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Educar as emoções – por Pablo González Blasco

Cinema | 03/12/2018 | | IFE BRASIL

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Foto por Dan Bøțan no Unsplash.

 

Educar com o Cinema é tema que me tem acompanhado nos últimos anos. Tive ocasião de escrever artigos, publicar livros, dar conferências em congressos internacionais, apresentar-me em programas de TV. E, em quase todos os cenários, a pergunta que surge é similar: “Você não é médico? E isto do cinema, como se encaixa na sua vida?”. A pergunta procede e, até tal ponto, que mesmo quando não a fazem eu mesmo a coloco e respondo. Afinal, é necessário justificar o tempo que se dedica a um trabalho que já ultrapassou de longe as proporções de um simples hobby.

Dizer que os médicos de hoje estão munidos de excelente preparação técnica, não é novidade. Como, infelizmente, também não o é afirmar que carecem, na maioria, da sensibilidade suficiente para lidar com o ser humano doente, que sofre e se confia aos seus cuidados. Fala-se em humanizar a medicina, quando na verdade o que se gostaria é de injetar doses de humanidade nos médicos para ver se o paciente consegue, de algum modo, se fazer entender pelo profissional que está destinado a cuidá-lo e, muito absorvido pela técnica moderna –e necessária- parece esquecer o paciente, ocupando-se apenas com a doença.

Para um professor de medicina –como é o meu caso- trazer o médico de volta ao que realmente importa, o paciente, é um desafio diário e uma necessidade na formação dos jovens profissionais. E os que levamos algumas horas de vôo nesta empreitada formativa sabemos que não é tarefa fácil lembrar aquilo que é óbvio …..e que se esquece: a pessoa que sofre. Recursos assim chamados “humanizantes” não passam de remédios paliativos, que têm tanto de superficial como de ineficaz. Cursos de ética, aulas de psicologia e de relacionamento, grupos de estudo, não conseguem a pesar da imensa boa vontade dos organizadores, o seu objetivo. E o divórcio entre o médico que se diverte com a técnica, e o paciente que caminha em desamparo com a sua moléstia continua.

O Cinema tem se mostrado um recurso eficaz para promover a reflexão, para fazer as pessoas pensar. Estudantes e médicos, profissionais da saúde, são convidados através desta metodologia a refletir sobre as suas atitudes. E o resultado é que a reflexão surge como o verdadeiro núcleo do processo humanizante. De modo talvez excessivamente simples, pode se dizer que humanizar é, em primeiro lugar, lembrar ao médico que ele, médico, é um ser humano, e que o paciente também o é. Algo evidente embora esquecido com muita freqüência. E a reflexão traz isto à tona com vigor. Se o cinema nos ajuda a pensar e a refletir sobre as coisas essenciais da vida, converte-se em recurso educacional de valor para formar pessoas e, naturalmente, para melhorar a formação dos médicos. Aqui está a resposta à pergunta que costuma inaugurar os vários cenários educacionais aos quais sou convocado.

Mas isto que funciona para os médicos, não funcionaria para qualquer pessoa? Evidentemente que sim. Daí que o que se iniciou como uma necessidade docente específica –trazer os estudantes de medicina para o lado humano do enfermo- amplia suas possibilidades educacionais com enorme espectro. A razão é simples: O universo da afetividade – sentimentos, emoções e paixões – vêm assumindo um crescente papel de protagonista no mundo da educação. As emoções do aluno não podem ser ignoradas neste processo. Cabe ao educador contemplá-las e utilizá-las como verdadeira porta de entrada para compreender o universo do estudante. Formar o ser humano requer educar sua afetividade, trabalhar com as emoções. Como fazer isto de modo ágil, moderno, compreensível, eficaz? O Cinema mostra-se particularmente útil na educação afetiva, por sintonizar com o universo do estudante onde impera uma cultura da emoção e da imagem. Educar as atitudes supõe mais do que oferecer conceitos teóricos ou simples treinos; implica promover a reflexão que facilita a descoberta de si mesmo, e permite extrair do núcleo íntimo do ser humano um compromisso por melhorar. Professores, estudantes, líderes empresariais, educadores familiares agentes sociais, recursos humanos e todos os que têm a gestão de pessoas como objetivo profissional encontrarão no meu mais recente livro “A Educação da Afetividade através do Cinema” uma metodologia simples, acessível e divertida para aperfeiçoar seu desempenho. Onde há pessoas querendo melhorar e alguém querendo educar o cinema tem vez.

