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Humanidades: é o fim?

Opinião Pública | 09/05/2018 | | IFE CAMPINAS

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Nessas conversas de barbeiro, ouvi o cliente ao meu lado dizer que “finalmente, mandaram um projeto de lei lá em Brasília para acabar com vários cursos de humanidades nas universidades públicas”. E arrematou afirmando que “só assim vamos parar com essa fábrica de socialistas que só serve para apoiar causas políticas perdidas e doutrinar a cabeça dos jovens com essas porcarias de cotas, ideologia de gênero e assistencialismo do bolsa-família. Vocês não viram aquela professora de história que queria matar fascistas a pau e voadoras?”.

Bom, o sujeito despejou muita doxa para uma conversa informal e muito pano para manga para uma clientela que, por não ter muito cabelo, não costuma dispensar mais que meia hora para esse tipo de compromisso estético. Não pretendo entrar nas questões nominadas por ele, mas um detalhe chamou minha atenção: o fato dele misturar alhos com bugalhos. Não dá certo, porque, embora haja semelhança entre a cabeça de alho e a do bugalho, alho e bugalho continuam sendo alho e bugalho respectivamente.

Em primeiro lugar, dou-lhe razão em relação à citada professora. O besteirol da dita cuja é incompatível com o nível universitário de sua formação e com sua condição de docente de graduação. Para ela, quem discorde de suas ideais, é fascista, embora, muito provavelmente, nem ela saiba o que diz, já que o fascismo é uma espécie de irmão siamês do socialismo: ambos nutrem um gosto pelo messianismo político, pelo estado totalizante, pela escatologia terrena e pela ausência de liberdades públicas. Parece que, por falta de argumentação, ela prefere atacar o argumentador, o que é conhecido, em lógica retórica, como falácia ad hominem.

Em segundo lugar, se for para abolir as humanidades, dentro da lógica do cliente da barbearia, é melhor acabar com a medicina, pois, a longo prazo, todos estaremos mortos e com a engenharia, já que, um dia, com todos falecidos, só restarão os escombros. Esse é o ponto.

Há muito tempo, as universidades, sobretudo as humanidades, estão bem longe dos fundamentos que se inscrevem em seus mottos (verdade, liberdade, glória, sabedoria, luz, Deus) e, por isso, enfrentam um processo de decadêcia moral e axiológica. A universidade atual está bem longe de suas origens medievais, época em que eram vistas como centros de difusão da verdade e do bem.

O discurso de ódio da aludida professora é apenas o menor dos problemas e sabemos que muito dinheiro público financia obras acadêmicas, nas humanidades, de racionalidade científica duvidosa (“integrações homoeróticas em banheiros públicos” – UFBA) ou curiosa (“a grande pensadora contemporânea Valesca Popozuda” – UFF). Esses fatos demonstram bem um certo grau de auto-estultificação da atividade intelectual em muitas das instituições de ensino superior.

Tudo isso explica, mas não justifica o fim dos cursos de humanidades. Sem tais cursos, arrisco a dizer que nem as ciências exatas ou biológicas sabem que são ciências exatas ou biológicas. Mais. A história ensina-nos a não repetir os erros do passado; a sociologia ensina-nos que nem todas as desigualdades são naturais ou defensáveis; a política ensina-nos a distinguir entre formas de governo dos destinos da cidade que respeitam ou não a dignidade da pessoa humana; o direito, por meio do justo concreto, ensina-nos que as coisas estão distribuídas e precisam ser repartidas ou devolvidas; a antropologia ensina-nos o que nós somos e a filosofia dá a forma arquitetônica e organizativa em todo o prédio do conhecimento humano.

As humanidades pavimentaram o caminho civilizatório humano. Hoje, distanciadas de seus fundamentos, colocam em abalo os pilares de séculos de saber científico. Como solução, sugiro defenestrar, do mundo acadêmico, quem subverte ciência para arma ideológica ou a reduz a uma pura doxa, sob o manto diáfano de “liberdade de cátedra”, para, depois, recomeçar as humanidades, a partir da formulação das perguntas corretas para as questões fundamentais.

