar as consequências teóricas que decorrem da recusa em admitir – em face das descobertas da ciência moderna – a existência de um Deus transcendente ao universo, livre e criador de tudo o mais. Se o surgimento do universo por si mesmo a partir do nada absoluto é uma contradição (com efeito, como aquilo que não é nada daria a si mesmo o ser? Ademais, o nada absoluto é algo contraditório, impensável), resta a possibilidade de que ele seja eterno. Examinemos as consequências disso em face dos dados atuais da ciência. As teses aqui expostas foram desenvolvidas no instigante livro Comment se pose aujourd’hui le problème de l’existence de Dieu, de Claude Tresmontant.

Em primeiro lugar, assumir hoje que o universo seja eterno sem mais não é uma possibilidade, pois o suprimento de hidrogênio nele existente é finito e a transformação deste elemento em hélio é irreversível, pelo menos em quantidades relevantes. Portanto, para sustentar de modo consistente a eternidade do universo, é necessário assumir que seu desenvolvimento é cíclico e que esses ciclos jamais tiveram começo, e que jamais terão fim.

Uma tal tese foi defendida na história do pensamento pelas antigas teosofias indianas e por alguns filósofos pré-socráticos, notadamente Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso: para eles, o próprio universo é o Ser, a Divindade, portadora de toda a sabedoria e todo o poder (o nome disso é panteísmo). É também comum a esses pensadores apresentarem-se como portadores de um saber de ordem sobrenatural, que ultrapassaria infinitamente a capacidade de compreensão dos reles mortais. A pergunta que então deixamos no ar é a seguinte: cientistas modernos sérios, com verdadeiro compromisso de compreender a realidade, estariam dispostos a assumir hoje, diante da imagem do universo descoberta por suas respectivas ciências, uma tese de ordem mística como essa?

Uma vez que o método científico, quando levado a sério, só nos permite tirar conclusões amparadas por sólidas evidências empíricas, e que estas apontam cada vez mais no sentido de que as transformações presentes no universo são de caráter irreversível, torna-se difícil sustentar essa opinião sem extrapolar as evidências disponíveis. Resta, contudo, para quem deseja se manter fiel à ciência e ao mesmo tempo fazer profissão de fé no ateísmo, o caminho escolhido pelos antigos atomistas gregos: Leucipo, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Para esses autores, o universo é composto de átomos eternos e indestrutíveis, que estariam perpetuamente em movimento e cuja combinação – que se daria ao acaso – seria a causa da existência de todos os entes complexos. Esse posicionamento implica, diante dos dados atuais da ciência, consequências que o colocam numa posição insustentável. Examinemo-las brevemente.

Do ponto de vista da organização dos corpos, o acaso é incapaz de explicar a formação de um mero aminoácido. Sobre isso, os biólogos são hoje unânimes. Se assim é, forçosamente não poderá explicar o surgimento de um organismo vivo vegetal, menos ainda o de um organismo vivo animal e, muito menos ainda, o da inteligência humana. Mas isso não é tudo: uma teoria como o atomismo deixa justamente de responder às perguntas fundamentais da filosofia (pois aqui se trata de uma investigação filosófica, visto que se debruça sobre a estrutura última da realidade): quais são as causas do movimento e do ser?

Ora, o fato é que na história do pensamento há uma solução bastante sólida para essas perguntas: a metafísica bíblica, segundo a qual o universo é criado por um Deus onipotente, inteligente e absolutamente livre. Esta crianção não se daria “por necessidade”, mas pela exclusiva bondade de Deus, que, como Ser Infinito e Onipotente, não necessita de nada além de si mesmo.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é professor e membro do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 31 de Julho de 2019, página A2 – Opinião.