A abordagem pedagógica clássica costuma dividir os objetivos educacionais em três grandes categorias: assim os cognitivos, os psicodinâmicos e os afetivos, implicando respectivamente a aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de habilidades e a educação da afetividade. Enquanto os dois primeiros são de fácil avaliação ou, pelo menos, passíveis de uma avaliação objetiva –através de provas, testes e desempenho de aptidões- avaliar a qualidade da educação afetiva é tema que entranha muito maior complexidade. Não há como medir com “objetividade” o crescimento ou a correta orientação da dinâmica afetiva do educando; e como sempre acontece com aquilo que é difícil medir, corre o risco de ser esquecido, ou colocado no âmbito da pura arbitrariedade. Em outras palavras: cada educador avalia a educação afetiva como quer, ou como pode, ou simplesmente deixa fazê-lo. Isto significa que, na prática, muitas vezes nem é levada em consideração ao estabelecer os objetivos educacionais. Pretender uma avaliação objetiva –análoga á praticada com os conhecimentos técnicos de física ou de história e geografia, por colocar um exemplo- é desconhecer a natureza do fenômeno, querer juntar litros com metros, ou medir o amor por quilogramas. A dificuldade na medida, na avaliação, é porque talvez não se trate tanto de medir como de fomentar e promover a afetividade.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Texto publicado no site de Pablo González Blasco, em 25/08/2007, link: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2007/08/25/educar-as-emocoes/.

Desajustados: O poder transformador da bondade (por Pablo González Blasco)

Cinema | 12/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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(Fúsi -Virgin Mountain-), 2015. Diretor: Dagur Kári. Gunnar Jónsson, Sigurjón Kjartansson, Arnar Jónsson, Ilmur Kristjánsdóttir, Margrét Helga Jóhannsdóttir, Franziska. 94 min.

desajustadosEncontrava-me almoçando com um jovem colega no restaurante dos médicos do hospital quando me abordou um outro médico. Hesitou, olhou o meu nome bordado no avental, certificou-se de que era eu a pessoa que ele suspeitava. Apresentou-se, e rapidamente entendi de quem se tratava. Tínhamos trocado e-mails, escutei-o falando no rádio e até mandei uma mensagem ao programa. Mas era a primeira vez que nos víamos ao vivo. “Que coincidência -disse-me. Estava pensando em lhe pedir para escrever uma dessas suas críticas de filmes para colocá-la no nosso site de Slow Medicine”. Sugeriu-me algum filme, mas subitamente “Desajustados” veio à minha mente, e lhe fiz saber: “Boa ideia. Veja como consegue atrelar o filme aos nossos princípios”.

Naquele momento eu não tinha nenhuma ideia racional de como conectar este filme singular com a prática da medicina artesanal, centrada no paciente, que visa qualidade de vida e não apenas resolver problemas que, dito de passagem, muitas vezes não tem solução. Uma medicina que transpira humanismo; essa é a conexão entre o colega e eu, pois temos posturas profissionais semelhantes, e tentamos -com muito esforço e modesto sucesso- fazer escola, divulgar essa atitude médica. Mas encontrei um bom motivo para comentar -pare refletir escrevendo, que isso são as crônicas de cinema- este filme Islandês que me marcou e me deixou pensando. E me desafiando, porque não encontrava o fio certo para costurar as reflexões que despertou em mim.

Desajustados - 2

A intuição funcionou, porque a partir desse momento, um compromisso tranquilo, sem stress, no ritmo da Slow Medicine, as ideias começaram a surgir, a conexão tomou forma. A figura do bom gigante islandês, assumiu proporções ainda maiores; não físicas, mas de estatura interior, de categoria humana, desenhando-se o que o título deste filme em espanhol representa:Coração gigante. Melhor e mais profundo do que a versão em inglês, Virgin Mountain que é tremendamente simplificador. O título original, em islandês, é simplesmente o nome do protagonista, Fúsi, como indicando que esgota a sua espécie, que é único e singular. Tal como ensina a boa teologia acerca dos anjos. Neste caso, um anjo imenso de traços vikings.