Já seria um bom recomeço. Afinal, um problema bem definido é um problema parcialmente resolvido, de forma que os alhos e os bugalhos também agradecem, por não serem confundidos um com o outro. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/05/2018, Página A-2, Opinião.

[RESENHA] Além do embuste, aquém da qualidade – por Luiz Felipe Estanislau do Amaral

Política e Sociologia | 09/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Dados técnicos: Alan Sokal, Beyond the Hoax: Scien-ce, Philosophy and Culture. Oxford University Press, 465 págs.

 

A história é famosa, ou pelo menos foi durante um tempo: em 1996, Alan Sokal, um físico da Universidade de Nova York, enviou para uma revista acadêmica de destaque um artigo com páginas e páginas de besteirol pós-moderno sem sentido, cheio de jargões e expressões de significado pouco preciso, com pitadas de Derrida e Lacan, elogios aos editores da revista, um contexto tosco de interdisciplinaridade e, obviamente, nenhuma contribuição para o conhecimento humano. Surpreendentemente ou não, o artigo foi publicado. Não é necessário dizer que meses depois da publicação, exposta a farsa, os editores da revista-alvo, a Social Text (isso mesmo, “Texto Social”), ficaram um tanto quanto bravos, enquanto Sokal ficou um tanto quanto famoso (talvez o máximo que um especialista em mecânica estatística possa ficar). Em Beyond the Hoax: Science Philosophy and Culture, Sokal promete, como diz o título, ir além do embuste. Não chega muito longe.

O livro se divide em três partes. Na primeira, The Social Text Affair, de longe a mais interessante, Sokal revisita o caso que lhe deu fama, além de tecer comentários sobre o pós-modernismo e sua relação com a ciência. Na segunda, Science and Philosophy, de longe a mais útil para o leitor, Sokal passeia pela filosofia da ciência e defende suas posições sobre o assunto. Na terceira, Science and Culture, de longe a mais desastrada, Sokal estraga um livro que, até então, rendia boa leitura.

Infelizmente, o livro começa no seu pico. O primeiro capítulo, The Parody, Annotated é a reimpressão do artigo publicado na Social Text, com exaustivas notas de Sokal sobre sua escrita, sobre a veracidade (e até mesmo a inteligibilidade!) dos seus parágrafos e sobre a construção do seu título: Transgressing the boundaries: Towards a transformative hermeneutics of quantum gravity (Transgredindo as fronteiras: Rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica), um clássico instantâneo. Entretanto, é preciso que fique claro que não são apenas as piadas que trazem qualidade ao capítulo: as notas de Sokal sobre a construção do artigo jogam luz em problemas sérios pelos quais as humanidades passam atualmente. O autor dá exemplos e exemplos de raciocínios logicamente improcedentes, de definições pouco precisas (propositadamente, talvez), da transposição incorreta de conceitos de uma área do conhecimento para outra etc.

Mas uma vez observado o embuste, fica a impressão de que há em Sokal um lado “espírito de porco”. Entretanto, parece muito defensável a posição segundo a qual, em determinadas ocasiões, um espírito de porco é necessário. E no caso de Sokal, ou melhor, de universidades assoladas pelo relativismo, desconstrucionismo etc., um desses espíritos é de fato necessário. Grande decepção é saber, nos capítulos seguintes, que a motivação de Sokal é política: combater tendências intelectuais “inimigas dos valores e do futuro da esquerda” (página 95). Deve haver um ditado sobre fazer a coisa certa pelos motivos errados…

Contudo, pelo menos é nisso que gosto de acreditar, as motivações políticas não tiram o valor das ações de Sokal, da mesma forma que sua confissão não tira o valor da primeira parte do livro. No quarto capítulo, por exemplo, o autor discorre sobre os science studies, uma área do conhecimento cujos proponentes pretendem explicar a evolução do conhecimento científico por meio de fatores sociais e incentivos intrínsecos aos cientistas, sendo a busca pela verdade algo secundário. E é a partir de tal premissa que se chega à necessidade de uma ciência livre de preconceitos sociais como o machismo. É com muita delicadeza que Sokal expõe os problemas de uma tal visão de ciência.

