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[RESENHA] Além do embuste, aquém da qualidade – por Luiz Felipe Estanislau do Amaral

Política e Sociologia | 09/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Dados técnicos: Alan Sokal, Beyond the Hoax: Scien-ce, Philosophy and Culture. Oxford University Press, 465 págs.

 

A história é famosa, ou pelo menos foi durante um tempo: em 1996, Alan Sokal, um físico da Universidade de Nova York, enviou para uma revista acadêmica de destaque um artigo com páginas e páginas de besteirol pós-moderno sem sentido, cheio de jargões e expressões de significado pouco preciso, com pitadas de Derrida e Lacan, elogios aos editores da revista, um contexto tosco de interdisciplinaridade e, obviamente, nenhuma contribuição para o conhecimento humano. Surpreendentemente ou não, o artigo foi publicado. Não é necessário dizer que meses depois da publicação, exposta a farsa, os editores da revista-alvo, a Social Text (isso mesmo, “Texto Social”), ficaram um tanto quanto bravos, enquanto Sokal ficou um tanto quanto famoso (talvez o máximo que um especialista em mecânica estatística possa ficar). Em Beyond the Hoax: Science Philosophy and Culture, Sokal promete, como diz o título, ir além do embuste. Não chega muito longe.

O livro se divide em três partes. Na primeira, The Social Text Affair, de longe a mais interessante, Sokal revisita o caso que lhe deu fama, além de tecer comentários sobre o pós-modernismo e sua relação com a ciência. Na segunda, Science and Philosophy, de longe a mais útil para o leitor, Sokal passeia pela filosofia da ciência e defende suas posições sobre o assunto. Na terceira, Science and Culture, de longe a mais desastrada, Sokal estraga um livro que, até então, rendia boa leitura.

Infelizmente, o livro começa no seu pico. O primeiro capítulo, The Parody, Annotated é a reimpressão do artigo publicado na Social Text, com exaustivas notas de Sokal sobre sua escrita, sobre a veracidade (e até mesmo a inteligibilidade!) dos seus parágrafos e sobre a construção do seu título: Transgressing the boundaries: Towards a transformative hermeneutics of quantum gravity (Transgredindo as fronteiras: Rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica), um clássico instantâneo. Entretanto, é preciso que fique claro que não são apenas as piadas que trazem qualidade ao capítulo: as notas de Sokal sobre a construção do artigo jogam luz em problemas sérios pelos quais as humanidades passam atualmente. O autor dá exemplos e exemplos de raciocínios logicamente improcedentes, de definições pouco precisas (propositadamente, talvez), da transposição incorreta de conceitos de uma área do conhecimento para outra etc.

Mas uma vez observado o embuste, fica a impressão de que há em Sokal um lado “espírito de porco”. Entretanto, parece muito defensável a posição segundo a qual, em determinadas ocasiões, um espírito de porco é necessário. E no caso de Sokal, ou melhor, de universidades assoladas pelo relativismo, desconstrucionismo etc., um desses espíritos é de fato necessário. Grande decepção é saber, nos capítulos seguintes, que a motivação de Sokal é política: combater tendências intelectuais “inimigas dos valores e do futuro da esquerda” (página 95). Deve haver um ditado sobre fazer a coisa certa pelos motivos errados…

Contudo, pelo menos é nisso que gosto de acreditar, as motivações políticas não tiram o valor das ações de Sokal, da mesma forma que sua confissão não tira o valor da primeira parte do livro. No quarto capítulo, por exemplo, o autor discorre sobre os science studies, uma área do conhecimento cujos proponentes pretendem explicar a evolução do conhecimento científico por meio de fatores sociais e incentivos intrínsecos aos cientistas, sendo a busca pela verdade algo secundário. E é a partir de tal premissa que se chega à necessidade de uma ciência livre de preconceitos sociais como o machismo. É com muita delicadeza que Sokal expõe os problemas de uma tal visão de ciência.

De forma geral, não há muito conteúdo na primeira parte do livro, mas sua leitura ainda vale pela crítica às tendências pós-modernas nas humanidades e pela hilária leitura de Transgressing the Boundaries. A segunda parte, Science and Philosophy, conserta esse defeito específico da primeira.

Science and Philosophy tem dois capítulos: Cognitive relativism in the philosophy of science e Defense of a modest scientific realism. O primeiro deles é o que torna o livro mais do que a mera revisão de uma situação engraçada ocorrida anos atrás. O capítulo busca entender o fundamento de um vício intelectual da atualidade: a noção de relativismo cognitivo, isto é, a noção de que afirmações factuais objetivas sobre o mundo não são passíveis de serem classificadas como verdadeiras ou falsas, a idéia de que uma teoria é verdadeira para determinado grupo de pessoas ou dentro de um contexto específico. Com isso, Sokal também introduz o leitor em temas atualmente em debate na filosofia da ciência.