Fúsi é um homem enorme, na casa dos quarenta, que vive com a mãe, e tem alma de criança. Trabalha no aeroporto, serviço externo de apoio, que significa descarregar malas do avião e coloca-las na cinta transportadora. Em silêncio, em ritmo pausado e eficaz, sem nunca faltar ao serviço. Tem prestígio entre os colegas, embora não parece ligar para isso. Aliás, desperta inveja e sofre perseguições, tudo provocado pela sua bondade contundente, por uma ingenuidade que insiste em acreditar, quase infantilmente, na boa vontade do ser humano. Como se não houvesse paixões e mesquinharias à solta. Mas também não se importa com isso: é indiferente a elogios e acossamentos. O supervisor preocupa-se e o convoca no escritório: “Ouvi dizer que está sofrendo bullying”. “Penso que não” responde com simplicidade. É como se esta gigantesca figura carrega-se a própria atmosfera, alheio às turbulências do ambiente.

Fúsi é a criança grande que brinca com figurinhas, percebe as necessidades dos outros, encontra tempo -e dinheiro! – para dedicar-se a eles, está atento a todos e a tudo. Sem fazer barulho, com um low profile circundado pela bondade que transpira por todos os poros. Uma personificação real de como a bondade é capaz de cuidar -e de mudar- as pessoas, os que se aproximam dela. “É preciso afogar o mal em abundância de bem” -dizia um santo contemporâneo. E outro, o místico de Castela no século XVI, assinalava algo semelhante: “Onde não há amor, coloquemos amor, e obteremos amor”. Porque, no final, parece que é isso o que conta, o saldo de uma vida produtiva: “No outono da nossa vida seremos julgados pelo amor”, em palavras do mesmo autor.

Desajustados - 3Diariamente comprovamos, em nós e nos outros, como a vida corrida, a febre pela produtividade, a competição e as comparações -com o vizinho, com o colega, com o familiar- geram permanente inquietude e rendem susceptibilidades doentias. Reclamações e queixas, reivindicações inúmeras e, na prática, pouca resolutividade e ausência completa de preocupação real pelos demais. Neste cenário, uma figura como o nosso protagonista, que apresenta sustentabilidade anímica e transita incólume diante dos nervosismos espasmódicos, é algo invejável que faz pensar. E da inveja nasce a emulação, que é o lado bom da inveja: querer imitá-lo. Um modelo possível, não uma quimera filosófico-teórica.

Volto ao começo destas linhas e ao desafio da Slow Medicine e da minha intuição em ligar o modelo médico com este filme. O ritmo lento, a serenidade, o não querer fazer muitas coisas, mas fazer muito bem o que se decide levar a cabo. E vejo a figura do gigante Islandês assumindo este papel com naturalidade. A densidade serena de Fúsi, que funciona como solução tampão para os problemas -ácidos e básicos- da nossa vida agitada. Com lentidão, sem ânsias de produtividade, a modo de uma turbina que gera milhões de watts de bondade, e ilumina o ambiente.

Desajustados - 4A bondade, como o nosso almejado estilo médico, também é artesanal. Como a das mães pacientes, a das avós que parecem terem tempo para tudo, ou melhor, tempo para o que interessa que nunca é o interesse próprio, mas o benefício dos outros. Lembrei da minha avó que gostava do pescoço e de asa do frango -o que facilitava a divisão na partilha da ave, sobrando o melhor para os outros. Depois descobri que esse gosto não era privilégio dela, mas de todas as avós, e das pessoas que tem o saudável hábito de pensar sempre nos demais.

Por contraste, também lembrei de uma história antiga de um colégio interno, que nuca soube se era verdadeira, mas é muito esclarecedora. Certo dia, um dos alunos teve durante o almoço uma crise epiléptica e teve de ser levado até o hospital. Na hora em que o retiravam, ouviu-se uma voz: “O bife dele é meu”. Desconcertante, instigante e revelador. O colega cruel exprimiu de modo cru o que talvez muitos outros pensavam e desejavam. Uma metáfora grosseira de atitudes que contemplamos diariamente. E até nos vemos envolvidos nelas. Tal é a condição humana. Não sei se somos lobos para os outros homens, como Hobbes dizia, mas aproveitar o bife sobrante é tentação presente. Fúsi nos faz entrever justamente o contrário e nos encanta com a atitude de quem voluntariamente cede o bife a quem está cego pelo próprio egoísmo. No final, o lucro é de quem soube ceder, sem queixar-se, colocando boa cara ao mau tempo, porque aliás não tem tempo ruim para ele. Um modelo invejável.

