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[RESENHA] Além do embuste, aquém da qualidade – por Luiz Felipe Estanislau do Amaral

Política e Sociologia | 09/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Dados técnicos: Alan Sokal, Beyond the Hoax: Scien-ce, Philosophy and Culture. Oxford University Press, 465 págs.

 

A história é famosa, ou pelo menos foi durante um tempo: em 1996, Alan Sokal, um físico da Universidade de Nova York, enviou para uma revista acadêmica de destaque um artigo com páginas e páginas de besteirol pós-moderno sem sentido, cheio de jargões e expressões de significado pouco preciso, com pitadas de Derrida e Lacan, elogios aos editores da revista, um contexto tosco de interdisciplinaridade e, obviamente, nenhuma contribuição para o conhecimento humano. Surpreendentemente ou não, o artigo foi publicado. Não é necessário dizer que meses depois da publicação, exposta a farsa, os editores da revista-alvo, a Social Text (isso mesmo, “Texto Social”), ficaram um tanto quanto bravos, enquanto Sokal ficou um tanto quanto famoso (talvez o máximo que um especialista em mecânica estatística possa ficar). Em Beyond the Hoax: Science Philosophy and Culture, Sokal promete, como diz o título, ir além do embuste. Não chega muito longe.

O livro se divide em três partes. Na primeira, The Social Text Affair, de longe a mais interessante, Sokal revisita o caso que lhe deu fama, além de tecer comentários sobre o pós-modernismo e sua relação com a ciência. Na segunda, Science and Philosophy, de longe a mais útil para o leitor, Sokal passeia pela filosofia da ciência e defende suas posições sobre o assunto. Na terceira, Science and Culture, de longe a mais desastrada, Sokal estraga um livro que, até então, rendia boa leitura.

Infelizmente, o livro começa no seu pico. O primeiro capítulo, The Parody, Annotated é a reimpressão do artigo publicado na Social Text, com exaustivas notas de Sokal sobre sua escrita, sobre a veracidade (e até mesmo a inteligibilidade!) dos seus parágrafos e sobre a construção do seu título: Transgressing the boundaries: Towards a transformative hermeneutics of quantum gravity (Transgredindo as fronteiras: Rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica), um clássico instantâneo. Entretanto, é preciso que fique claro que não são apenas as piadas que trazem qualidade ao capítulo: as notas de Sokal sobre a construção do artigo jogam luz em problemas sérios pelos quais as humanidades passam atualmente. O autor dá exemplos e exemplos de raciocínios logicamente improcedentes, de definições pouco precisas (propositadamente, talvez), da transposição incorreta de conceitos de uma área do conhecimento para outra etc.

Mas uma vez observado o embuste, fica a impressão de que há em Sokal um lado “espírito de porco”. Entretanto, parece muito defensável a posição segundo a qual, em determinadas ocasiões, um espírito de porco é necessário. E no caso de Sokal, ou melhor, de universidades assoladas pelo relativismo, desconstrucionismo etc., um desses espíritos é de fato necessário. Grande decepção é saber, nos capítulos seguintes, que a motivação de Sokal é política: combater tendências intelectuais “inimigas dos valores e do futuro da esquerda” (página 95). Deve haver um ditado sobre fazer a coisa certa pelos motivos errados…

Contudo, pelo menos é nisso que gosto de acreditar, as motivações políticas não tiram o valor das ações de Sokal, da mesma forma que sua confissão não tira o valor da primeira parte do livro. No quarto capítulo, por exemplo, o autor discorre sobre os science studies, uma área do conhecimento cujos proponentes pretendem explicar a evolução do conhecimento científico por meio de fatores sociais e incentivos intrínsecos aos cientistas, sendo a busca pela verdade algo secundário. E é a partir de tal premissa que se chega à necessidade de uma ciência livre de preconceitos sociais como o machismo. É com muita delicadeza que Sokal expõe os problemas de uma tal visão de ciência.