A ciência contemporânea e a fé

Opinião Pública | 26/06/2019 | | IFE BRASIL

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É hoje predominante em nosso ensino básico a ideia de que as descobertas da ciência moderna são incompatíveis com a fé num Deus único, transcendente, onipotente e criador de todo o universo. Dependendo do público ao qual os defensores dessa tese se dirigem, os argumentos levantados a favor dela variam desde a dramatização forçada do caso Galileu até a constatação de que surgem a cada momento no universo novas partículas, sem que possamos determinar a causa desse surgimento. Não pretendo examinar aqui o caso Galileu, mas apenas o segundo argumento, que exige um pouco de reflexão. Ele pode ser formulado do seguinte modo: se no universo constatamos fenômenos sem causa, então o próprio universo não tem uma causa; ora, constatamos nos universo fenômeno sem causa, portanto, o próprio universo não tem uma causa. Vejamos quais são os pressupostos desse argumento.

Em primeiro lugar, quem proclama o incessante progresso da ciência não cansa de admitir que esta faz novas descobertas constantemente. Se, pois, no atual estado da ciência não podemos determinar a causa de certos fenômenos, nada impede que venhamos a descobri-la num futuro não muito distante. Somente isso já é suficiente para prejudicar a força do argumento. Mas ainda há mais: as novas partículas que surgem no universo surgem dentro da ordem do universo e não a partir do nada absoluto. Quem afirma a possibilidade de o ser surgir a partir do nada absoluto não está defendendo uma tese de ciência natural, mas uma tese filosófica, uma tese metafísica.

Ora, a própria inteligência humana é incapaz de pensar a ideia de um nada absoluto, pois a ideia de nada nos é acessível apenas por meio da negação de algo existente para, ao mesmo tempo, afirmar outra coisa existente, ou, dito de outro modo, só nos é acessível o nada relativo. Para compreender o que digo, tomemos uma figura geométrica que não seja um círculo. Ao negar que ela seja um círculo, estou automaticamente afirmando que ela é outra figura geométrica, um triângulo ou um retângulo, por exemplo. Mas se afirmo que se trata de um círculo quadrado, estou afirmando um nada absoluto, algo impensável, um absurdo. Ora, a ciência nos mostra que o universo em que vivemos tem idade e que, desde sua origem, vem se desenvolvendo na direção de formas cada vez mais complexas. Isto significa que, no momento de sua origem, ele deveria ter uma forma extremamente simples e compacta, sendo perfeitamente concebível que um tal compacto não tenha existido desde sempre. Contudo, uma coisa é negar a existência eterna do universo, outra bem diferente é negar a existência de todo e qualquer ser (o que equivaleria a afirmar o nada absoluto, o absurdo completo). Esta última afirmação, se defendida por pessoas supostamente dotadas de consciência científica constitui o que se costuma chamar de um “tiro no pé”, pois equivale a afirmar o completo absurdo como origem e fundamento último do inteligível. Trata-se, de qualquer maneira, de uma afirmativa que pesquisa científica nenhuma conseguiria jamais provar, uma vez que as ciências naturais nos fornecem explicações sobre a sucessão de fenômenos que ocorrem num universo realmente existente e não da passagem de um não universo para o universo.

Restaria aos cientificistas afirmar que o universo é eterno e que deve-se dizer que seu desenvolvimento é cíclico. O problema é que, quando alguém o afirma, está supondo de modo implícito que a matéria é viva e inteligente; ou, dito de outro modo, que numa massa de moléculas de hidrogênio estava “escondida” — e bem escondida —a “programação” de todos os eternos ciclos que o universo deveria percorrer. Surge então uma pergunta que, novamente, extrapola os limites da ciência: por que essa matéria eterna, inteligente e autossuficiente “decidiu” se engajar numa eterna e reiterada aventura cósmica? Examinaremos as consequências dessa pergunta em outra oportunidade.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é professor e membro do IFE Campinas.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, edição 26/06/2019, página A2.

[RESENHA] Além do embuste, aquém da qualidade – por Luiz Felipe Estanislau do Amaral

Política e Sociologia | 09/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Dados técnicos: Alan Sokal, Beyond the Hoax: Scien-ce, Philosophy and Culture. Oxford University Press, 465 págs.