Desajustados - 1Mas o que tem a ver com tudo isto a medicina artesanal? Como conectar Fúsi com o humanismo médico que é, afinal, a nossa praia? Simplesmente com o exemplo de que é possível ser uma máquina geradora de bondade, serena, eficaz, que cuida das pessoas. Um exemplo possível, que se vê e se toca, que é do que carecemos hoje. Minha irmã, professora de filosofia costuma dizer-me: “O que você faz é simplesmente lembrar aos médicos aquilo que 70 anos atrás faziam, e acabaram esquecendo”. Difícil conseguir uma melhor definição com menos palavras.

O exemplo incarnado em alguém é capaz de acordar a lembrança, e assim formar as atitudes, solidificar a missão, promover a vontade de fazer um mundo melhor. Porque essa atitude -não apenas na medicina, mas na vida – não é coisa que se ensine com treinamentos de qualidade, projetos inúteis de humanização, quando há uma absoluta carência de exemplos. E o exemplo estimula e faz sonhar, porque os sonhos -como os de Fúsi- também fazem parte da educação. “Se você quer construir um navio, não chame as pessoas para juntar madeira ou atribua-lhes tarefas e trabalho, mas sim ensine-os a desejar a infinita imensidão do oceano” -dizia Saint Exupéry. No mundo corporativo, estamos saturados de cursos para cortar madeira, com certificações internacionais de qualidade e protocolos, e até algumas pitadas de liderança. Mas faltam exemplos. O exemplo do dia a dia, da turbina de bondade.

Desajustados. Esse é o título em português. Incomodou-me no início, porque não representa nada do que os outros títulos se atrevem a vislumbrar. Decidi ignorá-lo como mais uma infelicidade das nossas traduções, uma longa tradição que bateu o recorde com The Sound of Music, grotescamente traduzido por Noviça Rebelde, maculando um dos maiores musicais da história e indispondo-nos com a magnífica Julie Andrews que nem noviça era. Mas após esta reflexão escrita penso que o título até se encaixa. Sim, desajustados é o novo parâmetro para medir-nos a nós mesmos. Nós é que somos os desajustados, não o Fúsi. Ele é o exemplo contundente, o gold standard -por usar um termo que os médicos adoram- ao qual teremos de nos adaptar se queremos fazer a diferença. Com a Medicina, e com a própria vida.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/08/16/desajustados-o-poder-transformador-da-bondade/

[resenha de livro] Dominique Lapierre: “Muito além do amor” (por Pablo G. Blasco)

Literatura | 16/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Dominique Lapierre: “Muito além do amor”. Salamandra. São Paulo. 1991. 376 pgs.

muito além do amorA tertúlia literária mensal brinda-me oportunidades sonhadas, e quase nunca realizadas por falta de tempo: reler os livros que me impactaram anos atrás. E fazê-lo de modo enriquecedor: poder compartilhar a leitura –não na impessoalidade das redes sociais- mas ao vivo, em animada conversa, pipocar de lembranças e reflexões em voz alta

Passaram-se quase 25 anos desde a leitura deste livro. Naquela altura, eu, médico jovem, acompanhei o surgimento da epidemia da AIDS, a impotência dos médicos, o tabu e a palavra que ninguém queria pronunciar. Foi também naquela época, quando um colega, também médico jovem, veio adoecer e faleceu pouco depois, de algo que ninguém queria comentar. Estive visitando-o e mostrou-se agradecido. Foi o meu residente quando eu estava nos últimos anos da faculdade. Conversamos, sorriu, mas nenhum de nós teve coragem de enveredar por temas clínicos, nem muito menos falar do mal que lhe acometia. Lembro que tinha um irmão padre, da mesma ordem religiosa que toma conta da Basílica de Aparecida. Foi ele quem o cuidou até o final e quem celebrou a Missa de sétimo dia, à qual estive presente.  Nessa época eu não tinha lido ainda o livro de Lapierre. Pouco depois, quando caiu na minha mão, fiz as conexões em todos os planos: no âmbito médico e também nos âmbito dos cuidados, entendendo de modo plástico o que o livro descreve maravilhosamente. A importância do conforto com que é preciso assistir aos doentes que padeciam desse mal.