De forma geral, não há muito conteúdo na primeira parte do livro, mas sua leitura ainda vale pela crítica às tendências pós-modernas nas humanidades e pela hilária leitura de Transgressing the Boundaries. A segunda parte, Science and Philosophy, conserta esse defeito específico da primeira.

Science and Philosophy tem dois capítulos: Cognitive relativism in the philosophy of science e Defense of a modest scientific realism. O primeiro deles é o que torna o livro mais do que a mera revisão de uma situação engraçada ocorrida anos atrás. O capítulo busca entender o fundamento de um vício intelectual da atualidade: a noção de relativismo cognitivo, isto é, a noção de que afirmações factuais objetivas sobre o mundo não são passíveis de serem classificadas como verdadeiras ou falsas, a idéia de que uma teoria é verdadeira para determinado grupo de pessoas ou dentro de um contexto específico. Com isso, Sokal também introduz o leitor em temas atualmente em debate na filosofia da ciência.

Nesse texto, fica patente uma das grandes vantagens do estudo sério e dedicado das ciências exatas. Sokal é muito claro em suas definições e extremamente consciente dos limites dos seus argumentos, algo que torna o capítulo didático e confere-lhe um tom de honestidade intelectual muito forte. De modo muito interessante, nos capítulos finais do livro, nos quais trata de questões culturais, políticas e religiosas, as definições de Sokal perdem precisão e os argumentos sérios perdem espaço para piadinhas. Mas força é convir que Cognitive relativism in the philosophy of science faz um trabalho sério ao rejeitar posições epistemológicas extremas como o solipsismo e o relativismo, e aborda com clareza certas questões da filosofia da ciência. Em um tempo em que o gênero popular science toma de assalto as listas de best-sellers, a idéia de popular epistemology ganha muito valor.

Fecha a segunda parte do livro um capítulo sobre duas lutas: uma entre os que acreditam no conhecimento científico e aqueles que não acreditam, e outra entre diferentes visões do conhecimento científico. Quanto à primeira, não há nada que não esteja presente nos capítulos anteriores; quanto à segunda, o autor identifica diferentes meios de entender a ciência. Sokal expõe, por exemplo, as vantagens e desvantagens do realismo científico, opondo-o à visão instrumentalista, que também é criticada. Ao final, fica a defesa de um “modesto realismo científico”, que pretende entender como o mundo é de fato, mas que compreende que tal empreitada possui muitos obstáculos e pode nunca chegar a alcançar plenamente seu objetivo. Assim como o capítulo anterior, este constitui leitura interessante e útil.

Mas o que há de interessante e útil no livro pára na modesta defesa do realismo científico. A última parte de Beyond the Hoax não passa de um espaço para Sokal dar suas opiniões sobre política e religião, nada mais. Ao ponto, inclusive, de deixar o leitor imaginando o que ocorreu com o capítulo sobre futebol (para ser perfeitamente honesto, contudo, devo avisar que há uma nota de rodapé mencionando a existência de David Beckham e uma ou outra metáfora sobre baseball ao longo dos capítulos).

No primeiro capítulo da terceira parte, por exemplo, Sokal tenta estabelecer a relação entre o pós-modernismo e as pseudociências. Depois de definir convenientemente tanto um quanto o outro termo, ele parte para dar exemplos abundantes de como os dois fenômenos caminham juntos e presenteia o leitor com cinqüenta páginas sobre as relações entre o pós-modernismo e as pseudociências na enfermagem e no nacionalismo hindu. Mas ao menos Sokal admite que não foi capaz de dar os exemplos abundantes que imaginou de início. Portanto, ele parte para o próximo alvo: as religiões; porque para Sokal as religiões são pseudociências e ele faz questão de demonstrá-lo no apêndice do capítulo oito (mais precisamente na nota de rodapé número 274). Contudo, deve-se supor que o físico não faz um trabalho razoável ao incluir as religiões em uma definição de pseudociência que ele próprio cunhou.