 

A história é famosa, ou pelo menos foi durante um tempo: em 1996, Alan Sokal, um físico da Universidade de Nova York, enviou para uma revista acadêmica de destaque um artigo com páginas e páginas de besteirol pós-moderno sem sentido, cheio de jargões e expressões de significado pouco preciso, com pitadas de Derrida e Lacan, elogios aos editores da revista, um contexto tosco de interdisciplinaridade e, obviamente, nenhuma contribuição para o conhecimento humano. Surpreendentemente ou não, o artigo foi publicado. Não é necessário dizer que meses depois da publicação, exposta a farsa, os editores da revista-alvo, a Social Text (isso mesmo, “Texto Social”), ficaram um tanto quanto bravos, enquanto Sokal ficou um tanto quanto famoso (talvez o máximo que um especialista em mecânica estatística possa ficar). Em Beyond the Hoax: Science Philosophy and Culture, Sokal promete, como diz o título, ir além do embuste. Não chega muito longe.

O livro se divide em três partes. Na primeira, The Social Text Affair, de longe a mais interessante, Sokal revisita o caso que lhe deu fama, além de tecer comentários sobre o pós-modernismo e sua relação com a ciência. Na segunda, Science and Philosophy, de longe a mais útil para o leitor, Sokal passeia pela filosofia da ciência e defende suas posições sobre o assunto. Na terceira, Science and Culture, de longe a mais desastrada, Sokal estraga um livro que, até então, rendia boa leitura.

Infelizmente, o livro começa no seu pico. O primeiro capítulo, The Parody, Annotated é a reimpressão do artigo publicado na Social Text, com exaustivas notas de Sokal sobre sua escrita, sobre a veracidade (e até mesmo a inteligibilidade!) dos seus parágrafos e sobre a construção do seu título: Transgressing the boundaries: Towards a transformative hermeneutics of quantum gravity (Transgredindo as fronteiras: Rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica), um clássico instantâneo. Entretanto, é preciso que fique claro que não são apenas as piadas que trazem qualidade ao capítulo: as notas de Sokal sobre a construção do artigo jogam luz em problemas sérios pelos quais as humanidades passam atualmente. O autor dá exemplos e exemplos de raciocínios logicamente improcedentes, de definições pouco precisas (propositadamente, talvez), da transposição incorreta de conceitos de uma área do conhecimento para outra etc.

Mas uma vez observado o embuste, fica a impressão de que há em Sokal um lado “espírito de porco”. Entretanto, parece muito defensável a posição segundo a qual, em determinadas ocasiões, um espírito de porco é necessário. E no caso de Sokal, ou melhor, de universidades assoladas pelo relativismo, desconstrucionismo etc., um desses espíritos é de fato necessário. Grande decepção é saber, nos capítulos seguintes, que a motivação de Sokal é política: combater tendências intelectuais “inimigas dos valores e do futuro da esquerda” (página 95). Deve haver um ditado sobre fazer a coisa certa pelos motivos errados…

Contudo, pelo menos é nisso que gosto de acreditar, as motivações políticas não tiram o valor das ações de Sokal, da mesma forma que sua confissão não tira o valor da primeira parte do livro. No quarto capítulo, por exemplo, o autor discorre sobre os science studies, uma área do conhecimento cujos proponentes pretendem explicar a evolução do conhecimento científico por meio de fatores sociais e incentivos intrínsecos aos cientistas, sendo a busca pela verdade algo secundário. E é a partir de tal premissa que se chega à necessidade de uma ciência livre de preconceitos sociais como o machismo. É com muita delicadeza que Sokal expõe os problemas de uma tal visão de ciência.

De forma geral, não há muito conteúdo na primeira parte do livro, mas sua leitura ainda vale pela crítica às tendências pós-modernas nas humanidades e pela hilária leitura de Transgressing the Boundaries. A segunda parte, Science and Philosophy, conserta esse defeito específico da primeira.

Science and Philosophy tem dois capítulos: Cognitive relativism in the philosophy of science e Defense of a modest scientific realism. O primeiro deles é o que torna o livro mais do que a mera revisão de uma situação engraçada ocorrida anos atrás. O capítulo busca entender o fundamento de um vício intelectual da atualidade: a noção de relativismo cognitivo, isto é, a noção de que afirmações factuais objetivas sobre o mundo não são passíveis de serem classificadas como verdadeiras ou falsas, a idéia de que uma teoria é verdadeira para determinado grupo de pessoas ou dentro de um contexto específico. Com isso, Sokal também introduz o leitor em temas atualmente em debate na filosofia da ciência.