Quando agora releio o livro, faço-o a grande velocidade, pois a melodia resulta-me conhecida. Uma toada que tinha ouvido, que permaneceu na memória. Lembrava, sem dúvida, da perplexidade médica diante de pacientes com o sistema imunitário destruído, algo que começa de maneira episódica e se transforma em epidemia. Lembrava também da gana investigadora de americanos e de franceses, num mano a mano; e das disputas entre Luc Montaigner e Robert Gallo, por ver quem seria o primeiro a isolar o causante da tragédia. Pesquisa, esforços, iniciativa, e risco da própria vida: alguns em busca da fama, outros de peito aberto para o bem da humanidade.

Mas não era esse o tema principal que ressoava na minha memória. Não foi isso o que mais me impactou, e sim os atores aparentemente coadjuvantes que fizeram toda a diferença neste história entranhável. O amor que está além da tragédia. Lembrava da Madre Teresa e das suas freiras. Da garota rejeitada pela própria família por ter sido atingida pela lepra o que piorava sua já diminuída condição de pária.  A filha de um coveiro do Ganges, ou melhor, de um cremador porque os cadáveres se queimam por lá;  daquela menina frágil que se transforma no ponto de apoio para gerenciar a primeira casa para cuidar de aidéticos em Nova York. O prefeito, judeu, tinha sido claro: ou enviam as freiras da Madre Teresa, ou eu não entro nessa empreitada. Lembrava também dos “casamentos espirituais”, onde se associavam os doentes crônicos incuráveis com as freiras, a quem apoiam com a seu oração e oferecendo seus sofrimentos.

O livro é uma magnífica descrição no melhor estilo jornalístico. Lapierre abre cada capitulo com uma manchete de jornal, e por isso atrai, espicaça a leitura, torna-a agradável e imparável. A ira de Deus, A metamorfose do guerrilheiro, Enigma no quarto 516, Um laboratório de amor às margens do Ganges, A última viagem do comandante da Air France, As autopsias da Bela Marta, Retrovírus num Boeing, Uma lua de mel que começa mal, Um lar para agonizantes no meio dos arranha-céus. E por aí afora. São chamados que estimulam a leitura, seguindo a regra básica do bom jornalismo: o recado tem de ser dado no primeiro parágrafo da notícia; se for no título, melhor ainda. A leitura é ágil, devoram-se os capítulos, nos deparamos com títulos sugestivos; e por trás de cada personagem, em elegante retrospectiva, a história de cada um, sua biografia O livro toca porque não é apenas uma crónica jornalística de fatos científicos, mas um mosaico de histórias de vida, contadas em estilo ameno, a modo de crônicas.

No fim, as palavras que dão título ao livro. Proferidas por um doente judeu aidético nos dias finais quando, após tentativas de suicídio, as freiras da madre Teresa o recolhem uma vez mais, sem cansar-se, com aquele sorriso permanente que parece quase um voto suplementar na ordem das irmãs da Caridade. “Todos vocês estão muito além do amor”.

Histórias de vida, heroísmo, alegria no meio da catástrofe, cuidados, carinho. Enfim, esse amor que Lapierre canta  com uma voz que, 25 anos após a publicação do livro continua sendo atual. E impactante. “O pouco que fazemos, e o muito que nos queixamos”. Uma boa frase, dessas que alguém soltou com encantadora espontaneidade na tertúlia literária, e  que sintetiza a impressão que tive quando li o livro da primeira vez. E que agora ressurgiu, com colorido novo, e apontando  outras responsabilidades. Os livros nos mudam, se refletimos, se nos deixamos cuidar por eles. Como os doentes que, revoltados, encontravam o conforto quando se perdoavam a eles mesmos e se deixavam cuidar pelas mãos amorosas das freirinhas.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/03/28/dominique-lapierre-muito-alem-do-amor/#more-2629

Dominique Lapierre: “Muito além do amor” (por Pablo González Blasco)