De forma geral, não há muito conteúdo na primeira parte do livro, mas sua leitura ainda vale pela crítica às tendências pós-modernas nas humanidades e pela hilária leitura de Transgressing the Boundaries. A segunda parte, Science and Philosophy, conserta esse defeito específico da primeira.

Science and Philosophy tem dois capítulos: Cognitive relativism in the philosophy of science e Defense of a modest scientific realism. O primeiro deles é o que torna o livro mais do que a mera revisão de uma situação engraçada ocorrida anos atrás. O capítulo busca entender o fundamento de um vício intelectual da atualidade: a noção de relativismo cognitivo, isto é, a noção de que afirmações factuais objetivas sobre o mundo não são passíveis de serem classificadas como verdadeiras ou falsas, a idéia de que uma teoria é verdadeira para determinado grupo de pessoas ou dentro de um contexto específico. Com isso, Sokal também introduz o leitor em temas atualmente em debate na filosofia da ciência.

Nesse texto, fica patente uma das grandes vantagens do estudo sério e dedicado das ciências exatas. Sokal é muito claro em suas definições e extremamente consciente dos limites dos seus argumentos, algo que torna o capítulo didático e confere-lhe um tom de honestidade intelectual muito forte. De modo muito interessante, nos capítulos finais do livro, nos quais trata de questões culturais, políticas e religiosas, as definições de Sokal perdem precisão e os argumentos sérios perdem espaço para piadinhas. Mas força é convir que Cognitive relativism in the philosophy of science faz um trabalho sério ao rejeitar posições epistemológicas extremas como o solipsismo e o relativismo, e aborda com clareza certas questões da filosofia da ciência. Em um tempo em que o gênero popular science toma de assalto as listas de best-sellers, a idéia de popular epistemology ganha muito valor.

Fecha a segunda parte do livro um capítulo sobre duas lutas: uma entre os que acreditam no conhecimento científico e aqueles que não acreditam, e outra entre diferentes visões do conhecimento científico. Quanto à primeira, não há nada que não esteja presente nos capítulos anteriores; quanto à segunda, o autor identifica diferentes meios de entender a ciência. Sokal expõe, por exemplo, as vantagens e desvantagens do realismo científico, opondo-o à visão instrumentalista, que também é criticada. Ao final, fica a defesa de um “modesto realismo científico”, que pretende entender como o mundo é de fato, mas que compreende que tal empreitada possui muitos obstáculos e pode nunca chegar a alcançar plenamente seu objetivo. Assim como o capítulo anterior, este constitui leitura interessante e útil.

Mas o que há de interessante e útil no livro pára na modesta defesa do realismo científico. A última parte de Beyond the Hoax não passa de um espaço para Sokal dar suas opiniões sobre política e religião, nada mais. Ao ponto, inclusive, de deixar o leitor imaginando o que ocorreu com o capítulo sobre futebol (para ser perfeitamente honesto, contudo, devo avisar que há uma nota de rodapé mencionando a existência de David Beckham e uma ou outra metáfora sobre baseball ao longo dos capítulos).

No primeiro capítulo da terceira parte, por exemplo, Sokal tenta estabelecer a relação entre o pós-modernismo e as pseudociências. Depois de definir convenientemente tanto um quanto o outro termo, ele parte para dar exemplos abundantes de como os dois fenômenos caminham juntos e presenteia o leitor com cinqüenta páginas sobre as relações entre o pós-modernismo e as pseudociências na enfermagem e no nacionalismo hindu. Mas ao menos Sokal admite que não foi capaz de dar os exemplos abundantes que imaginou de início. Portanto, ele parte para o próximo alvo: as religiões; porque para Sokal as religiões são pseudociências e ele faz questão de demonstrá-lo no apêndice do capítulo oito (mais precisamente na nota de rodapé número 274). Contudo, deve-se supor que o físico não faz um trabalho razoável ao incluir as religiões em uma definição de pseudociência que ele próprio cunhou.