Nesse texto, fica patente uma das grandes vantagens do estudo sério e dedicado das ciências exatas. Sokal é muito claro em suas definições e extremamente consciente dos limites dos seus argumentos, algo que torna o capítulo didático e confere-lhe um tom de honestidade intelectual muito forte. De modo muito interessante, nos capítulos finais do livro, nos quais trata de questões culturais, políticas e religiosas, as definições de Sokal perdem precisão e os argumentos sérios perdem espaço para piadinhas. Mas força é convir que Cognitive relativism in the philosophy of science faz um trabalho sério ao rejeitar posições epistemológicas extremas como o solipsismo e o relativismo, e aborda com clareza certas questões da filosofia da ciência. Em um tempo em que o gênero popular science toma de assalto as listas de best-sellers, a idéia de popular epistemology ganha muito valor.

Fecha a segunda parte do livro um capítulo sobre duas lutas: uma entre os que acreditam no conhecimento científico e aqueles que não acreditam, e outra entre diferentes visões do conhecimento científico. Quanto à primeira, não há nada que não esteja presente nos capítulos anteriores; quanto à segunda, o autor identifica diferentes meios de entender a ciência. Sokal expõe, por exemplo, as vantagens e desvantagens do realismo científico, opondo-o à visão instrumentalista, que também é criticada. Ao final, fica a defesa de um “modesto realismo científico”, que pretende entender como o mundo é de fato, mas que compreende que tal empreitada possui muitos obstáculos e pode nunca chegar a alcançar plenamente seu objetivo. Assim como o capítulo anterior, este constitui leitura interessante e útil.

Mas o que há de interessante e útil no livro pára na modesta defesa do realismo científico. A última parte de Beyond the Hoax não passa de um espaço para Sokal dar suas opiniões sobre política e religião, nada mais. Ao ponto, inclusive, de deixar o leitor imaginando o que ocorreu com o capítulo sobre futebol (para ser perfeitamente honesto, contudo, devo avisar que há uma nota de rodapé mencionando a existência de David Beckham e uma ou outra metáfora sobre baseball ao longo dos capítulos).

No primeiro capítulo da terceira parte, por exemplo, Sokal tenta estabelecer a relação entre o pós-modernismo e as pseudociências. Depois de definir convenientemente tanto um quanto o outro termo, ele parte para dar exemplos abundantes de como os dois fenômenos caminham juntos e presenteia o leitor com cinqüenta páginas sobre as relações entre o pós-modernismo e as pseudociências na enfermagem e no nacionalismo hindu. Mas ao menos Sokal admite que não foi capaz de dar os exemplos abundantes que imaginou de início. Portanto, ele parte para o próximo alvo: as religiões; porque para Sokal as religiões são pseudociências e ele faz questão de demonstrá-lo no apêndice do capítulo oito (mais precisamente na nota de rodapé número 274). Contudo, deve-se supor que o físico não faz um trabalho razoável ao incluir as religiões em uma definição de pseudociência que ele próprio cunhou.

Logo em seguida, em Religion, politics and survival, Sokal volta a atacar as religiões, mas dessa vez misturando o assunto com política e tomando o cuidado de advogar um melhor entendimento de seus mecanismos. O motivo é simples: os EUA são um país extremamente religioso e a esquerda americana não pode ignorar esse fato para colocar em prática sua agenda progressiva. É nesse ponto que ficam claros os elogios que o livro recebe de Noam Chomsky na contracapa.

Obviamente, não se trata de criticar Sokal por suas idéias sobre política ou religião. Tampouco é o caso de criticá-lo por incluir esses assuntos em um livro sobre ciência: para o autor, suas visões sobre religião e política estão relacionadas ao lugar que ele acredita que a ciência deve assumir na sociedade e ele argumenta nesse sentido. Entretanto, fica a impressão de que o caso da Social Text não é o embuste ao qual o título se refere. Ao tratar de política, Sokal comete os mesmos erros dos humanistas que critica, fazendo uso de conceitos sem significado preciso (não é possível que alguém que reclame do uso incorreto de “linearidade” use o termo “capitalismo” acreditando que está se referindo a algo bem demarcado). E ao tratar de religião, Sokal não vai além da leitura da Bíblia. Mas, em retrospecto, devemos lembrar que a grande motivação do caso da Social Text foi política.