Literatura | 01/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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muito-além-do-amor-215x300A tertúlia literária mensal brinda-me oportunidades sonhadas, e quase nunca realizadas por falta de tempo: reler os livros que me impactaram anos atrás. E fazê-lo de modo enriquecedor: poder compartilhar a leitura –não na impessoalidade das redes sociais- mas ao vivo, em animada conversa, pipocar de lembranças e reflexões em voz alta

Passaram-se quase 25 anos desde a leitura deste livro. Naquela altura, eu, médico jovem, acompanhei o surgimento da epidemia da AIDS, a impotência dos médicos, o tabu e a palavra que ninguém queria pronunciar. Foi também naquela época, quando um colega, também médico jovem, veio adoecer e faleceu pouco depois, de algo que ninguém queria comentar. Estive visitando-o e mostrou-se agradecido. Foi o meu residente quando eu estava nos últimos anos da faculdade. Conversamos, sorriu, mas nenhum de nós teve coragem de enveredar por temas clínicos, nem muito menos falar do mal que lhe acometia. Lembro que tinha um irmão padre, da mesma ordem religiosa que toma conta da Basílica de Aparecida. Foi ele quem o cuidou até o final e quem celebrou a Missa de sétimo dia, à qual estive presente.  Nessa época eu não tinha lido ainda o livro de Lapierre. Pouco depois, quando caiu na minha mão, fiz as conexões em todos os planos: no âmbito médico e também nos âmbito dos cuidados, entendendo de modo plástico o que o livro descreve maravilhosamente. A importância do conforto com que é preciso assistir aos doentes que padeciam desse mal.

Quando agora releio o livro, faço-o a grande velocidade, pois a melodia resulta-me conhecida. Uma toada que tinha ouvido, que permaneceu na memória. Lembrava, sem dúvida, da perplexidade médica diante de pacientes com o sistema imunitário destruído, algo que começa de maneira episódica e se transforma em epidemia. Lembrava também da gana investigadora de americanos e de franceses, num mano a mano; e das disputas entre Luc Montaigner e Robert Gallo, por ver quem seria o primeiro a isolar o causante da tragédia. Pesquisa, esforços, iniciativa, e risco da própria vida: alguns em busca da fama, outros de peito aberto para o bem da humanidade.

Mas não era esse o tema principal que ressoava na minha memória. Não foi isso o que mais me impactou, e sim os atores aparentemente coadjuvantes que fizeram toda a diferença neste história entranhável. O amor que está além da tragédia. Lembrava da Madre Teresa e das suas freiras. Da garota rejeitada pela própria família por ter sido atingida pela lepra o que piorava sua já diminuída condição de pária.  A filha de um coveiro do Ganges, ou melhor, de um cremador porque os cadáveres se queimam por lá;  daquela menina frágil que se transforma no ponto de apoio para gerenciar a primeira casa para cuidar de aidéticos em Nova York. O prefeito, judeu, tinha sido claro: ou enviam as freiras da Madre Teresa, ou eu não entro nessa empreitada. Lembrava também dos “casamentos espirituais”, onde se associavam os doentes crônicos incuráveis com as freiras, a quem apoiam com a seu oração e oferecendo seus sofrimentos.

O livro é uma magnífica descrição no melhor estilo jornalístico. Lapierre abre cada capitulo com uma manchete de jornal, e por isso atrai, espicaça a leitura, torna-a agradável e imparável. A ira de Deus, A metamorfose do guerrilheiro, Enigma no quarto 516, Um laboratório de amor às margens do Ganges, A última viagem do comandante da Air France, As autopsias da Bela Marta, Retrovírus num Boeing, Uma lua de mel que começa mal, Um lar para agonizantes no meio dos arranha-céus. E por aí afora. São chamados que estimulam a leitura, seguindo a regra básica do bom jornalismo: o recado tem de ser dado no primeiro parágrafo da notícia; se for no título, melhor ainda. A leitura é ágil, devoram-se os capítulos, nos deparamos com títulos sugestivos; e por trás de cada personagem, em elegante retrospectiva, a história de cada um, sua biografia O livro toca porque não é apenas uma crónica jornalística de fatos científicos, mas um mosaico de histórias de vida, contadas em estilo ameno, a modo de crônicas.