Logo em seguida, em Religion, politics and survival, Sokal volta a atacar as religiões, mas dessa vez misturando o assunto com política e tomando o cuidado de advogar um melhor entendimento de seus mecanismos. O motivo é simples: os EUA são um país extremamente religioso e a esquerda americana não pode ignorar esse fato para colocar em prática sua agenda progressiva. É nesse ponto que ficam claros os elogios que o livro recebe de Noam Chomsky na contracapa.

Obviamente, não se trata de criticar Sokal por suas idéias sobre política ou religião. Tampouco é o caso de criticá-lo por incluir esses assuntos em um livro sobre ciência: para o autor, suas visões sobre religião e política estão relacionadas ao lugar que ele acredita que a ciência deve assumir na sociedade e ele argumenta nesse sentido. Entretanto, fica a impressão de que o caso da Social Text não é o embuste ao qual o título se refere. Ao tratar de política, Sokal comete os mesmos erros dos humanistas que critica, fazendo uso de conceitos sem significado preciso (não é possível que alguém que reclame do uso incorreto de “linearidade” use o termo “capitalismo” acreditando que está se referindo a algo bem demarcado). E ao tratar de religião, Sokal não vai além da leitura da Bíblia. Mas, em retrospecto, devemos lembrar que a grande motivação do caso da Social Text foi política.

Um último comentário se faz necessário, mas não sobre o conteúdo do livro. Os capítulos que compõem Beyond the Hoax são, em sua grande maioria, ensaios publicados em livros e revistas diferentes, mas todos sobre assuntos próximos. Infelizmente, isso torna o livro um tanto quanto cansativo e repetitivo. Existem citações e definições repetidas, além de, inclusive, um parágrafo praticamente idêntico em dois capítulos diferentes. Contudo, tais repetições, para o leitor paciente, não chegam a estragar a leitura. Pelo menos a leitura das primeiras partes do livro.

Resenha publicada na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 2, Dezembro de 2008.

 

Jordi Llovet: “Adiós a la Universidad. El Eclipse de las Humanidades” (por Pablo González Blasco)

Educação | 17/12/2015 | | IFE CAMPINAS

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Jordi Llovet: “Adiós a la Universidad. El Eclipse de las Humanidades”.  Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores. Barcelona (2011). 408 págs.

Aios a la universidadO sugestivo título desta obra, fez-me pensar que seria um ensaio em tema que muito me atrai. Comprei-o, e o deixei repousar algum tempo na prateleira, hábito que sempre sigo para não ir com muita sede ao pote. Os livros também precisam de repouso, como o bom vinho, antes de estabelecer um diálogo com eles, que isso é –e não outra coisa- a boa leitura…

Recupero o livro da estante-adega, e me encontro com um livro de memórias, sobre o qual o autor alinhava suas considerações humanistas. O adeus à universidade não é apenas uma figura de linguagem, mas a retirada do próprio autor da academia, aproveitando um programa de aposentadoria implementado na instituição universitária onde ensinava. O eclipse das humanidades –por fazer uma exegese completa do título- é a constatação do autor, na sua trajetória docente,  do declínio da formação humanística na universidade, e as consequências dessa postura. Uma formação que sucumbe ao utilitarismo do mercado vigente, que dita as normas educacionais, e que bem resume Llovet citando  Bertrand Russell: “Um dos defeitos de educação superior moderna é que se converteu num treino para adquirir habilidades  e cada vez se preocupa menos de abrir a mente e o coração dos estudantes”.