Um último comentário se faz necessário, mas não sobre o conteúdo do livro. Os capítulos que compõem Beyond the Hoax são, em sua grande maioria, ensaios publicados em livros e revistas diferentes, mas todos sobre assuntos próximos. Infelizmente, isso torna o livro um tanto quanto cansativo e repetitivo. Existem citações e definições repetidas, além de, inclusive, um parágrafo praticamente idêntico em dois capítulos diferentes. Contudo, tais repetições, para o leitor paciente, não chegam a estragar a leitura. Pelo menos a leitura das primeiras partes do livro.

Resenha publicada na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 2, Dezembro de 2008.

 

[RESENHA] Caçadores de mitos (por Marcio Antonio Campos)

História | 05/11/2016 | | IFE BRASIL

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LIVRO | Dados técnicos: Ronald Numbers (org.), Galileo goes to jail and other myths on science and religion. Harvard University Press, 2009, 302 pp.

No começo de 2009, enquanto aguardava a divulgação do resultado do vestibular da Universidade Federal do Paraná, fiz um teste: abordei alguns vestibulandos e perguntei o que eles tinham aprendido sobre Galileu Galilei no ensino médio ou no cursinho. Apenas um adolescente se lembrava de algo: que o italiano tinha sido perseguido por afirmar que a Terra era redonda. Desde então não faço mais esse tipo de enquete, até porque a Harvard University Press lançou uma coletânea abrangente das respostas que inevitavelmente sairão da boca de vestibulandos, professores, jornalistas e “intelectuais”: é Galileo goes to jail and other myths on science and religion, organizado por Ronald Numbers.

A relação entre ciência e religião é um dos temas mais importantes do século XXI, ao menos na metrópole, onde a cada ano são lançados inúmeros livros sobre o assunto e organizam-se debates televisivos em universidades envolvendo gente como Michael Shermer, Dinesh D’Souza, Richard Dawkins e John Lennox (basta procurar no YouTube). Por aqui, o mercado editorial ignora solenemente autores como Karl Giberson, Kenneth Miller, Ian Barbour e John Polkinghorne (apenas um livro de cada um desses dois últimos autores recebeu edição brasileira), enquanto publica a rodo as obras de ateístas militantes, fazendo à sensatez uma única concessão ao ter lançado A linguagem de Deus, de Francis Collins. Como conseqüência, por pouco ler e muito repetir, o cérebro dos “formadores de opinião” secou a ponto de perpetuar irrefletidamente os mitos do livro de Numbers, apesar das evidências contrárias – que não são poucas.

Os 25 ensaios – escritos por 12 ateus ou agnósticos, 5 protestantes tradicionais, 2 protestantes pentecostais, 1 católico, 1 judeu, 1 muçulmano, 1 budista e 2 autores com “um lado espiritual independente de religiões”, como dizem no Orkut – estão ordenados cronologicamente, iniciando com o surgimento do Cristianismo e terminando com os debates sobre o criacionismo e a secularização da cultura ocidental moderna. Isso significa que o desfile de cérebros parte de Agostinho, com o seu De Genesi ad litteram, e passa por Avicena, Giordano Bruno, Copérnico, Descartes (descrito como “o mais incompreendido dos filósofos”), Newton, até chegar a Darwin (nada menos que 9 dos 25 mitos abordam a teoria da evolução) e Einstein – sem falar, claro, de Galileu, a cujo respeito foi lançado, também este ano, um livro muito completo sobre seu processo inquisitorial: Galileu, pelo copernicanismo e pela Igreja, de Annibale Fantoli.