No fim, as palavras que dão título ao livro. Proferidas por um doente judeu aidético nos dias finais quando, após tentativas de suicídio, as freiras da madre Teresa o recolhem uma vez mais, sem cansar-se, com aquele sorriso permanente que parece quase um voto suplementar na ordem das irmãs da Caridade. “Todos vocês estão muito além do amor”.

Histórias de vida, heroísmo, alegria no meio da catástrofe, cuidados, carinho. Enfim, esse amor que Lapierre canta  com uma voz que, 25 anos após a publicação do livro continua sendo atual. E impactante. “O pouco que fazemos, e o muito que nos queixamos”. Uma boa frase, dessas que alguém soltou com encantadora espontaneidade na tertúlia literária, e  que sintetiza a impressão que tive quando li o livro da primeira vez. E que agora ressurgiu, com colorido novo, e apontando  outras responsabilidades. Os livros nos mudam, se refletimos, se nos deixamos cuidar por eles. Como os doentes que, revoltados, encontravam o conforto quando se perdoavam a eles mesmos e se deixavam cuidar pelas mãos amorosas das freirinhas.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente no site de Pablo González Blasco, em 28/03/2016, link: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/03/28/dominique-lapierre-muito-alem-do-amor/#more-2629. Acesso em 01/04/2016.

Lançamento do livro “O Prazer de Pensar”, de Theodore Dalrymple

Filosofia | 24/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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Capa_Frente_O Prazer de PensarUma jornada pelos prazeres e surpresas da bibliofilia para curiosos incuráveis, no inconfundível estilo de Dalrymple.

Por que ditadores adoram histórias em quadrinhos? Como um pênalti pode causar uma guerra entre dois países? Os livros garimpados da biblioteca de Dalrymple contam casos curiosos não com as histórias dos textos originais que carregam, mas com a sua própria trajetória. São elas que fazem o pensamento do autor viajar e trazer à tona, em seu estilo instigante, memórias e observações críticas sobre literatura, história, política, filosofia, medicina, sociedade, viagens etc. 

Por meio de uma série de histórias sobre anotações feitas a mão, cartas esquecidas e frases sublinhadas, Theodore Dalrymple conduz o leitor pelos prazeres e surpresas que certos livros especiais de sua biblioteca pessoal guardam. Em capítulos curtos, essas trajetórias são acompanhadas suas próprias memórias e apontamentos críticos sobre os mais diversos assuntos em seu estilo já conhecido do leitor. 

“Encontramos coisas em livros velhos: principalmente insetos mumificados, é claro, mas também manchas de sangue, flores secas prensadas, bilhetes velhos de ônibus, listas de compras, fichas de embarque, orçamentos de consertos a serem feitos, contas de açougue, marcadores de página de livros anunciando seguros de vida, festivais de arte e livrarias e alguns chegam a chamar o leitor para a fé e o arrependimento.”

O Prazer de Pensar, página 23 

“Agradáveis descobertas feitas por acaso são um dos maiores prazeres de folhear livros, e nada substitui a sensação de poder ter um livro físico nas mãos. […] A alegria de descobrir algo que não sabíamos existir e que está profunda e inesperadamente conectado a algo que nos interessa no momento é uma das recompensas de folhear livros ao acaso, uma recompensa desconhecida para aqueles que têm uma visão apenas instrumental das livrarias, indo embora delas assim que descobrem que o livro que desejam não está disponível.”

Theodore Dalrymple, em artigo para The Telegraph em 2/2/2016

Sobre o autor

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos de Anthony Daniels, nascido em 1949, em Londres. Além de ensaísta, é médico psiquiatra, trabalhou em quatro continentes e atuou até 2005 no Hospital da Cidade e na Winson Green Prison, ambos em Birmingham, Inglaterra. Escreve para o City Journal, publicado pelo Manhattan Institute, e para veículos como The British Medical Journal, The Times, The Observer, The Daily Telegraph, The Spectator, The Salisbury Review, National Review e Axess. Possui diversos livros publicados, entre eles A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o Que Restou Dela, Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, e Em Defesa do Preconceito – A Necessidade de se Ter Ideias Preconcebidas, editados pela É Realizações Editora.

Fonte: imprensa@erealizacoes.com.br