Descubro que o autor escreve o original em catalão, e o exemplar que tenho entre mãos é, por tanto, uma tradução. Llovet é catalão até o último fio de cabelo, ama a cultura e a língua da sua terra, mas é tremendamente crítico com os fundamentalistas catalães que tentam impor o seu próprio idioma  a qualquer custo, beirando o ridículo. Surge aqui uma lembrança pessoal: há alguns meses passei por Barcelona e comprovei como editoras catalãs, cujo objetivo é promover a língua local, traduzem a esse idioma, Dostoievski, Steinbeck , Victor Hugo –o que me parece muito bem- mas também autores que conquistaram o Prêmio Cervantes, maior reconhecimento no domínio do Castelhano…..o que me causou tremenda perplexidade. Talvez por isso Llovet escreve em catalão: para ter certeza de que o seu público alvo não colocará obstáculos e acabará lendo este mistura de legado e reflexão. Quer dizer, escreve, em primeiro lugar,  para os catalães, principais destinatários da sua crítica iconoclasta contra o formalismo acadêmico.

O capítulo que descreve as peripécias necessárias para completar um doutorado, é de um ironia finíssima –dei risada sozinho- e devastador: detona os processos formais para conseguir esse grau acadêmico, a solidão do candidato, a  omissão dos orientadores, o aluno que trabalha por conta, gasta dinheiro, e ninguém o orienta (ou quando o faz é para pesquisar algo que o orientador tem interesse, mas também lhe da preguiça fazer). Enfim, não deixa títere com cabeça…

Nesse mesmo capítulo relata suas viagens pela Europa, em busca de material para a sua pesquisa. Alemanha, França, a República Checa –memorável o encontro com  a sobrinha de Kafka-, onde junta lembranças e considerações. Fez me sorrir a narrativa onde no quarto em que viveu Holderlin, sente um desejo tremendo de recolhimento, mas é impedido “porque os  visitantes estavam providos de engenhocas audiovisuais, como se os homens não tivéssemos memória e somente as imagens fotográficas ou filmadas pudessem conservá-la.”. Se isto foi em 1978,  podemos imaginar hoje, onde as pessoas fotografam compulsivamente locais e a elas mesmas –o self sedutor!- sem dar tempo para viver os momentos, imagens vazias de qualquer vivência……

Muito sugestivo é o capítulo que dedica às humanidades perante as novas tecnologias.  “Quando alguém percebe que não há sinal no celular, sofre como um náufrago que não consegue que seus gritos cheguem até os que pilotam o bote salva-vidas. Uma absoluta sensação de solidão e impotência”. Aborda-se o desafio que a técnica impõe em vistas do imediatismo que proporciona. Temos rapidez, comunicação global, mas falta conteúdo elaborado. A ditadura da rapidez elimina o tempo que sempre foi necessário para cozinhar as ideias, impondo uma cultura em sintonia com o fast-food. O estudante senta na frente de um computador, e pensa que lhe é proporcionada uma facilitação em todos os níveis, incluído aquele processo que sempre foi considerado árduo: o do aprendizado.  Esquece-se que educar provem de ex-ducere, tirar de dentro; extrair e não apenas colocar, e muito menos inserir programas e aplicativos.  Por isso eu vou digitando todas estas linhas: para ir pensando enquanto escrevo, escolhendo as palavras, ordenando as ideias, ao invés de correr o scanner pelas páginas e coloca-las sem nenhuma conexão, nem temperadas com a minha própria reflexão.

Llovet levanta a bandeira das humanidades e adverte do perigo da educação utilitarista: “Os jovens não possuem formação alguma, nem sentem a necessidade de adquiri-la, de modo que cada vez será mais difícil que um universitário consiga situar num contexto histórico os modos de ver o mundo. A falta completa de referências e a falta de familiaridade com o tema, fará com que tudo aquilo que não faz parte da sua experiência vital –do que vivem, e sentem- nunca venha se converter em categorias epistemológica, em modos de interpretar e ver o mundo. Somente captarão sua experiência quotidiana. É a tirania do momento, que nega o curso e a densidade da historia. Uma caipirice  não do espaço –da terrinha- mas do tempo, onde parece que o mundo é propriedade apenas dos vivos, sem saber que para a Historia não há mortos”.