Logo em seguida, em Religion, politics and survival, Sokal volta a atacar as religiões, mas dessa vez misturando o assunto com política e tomando o cuidado de advogar um melhor entendimento de seus mecanismos. O motivo é simples: os EUA são um país extremamente religioso e a esquerda americana não pode ignorar esse fato para colocar em prática sua agenda progressiva. É nesse ponto que ficam claros os elogios que o livro recebe de Noam Chomsky na contracapa.

Obviamente, não se trata de criticar Sokal por suas idéias sobre política ou religião. Tampouco é o caso de criticá-lo por incluir esses assuntos em um livro sobre ciência: para o autor, suas visões sobre religião e política estão relacionadas ao lugar que ele acredita que a ciência deve assumir na sociedade e ele argumenta nesse sentido. Entretanto, fica a impressão de que o caso da Social Text não é o embuste ao qual o título se refere. Ao tratar de política, Sokal comete os mesmos erros dos humanistas que critica, fazendo uso de conceitos sem significado preciso (não é possível que alguém que reclame do uso incorreto de “linearidade” use o termo “capitalismo” acreditando que está se referindo a algo bem demarcado). E ao tratar de religião, Sokal não vai além da leitura da Bíblia. Mas, em retrospecto, devemos lembrar que a grande motivação do caso da Social Text foi política.

Um último comentário se faz necessário, mas não sobre o conteúdo do livro. Os capítulos que compõem Beyond the Hoax são, em sua grande maioria, ensaios publicados em livros e revistas diferentes, mas todos sobre assuntos próximos. Infelizmente, isso torna o livro um tanto quanto cansativo e repetitivo. Existem citações e definições repetidas, além de, inclusive, um parágrafo praticamente idêntico em dois capítulos diferentes. Contudo, tais repetições, para o leitor paciente, não chegam a estragar a leitura. Pelo menos a leitura das primeiras partes do livro.

Resenha publicada na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 2, Dezembro de 2008.

 

O que é o liberal-totalitarismo? [Parte 2] (por Marcos Paulo Fernandes de Araújo)

Política e Sociologia | 02/06/2017 | | IFE BRASIL

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liberal-totalitarismo-2

Como vínhamos de falar, os escritos de John Rawls podem ser encarados como um exemplar contemporâneo bastante representativo daquilo que havia chamado pensamento liberal-totalitário. Este modo de pensar tem como ponto de partida, como já dito, o erro metafísico da abstração total. Ele se consubstancia, na teoria política – e igualmente, daí, pretende fazê-lo na prática – em um projeto político que tem por base a revolta contra a realidade e a pretensão de reconstruí-la totalmente a partir da razão.

Todavia, antes de iniciarmos as considerações sobre o projeto político do autor, talvez convenha ressaltar qual seja o aspecto mais propositivo dele, isto é, aquilo em que ele se pretende apresentar como um melhoramento relativamente ao estado prévio das discussões sobre o direito e a justiça.

No caso de Uma teoria da justiça, a proposta de Rawls consiste justamente em “apresentar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista em geral e, portanto, a todas as suas versões”[1], que, segundo ele, prescreveriam como meta da atividade social uma maximização do bem geral da sociedade, ou seja, da soma de satisfações desfrutada pelas pessoas, sem atentar à maneira como estas seriam distribuídas entre elas.

Tendo por base essa afirmação acerca da teoria que pretende desbastar, aponta como um dos propósitos declarados de seu projeto o de que “a violação da liberdade de poucos não possa ser justificada pelo bem maior compartilhado por muitos”[2]. Arremata afirmando que “em uma sociedade justa, as liberdades fundamentais são inquestionáveis e os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo dos interesses sociais”[3].

Segundo Rawls, na teoria utilitarista, o legislador ideal agiria fundamentalmente como um empresário, e isso se daria justamente em razão de que tal figura, ao calcular o saldo máximo de satisfação que seria a meta das leis elaboradas, apoiar-se-ia numa extensão indevida de um princípio de escolha projetado para um único ser humano, para a sociedade, fundindo todas as pessoas por meio de atos imaginativos do observador imparcial empático.[4] O utilitarismo, portanto, não levaria a sério a distinção entre as pessoas, segundo o autor de Uma teoria da justiça.