O objetivo do livro não é defender nenhuma religião em especial – sequer tenta defender a religião em si: um dos ensaios questiona a “lenda piedosa” sobre uma suposta reconversão de um Darwin moribundo, e outro desmente a crença de Einstein em um Deus pessoal. O capítulo 9 diminui o impacto do Cristianismo na construção da ciência moderna, mas recorrendo a um espantalho: não consta que Rodney Stark, Stanley Jaki ou Thomas Woods considerem o Cristianismo a única base da ciência moderna, desprezando as contribuições clássicas, judaicas ou islâmicas. Ainda assim, no fim das contas a religião sai ganhando nesse trabalho de desconstrução, mas apenas porque na maioria das lendas os vilões andam de batina e não de jaleco branco.

Alguns mitos, à primeira vista, parecem simplórios demais para merecer ensaios no livro. Os cristãos medievais acreditavam que a Terra era plana? Mas Stephen Jay Gould já não tinha dedicado um trecho de seu Pilares do tempo, na década passada, para desmentir essa idéia? Pois Lesley Cormack, autora do texto sobre a “Terra plana”, mostra que, no mesmo ano em que Gould publicava sua obra sobre ciência e religião, eram lançados livros didáticos de ensino médio nos Estados Unidos reforçando a lenda – que, a julgar pela resposta do vestibulando da UFPR, segue firme e forte. Aliás, todos os capítulos têm como epígrafes textos que deram origem ou que mantêm viva a mitologia. Assim, vemos que em 2006 há quem ainda afirme que os calvinistas escoceses se opunham à anestesia durante o parto porque ela contrariava a determinação divina de Gênesis 3;16, ou que a Igreja Católica havia proibido a dissecação de cadáveres.

Entre os criadores de mitos, no entanto, os mais citados no livro editado por Numbers são os norte-americanos Andrew Dickson White e John William Draper, autores de A History of the Warfare of Science with Theology and Christendom (1896) e History of the Conflict Between Religion and Science (1874) respectivamente. Podemos dizer que são os pais do conflito entre fé e ciência. A invenção – ou reinterpretação – dos fatos feita por White e Draper continua tão popular que só é possível concluir que seus discípulos, defensores modernos da guerra entre ciência e religião, os Hitchens, Dennetts e Dawkins da vida, podem até pensar que estão levando seus leitores ao século XXI, mas na verdade estão é mantendo todo mundo preso no século XIX.

Marcio Antonio Campos é jornalista, editor da Gazeta do Povo, em Curitiba, e mantém o blogue Tubo de Ensaio, sobre ciência e religião (http://www.gazetadopovo.com.br/blog/tubodeensaio).

Resenha publicada na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro de 2009.

Dominique Lapierre: “Muito além do amor” (por Pablo González Blasco)

Literatura | 01/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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muito-além-do-amor-215x300A tertúlia literária mensal brinda-me oportunidades sonhadas, e quase nunca realizadas por falta de tempo: reler os livros que me impactaram anos atrás. E fazê-lo de modo enriquecedor: poder compartilhar a leitura –não na impessoalidade das redes sociais- mas ao vivo, em animada conversa, pipocar de lembranças e reflexões em voz alta

Passaram-se quase 25 anos desde a leitura deste livro. Naquela altura, eu, médico jovem, acompanhei o surgimento da epidemia da AIDS, a impotência dos médicos, o tabu e a palavra que ninguém queria pronunciar. Foi também naquela época, quando um colega, também médico jovem, veio adoecer e faleceu pouco depois, de algo que ninguém queria comentar. Estive visitando-o e mostrou-se agradecido. Foi o meu residente quando eu estava nos últimos anos da faculdade. Conversamos, sorriu, mas nenhum de nós teve coragem de enveredar por temas clínicos, nem muito menos falar do mal que lhe acometia. Lembro que tinha um irmão padre, da mesma ordem religiosa que toma conta da Basílica de Aparecida. Foi ele quem o cuidou até o final e quem celebrou a Missa de sétimo dia, à qual estive presente.  Nessa época eu não tinha lido ainda o livro de Lapierre. Pouco depois, quando caiu na minha mão, fiz as conexões em todos os planos: no âmbito médico e também nos âmbito dos cuidados, entendendo de modo plástico o que o livro descreve maravilhosamente. A importância do conforto com que é preciso assistir aos doentes que padeciam desse mal.