Nesse texto, fica patente uma das grandes vantagens do estudo sério e dedicado das ciências exatas. Sokal é muito claro em suas definições e extremamente consciente dos limites dos seus argumentos, algo que torna o capítulo didático e confere-lhe um tom de honestidade intelectual muito forte. De modo muito interessante, nos capítulos finais do livro, nos quais trata de questões culturais, políticas e religiosas, as definições de Sokal perdem precisão e os argumentos sérios perdem espaço para piadinhas. Mas força é convir que Cognitive relativism in the philosophy of science faz um trabalho sério ao rejeitar posições epistemológicas extremas como o solipsismo e o relativismo, e aborda com clareza certas questões da filosofia da ciência. Em um tempo em que o gênero popular science toma de assalto as listas de best-sellers, a idéia de popular epistemology ganha muito valor.

Fecha a segunda parte do livro um capítulo sobre duas lutas: uma entre os que acreditam no conhecimento científico e aqueles que não acreditam, e outra entre diferentes visões do conhecimento científico. Quanto à primeira, não há nada que não esteja presente nos capítulos anteriores; quanto à segunda, o autor identifica diferentes meios de entender a ciência. Sokal expõe, por exemplo, as vantagens e desvantagens do realismo científico, opondo-o à visão instrumentalista, que também é criticada. Ao final, fica a defesa de um “modesto realismo científico”, que pretende entender como o mundo é de fato, mas que compreende que tal empreitada possui muitos obstáculos e pode nunca chegar a alcançar plenamente seu objetivo. Assim como o capítulo anterior, este constitui leitura interessante e útil.

Mas o que há de interessante e útil no livro pára na modesta defesa do realismo científico. A última parte de Beyond the Hoax não passa de um espaço para Sokal dar suas opiniões sobre política e religião, nada mais. Ao ponto, inclusive, de deixar o leitor imaginando o que ocorreu com o capítulo sobre futebol (para ser perfeitamente honesto, contudo, devo avisar que há uma nota de rodapé mencionando a existência de David Beckham e uma ou outra metáfora sobre baseball ao longo dos capítulos).

No primeiro capítulo da terceira parte, por exemplo, Sokal tenta estabelecer a relação entre o pós-modernismo e as pseudociências. Depois de definir convenientemente tanto um quanto o outro termo, ele parte para dar exemplos abundantes de como os dois fenômenos caminham juntos e presenteia o leitor com cinqüenta páginas sobre as relações entre o pós-modernismo e as pseudociências na enfermagem e no nacionalismo hindu. Mas ao menos Sokal admite que não foi capaz de dar os exemplos abundantes que imaginou de início. Portanto, ele parte para o próximo alvo: as religiões; porque para Sokal as religiões são pseudociências e ele faz questão de demonstrá-lo no apêndice do capítulo oito (mais precisamente na nota de rodapé número 274). Contudo, deve-se supor que o físico não faz um trabalho razoável ao incluir as religiões em uma definição de pseudociência que ele próprio cunhou.

Logo em seguida, em Religion, politics and survival, Sokal volta a atacar as religiões, mas dessa vez misturando o assunto com política e tomando o cuidado de advogar um melhor entendimento de seus mecanismos. O motivo é simples: os EUA são um país extremamente religioso e a esquerda americana não pode ignorar esse fato para colocar em prática sua agenda progressiva. É nesse ponto que ficam claros os elogios que o livro recebe de Noam Chomsky na contracapa.

Obviamente, não se trata de criticar Sokal por suas idéias sobre política ou religião. Tampouco é o caso de criticá-lo por incluir esses assuntos em um livro sobre ciência: para o autor, suas visões sobre religião e política estão relacionadas ao lugar que ele acredita que a ciência deve assumir na sociedade e ele argumenta nesse sentido. Entretanto, fica a impressão de que o caso da Social Text não é o embuste ao qual o título se refere. Ao tratar de política, Sokal comete os mesmos erros dos humanistas que critica, fazendo uso de conceitos sem significado preciso (não é possível que alguém que reclame do uso incorreto de “linearidade” use o termo “capitalismo” acreditando que está se referindo a algo bem demarcado). E ao tratar de religião, Sokal não vai além da leitura da Bíblia. Mas, em retrospecto, devemos lembrar que a grande motivação do caso da Social Text foi política.

Um último comentário se faz necessário, mas não sobre o conteúdo do livro. Os capítulos que compõem Beyond the Hoax são, em sua grande maioria, ensaios publicados em livros e revistas diferentes, mas todos sobre assuntos próximos. Infelizmente, isso torna o livro um tanto quanto cansativo e repetitivo. Existem citações e definições repetidas, além de, inclusive, um parágrafo praticamente idêntico em dois capítulos diferentes. Contudo, tais repetições, para o leitor paciente, não chegam a estragar a leitura. Pelo menos a leitura das primeiras partes do livro.

Resenha publicada na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 2, Dezembro de 2008.