Pois bem: Rawls pretende ver superado esse suposto vício fundamental da teoria utilitarista, ao formular uma teoria da justiça que, em vez de considerar os princípios de escolha de um único ser humano, na sua totalidade, presume um pacto hipotético em que as “pessoas” irão aceitar, “de antemão, um princípio de liberdade igual, e sem conhecer os seus próprios objetivos específicos”[5]. Apesar de que diante de uma tal afirmação nossa “idéia intuitiva” seja vociferar um sonoro palavrão polissilábico composto, nossas reflexões ponderadas nos levam a crer que o melhor será dizer que nada poderia ser mais desprezível à pessoa, em sua singularidade, e em sua singular relacionalidade, do que tal formulação. Se há algo que não toma a sério as distinções entre pessoas é essa suposição, que as considera todas igualmente livres, num plano abstrato, isto é, igualmente indeterminadas, como um estratagema para justificar, contra todos os fatos, uma igual esfera de poder, ao argumento de que são todas igualmente capazes de escolher o bem.

De igual modo, deve-se precisar que a teoria de Rawls subverte, mais ainda que a teoria utilitarista, o são pensamento ético, na medida em que, se esta considera ser o justo um meio para maximizar o bem, o que já é errado, sua teoria faz muito pior, ao fazer uma instrumentalização contrária, e pretender ver o bem utilizado como ferramenta para obter “o justo”. Pois o bem é, de certa maneira, independente do justo, e não o contrário, na medida em que o justo é o bem de outro, e que se o conhece necessariamente a partir do bem de si, como demonstra o primeiro princípio específico da lei natural “todo ser vivo busca a conservação de sua vida”[6]. Porém Rawls dá por garantido que o bem de outro será atendido simplesmente se tornarmos mais indefinida sua identidade e mais indeterminadas suas aspirações.

Nada mais apropriado à figura do legislador rawlsiano, neste caso, do que o comentário de Voegelin acerca do sofista Pólo no Górgias: “Ele é o tipo de homem que irá piedosamente louvar o governo do direito e condenar o tirano, mas que fervorosamente inveja o tirano e não amaria nada mais do que sê-lo um ele próprio. Numa sociedade decadente, ele é o representante do grande reservatório de homens comuns que paralisam todos os esforços de ordem e proporcionam conivência popular na ascensão do tirano. ”[7] Ora, se no caso do utilitarismo, poderíamos configurar como despótica a pretensão do legislador ideal que pretendesse impor à sociedade sua visão de mundo através da imaginação empática, podemos configurar como totalitária a aspiração de Rawls, que pretende impor a visão moral de ninguém, visão moral a partir de lugar nenhum, ao resto da sociedade – sem imaginação empática, mas a partir de um Gedankenexperiment, de uma equação matemática.

Deste modo, vemos que o problema de Rawls com o utilitarismo não é o seu caráter instrumentalizador, mas, antes, a unidade da pessoa, ou, ainda, qualquer cosmovisão que constitua as preferências de uma pessoa. Ele confunde o desprezo pelo “bem-comum”, das teorias utilitaristas, com o apreço delas pelo “bem particular”, e acha que este está sempre contra aquele. Dessa forma, se o utilitarismo impõe sobre todos o bem de uma pessoa singular, mas possível, Rawls impõe um bem abstraído das pessoas reais, segundo a idéia que ele faz daquilo que deva servir a “qualquer pessoa selecionada ao acaso”[8], uma pessoa sem forma, sem princípios de ação, sem hierarquia de bens, uma pessoa que tem apenas indeterminações e… necessidades. Todavia, é impossível chegar ao bem-comum de uma comunidade sem passar pelo bem particular da pessoa. Isso foi afirmado expressamente por S. Tomás, que disse que “o bem de um só é anterior ao bem de muitos, que consurge a partir dos bens dos singulares.”[9]