Mostra-se muito crítico em relação á reforma universitária europeia, o chamado plano Bolonha, de integração europeia, pois os estudantes não foram formados num ambiente de critica e diálogo no ensino médio –muito menos em dominar línguas como para mover-se de um lado a outro de Europa, e ninguém fala latim hoje como os Humanistas do século XVI. Os estudantes querem soluções e eficácia, esse é o ensino médio. Bolonha não vai funcionar porque o estudante não tem motor próprio, não se lhe ensinou: a questão, como sempre, é dos professores, não culpa do estudante. São os gestores universitários os que destroem a enorme carga de entusiasmo que um jovem tem nessa fase da vida; gestores que transformam a universidade num centro de treinamento de habilidades e distribuidora de títulos.

Percebe-se ao longo de toda a obra uma crítica contumaz ao utilitarismo que relega as Humanidades a um plano de diletantismo. Invoca, novamente, Holderlin quando criticava os alemães do seu tempo: “Entre os alemães encontrarás artesãos, mas não homens; pensadores, mas não homens; sacerdotes, mas não homens; senhores e criados, jovens e adultos, mas nenhum homem”. Se isso acontecia em tempos do poeta que exclamava “para que poetas em tempos de miséria?”, podemos facilmente concluir perante o panorama de hoje, e num universo que carece da seriedade do povo germânico…..Uma advertência contra os que prestam culto à utilidade e não à verdade. Não se pode vincular as humanidades ao mercado laboral, aos dividendos que podem render a curto prazo, ao que é útil no sentido mensurável da palavra.

Llovet não se ilude, a culpa é mesmo do sistema, dos professores que são coniventes com a mediocridade. “Se a literatura vincula-se somente a teorias recônditas, se não é colocada constantemente do lado da vida mesma, das condições sociais e do nosso quotidiano, as aulas de literatura não servem para praticamente nada”.  Essa atitude explica que hoje não existam discípulos, nem escolas de pensamento, apenas alunos que são clientes em busca do título.

As recomendações que fazia Diderot para a Universidade de S. Petersburgo, trazem mais luz sobre o tema: “O objeto de uma escola pública não é produzir um homem profundo de um gênero qualquer, mas inicia-lo numa série de conhecimentos cuja ignorância o converteria em alguém prejudicial em todos os estados de vida, e mais ou menos vergonhoso em alguns deles. Gerar homens de bem e não apenas sábios”. E também Jovellanos, o intelectual espanhol, que advertia contra o perigo da especialização sem critério: “esta especialização, tão proveitosa para o progresso, é funesta para o estado das ciências. Se quebramos a árvore da sabedoria, de nada aproveita ter ramas frondosas, se perdemos a conexão que entre si tem todos os conhecimentos humanos”. Já dizia Ortega –a lembrança é minha- que o especialista é um ser perigoso, porque sabendo apenas algumas coisas em certa profundidade, tem a pretensão de opinar e pontificar sobre tudo com a mesma arrogância.

Mas, no meio desta enxurrada de críticas –são histórias que o autor pessoalmente viveu e vive- despontam também as sugestões e a esperança   “Se depois da conquista de Europa pelos bárbaros, surgiu o proto-renascimento Carolíngio, é possível recuperarmos um novo renascimento hoje, com a reincorporação dos homens de letras e dos humanistas: teremos de esperar e não baixar a guarda. É preciso entender que o saber clássico tem uma função muito peculiar: o de ser um conservador nas ruinas do tempo. E por isso os humanistas, os que cultivam as humanidades, sabem extrair das culturas as formas produtivas e refinadas do pensamento e produção artística , compreende-las e criar os meios para que o resto da sociedade possa também pensar e perceber nesse mesmo nível. Uma tentativa que permite que o humano não se degrade, e ocupe o lugar que lhe corresponde. Quase poderíamos dizer, com Llovet e com Holderlin, “para que humanidades nestes tempos de Facebook?”….A resposta é por conta de cada um de nós.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte:  <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/12/11/jordi-llovet-adios-a-la-universidad-el-eclipse-de-las-humanidades/#more-2523>

A hora e a vez das Humanidades

Política e Sociologia | 28/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Joven Lendo - Matthias

Já dizia Nietzsche, no final do século XIX: “Cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores. Por fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral. Conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum. (…) A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos”.