Quando agora releio o livro, faço-o a grande velocidade, pois a melodia resulta-me conhecida. Uma toada que tinha ouvido, que permaneceu na memória. Lembrava, sem dúvida, da perplexidade médica diante de pacientes com o sistema imunitário destruído, algo que começa de maneira episódica e se transforma em epidemia. Lembrava também da gana investigadora de americanos e de franceses, num mano a mano; e das disputas entre Luc Montaigner e Robert Gallo, por ver quem seria o primeiro a isolar o causante da tragédia. Pesquisa, esforços, iniciativa, e risco da própria vida: alguns em busca da fama, outros de peito aberto para o bem da humanidade.

Mas não era esse o tema principal que ressoava na minha memória. Não foi isso o que mais me impactou, e sim os atores aparentemente coadjuvantes que fizeram toda a diferença neste história entranhável. O amor que está além da tragédia. Lembrava da Madre Teresa e das suas freiras. Da garota rejeitada pela própria família por ter sido atingida pela lepra o que piorava sua já diminuída condição de pária.  A filha de um coveiro do Ganges, ou melhor, de um cremador porque os cadáveres se queimam por lá;  daquela menina frágil que se transforma no ponto de apoio para gerenciar a primeira casa para cuidar de aidéticos em Nova York. O prefeito, judeu, tinha sido claro: ou enviam as freiras da Madre Teresa, ou eu não entro nessa empreitada. Lembrava também dos “casamentos espirituais”, onde se associavam os doentes crônicos incuráveis com as freiras, a quem apoiam com a seu oração e oferecendo seus sofrimentos.

O livro é uma magnífica descrição no melhor estilo jornalístico. Lapierre abre cada capitulo com uma manchete de jornal, e por isso atrai, espicaça a leitura, torna-a agradável e imparável. A ira de Deus, A metamorfose do guerrilheiro, Enigma no quarto 516, Um laboratório de amor às margens do Ganges, A última viagem do comandante da Air France, As autopsias da Bela Marta, Retrovírus num Boeing, Uma lua de mel que começa mal, Um lar para agonizantes no meio dos arranha-céus. E por aí afora. São chamados que estimulam a leitura, seguindo a regra básica do bom jornalismo: o recado tem de ser dado no primeiro parágrafo da notícia; se for no título, melhor ainda. A leitura é ágil, devoram-se os capítulos, nos deparamos com títulos sugestivos; e por trás de cada personagem, em elegante retrospectiva, a história de cada um, sua biografia O livro toca porque não é apenas uma crónica jornalística de fatos científicos, mas um mosaico de histórias de vida, contadas em estilo ameno, a modo de crônicas.

No fim, as palavras que dão título ao livro. Proferidas por um doente judeu aidético nos dias finais quando, após tentativas de suicídio, as freiras da madre Teresa o recolhem uma vez mais, sem cansar-se, com aquele sorriso permanente que parece quase um voto suplementar na ordem das irmãs da Caridade. “Todos vocês estão muito além do amor”.

Histórias de vida, heroísmo, alegria no meio da catástrofe, cuidados, carinho. Enfim, esse amor que Lapierre canta  com uma voz que, 25 anos após a publicação do livro continua sendo atual. E impactante. “O pouco que fazemos, e o muito que nos queixamos”. Uma boa frase, dessas que alguém soltou com encantadora espontaneidade na tertúlia literária, e  que sintetiza a impressão que tive quando li o livro da primeira vez. E que agora ressurgiu, com colorido novo, e apontando  outras responsabilidades. Os livros nos mudam, se refletimos, se nos deixamos cuidar por eles. Como os doentes que, revoltados, encontravam o conforto quando se perdoavam a eles mesmos e se deixavam cuidar pelas mãos amorosas das freirinhas.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente no site de Pablo González Blasco, em 28/03/2016, link: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/03/28/dominique-lapierre-muito-alem-do-amor/#more-2629. Acesso em 01/04/2016.