Esse amor pela “humanidade”, ou melhor pela “sociedade”, ou, ainda, pelo conceito que ele faz de ambas, segundo o qual a “a pluralidade de pessoas diferentes com diversos sistemas de objetivos é uma característica essencial das sociedades humanas”[10], leva-o a desprezar o próprio objeto da virtude da justiça, ou, ao menos, o da comutativa, que é o “bonum alterius singularis personae”[11]. E amostra maior desse desprezo não poderia estar mais evidente do que na concepção de inveja de Rawls “como a propensão a considerar com hostilidade o maior bem dos outros, mesmo que o fato de eles serem mais privilegiados que nós não diminua nossas vantagens”[12] – cujo efeito é que estejamos dispostos a diminuir as vantagens de outrem mesmo que as nossas também o sejam[13] – quando ela consiste justamente, numa definição comunicável, em que “de algum modo o bem de outrem seja estimado como mal na medida em que é diminutivo da própria glória e excelência.”[14]

Uma das razões da inveja radica em que, como disse S.Tomás, algumas coisas não permitem a fruição de mais de uma pessoa ao mesmo tempo, como sói acontecer com as coisas temporais, o que advém do próprio caráter intrinsecamente limitado delas. Daí o bem alheio, na medida em que não pode ser desfrutado por alguém, dar origem à inveja, [15] por ser considerado impeditivo do seu próprio bem pelo invejoso.[16] Pela inveja, complementa ainda o Doutor Angélico, toma-se o bem de outrem como mal próprio[17]. Já para Rawls, a inveja ocorrerá justamente “na medida em que as diferenças entre esse indivíduo e os outros não exceda certos limites, e que ele não acredite que as desigualdades existentes estão fundadas na injustiça ou resultam da aceitação do acaso, sem nenhum propósito social visando compensá-las.” [18] Essa concepção parece, no mínimo, temerária e não constitui um apoio seguro para qualquer ordem social, tornando instável a ordem jurídica e política, caso aplicada: mais ainda quando lemos no mesmo livro a dificuldade que o autor tem de expor o que para ele sejam as “injustiças […] mais cruéis”, termo que, para ele, evoca uma idéia “extremamente genérica”, cuja “avaliação do grau de afastamento do ideal dependerá em grande medida da intuição.”[19]

Essa revolta contra a pessoa singular e concreta, contra o objeto da justiça particular, o “bonum alterius singularis personae”, que, como afirma S. Tomás, não é o fim de cada uma das outras[20], vai de par com uma insurreição também contra as sociedades e as estruturas sociais concretas. Toda a empreitada de Rawls consiste também numa grande invectiva contra a natureza e a sociedade historicamente constituída, na medida em que ela é considerada “o resultado cumulativo de distribuições anteriores dos dotes naturais […] conforme foram cultivados ou deixados de lado, e seu uso foi favorecido ou preterido, ao longo do tempo, por circunstâncias sociais e contingências fortuitas tais como o acaso e a boa sorte […] fatores tão arbitrários do ponto de vista moral.”[21]  Ou seja, toda a criação e, a reboque, toda sociedade humana pretérita são um grande nonsense moral, cujo sentido último apenas agora é desvelado diante dos nossos olhos – e ainda deveríamos agradecê-lo por isso! – por John Rawls. Diante de tal cenário, o autor propõe que “as vantagens dos que têm dotes naturais maiores devem limitar-se àqueles que promovem o bem dos setores mais pobres da sociedade”[22].

Essa noção, contudo, não é comunicável. Como pretender liberal um sistema em que não apenas o bem de um não deve prejudicar o outro, mas deve sempre promover necessariamente o bem do outro, e não de um outro qualquer, mas daquele que está mais abaixo dele no elo da cadeia social? Assim, Rawls presume, vejamos bem, PRESUME (aliás, ele presume, muito mais do que um filósofo deveria, e intui o tempo todo, sendo sua teoria um grande exercício de intuição presunçosa), que a vantagem dos que estão “acima” na cadeia social, caso beneficie quem está “mais abaixo” na sociedade, necessariamente beneficiará as classes intermédias.[23] Isso não apenas não é verificável, como tem, também, seu contrário ocorrendo em diversos cenários da história da humanidade: desde a extinção dos parlements, e das corporações de ofícios e associações de agricultores pela Loi Le Chapelier, na França, até a aversão à família – praticamente a última sociedade intermédia que restou na sociedade brasileira atual –, e à classe média manifestada por certos setores da sociedade urbana no Brasil, em nome de um discurso há muito refutado, mas ainda muito disseminado, por afagar de maneira extremamente cômoda o senso que cada “playboy” da Zona Sul pretende ter de pertencer à camada mais esclarecida e mais sedenta de justiça, mais moralmente elevada da população: o socialismo.