Esse panorama traçado pelo filósofo expõe uma visão corrente: a constatação de uma ausência de referências estáveis que, como resultado, gera um vazio existencial, uma falta de sentidos últimos para a vida. Perguntas como “É possível acreditar em verdades seguras?”, ou “Existem valores universais?” deixam de obter respostas, suscitando uma situação em que impera a dúvida ou até um ceticismo radical.

Nietzsche não lamentou o cenário que vislumbrou: pelo contrário, celebrou-o, enxergando ali a oportunidade para que tivéssemos um tipo de vida grandiosa, nobre, tornando a existência algo sublime, livre dos ídolos do passado.

O fato é que a vida de Nietzsche não terminou de modo “sublime”. Aliás, muito longe disso…

Ao enxergar o vazio existencial como uma “oportunidade” e não como um problema preocupante, ele cavou a própria cova: não entendeu que a falta de sentido é algo devastador para o ser humano.

Portanto, o que poderia ser chamado de “crise de sentido na modernidade” – abordada, de diferentes modos, por vários outros autores, como Camus, Beckett, Sartre, Musil, Kafka – não se mostrou como a salvação: é na verdade um problema a ser enfrentado. E aqui surge um vácuo que não pode ser preenchido com estatísticas, gráficos e porcentagens.

Nesse contexto, têm sido freqüentes discursos que buscam revalorizar as Humanidades.

Para ficarmos apenas com alguns exemplos, em recente livro, o professor de literatura italiana, Nuccio Ordine, ressalta como a lógica economicista imperante tem enxergado as Humanidades como algo inútil, por aparentemente não trazer benefícios imediatos. O autor procura desmontar tal visão, recuperando a importância dos clássicos, não por mera erudição, mas para lidarmos com os dilemas próprios do mundo contemporâneo.

Em um de seus últimos livros, a filósofa Martha Nussbaum diagnostica o que considera um “câncer” nas discussões atuais sobre educação: a tendência a abordá-la sob uma visão que busca meramente capacitar as pessoas para contribuírem para o PIB per capita da nação. Isso teria desvalorizado o apreço pelas Humanidades, o que segundo a autora é um perigo para qualquer sociedade que intenta promover valores democráticos.

Enfim, essas percepções tem sido uma tendência. Mas, o que a valorização das Humanidades poderia ajudar no que diz respeito ao vácuo existencial do mundo moderno?

Justamente, na questão da busca pelo sentido. Como afirmou o psiquiatra Viktor Frankl, reinterpretando ao seu modo justamente uma frase de Nietzsche – “quem tem um por que para viver, suporta quase qualquer como”.

E, se a frase citada “faz sentido”, também poderíamos dizer que “quem NÃO tem um porque para viver, NÃO suporta qualquer como”. E, com isso, temos indivíduos sem grandes perspectivas de futuro; insatisfeitos com os menores incômodos que aparecem; centrados nos seus próprios desejos superficiais; incapazes de lidar com os fracassos; e, para melhorar a situação, sempre prontos a demandar os seus “direitos inalienáveis”, como se o mundo estivesse ao seu dispor. Não é por acaso que os psicoterapeutas tem feito tanto sucesso: afinal, o sentido ficou nebuloso, mas a vida continua. E, uma vida vazia não é uma “oportunidade”, mas sim uma prisão, um absurdo.

Em um de seus quadros mais famosos, Paul Gauguin deu o seguinte título: “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?”. Talvez seja um bom momento para enfrentarmos novamente essas questões fundamentais da existência, não para cair na prisão do absurdo, mas para vislumbrar novos horizontes de sentido. E é por isso que talvez essa seja a hora e a vez das Humanidades.

Guilherme Melo de Freitas é mestre em sociologia pela USP, professor e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, 11 de Julho de 2014, Página A2 – Opinião.

Imagem:Jovem lendo“, de Mathias Stomer (1615–1649) – Holanda. Imagem em Domínio Público.