O liberal-totalitarismo de John Rawls reflete aquilo de que falou Chantal Delsol, ao tratar da imanentização da igualdade dentro do quadro de teorias políticas desprovidas de uma ontologia – como é a de Rawls: “teoria política, não metafísica” –: “os desejos (traduzidos em necessidades) tomam o lugar das aspirações. Estas últimas, espirituais, podiam continuar insaciáveis sem gerar infelicidade, ao passo que os desejos/necessidades insaciáveis suscita revoltas e ressentimentos sem fim”, concluindo, no parágrafo seguinte: “A inveja se tornou uma virtude.”[24]

Tudo o que fez Rawls, com sua teoria, foi uma repaginação do socialismo Fabiano nas discussões econômicas e amenizada no seu discurso. Aqui, nada de palavras-de-ordem, discursos incisivos e condenações taxativas; apenas “idéias intuitivas”, “convicções ponderadas” e “suposições”. Contudo, o totalitarismo proveniente da linguagem da abstração-total, que se esquece dos singulares, continua presente, conquanto dissimulado. É um totalitarismo sonso: sonso como John Rawls.

No próximo, e último, artigo, veremos como essa revolta de Rawls não consiste apenas numa revolta contra o bem dos indivíduos singularmente considerados, nem mesmo apenas do Estado, mas também contra o próprio fundamento da realidade, com suas idéias de razão pública e consenso sobreposto.

 

NOTAS:

[1] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. (§ 5 O utilitarismo clássico) p. 26-27.

[2] Ibid. (§ 5 O utilitarismo clássico) p. 32. Seja lá o que tenha querido dizer com essa frase, foi, no mínimo, infeliz ao expressá-lo, e os bandidos de todo o mundo provavelmente muito se contentariam em ouvi-la.

[3] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 34.

[4] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 35.

[5] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 37.

[6] Santo Tomás de Aquino. S Th., I-IIae, q. 94, art. 2, r.

[7] VOEGELIN, Eric. Ordem e História: III – Platão e Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2009, p. 87-88.

[8] RAWLS, John. Op. cit. (§24. O véu da ignorância), p. 169.

[9] Scriptum Super Sententiis, lib. 4 d. 23 q. 2 a. 4 qc. 2 expos. “Bonum autem unius est prius quam bonum multorum, quod ex singularibus bonis consurgit.”

[10] RAWLS, John. Op. cit. (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 35.

[11] Santo Tomás de Aquino. Summa Theologiae IIa-IIae, q. 58 a. 7 ad 1

[12] RAWLS, op. cit. (§80 O problema da inveja) p. 656.

[13] Eod. loc.

[14] Santo Tomás de Aquino. S. Th. II-IIae, q. 36, art. 1, r.

[15] Santo Tomás de Aquino. Scriptum Super Sententiis, lib. 3 d. 27 q. 1 a. 1 ad 3.

[16] Em outra passagem – Scriptum Super Sententiis, lib. 2 d. 5 q. 1 a. 3 ad 2 – o Aquinate fala que “a inveja é a dor pela prosperidade alheia, na medida em que é impeditiva de algum bem próprio.” “[…] invidia est dolor alienae prosperitatis, inquantum est impeditiva alicujus boni proprii.”

[17] Santo Tomás de Aquino. Summa Contra Gentiles, lib. 1 cap. 89 n. 12.

[18] RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes. (§80 O problema da inveja) p. 656.

[19] Ibid., (§ 39. Definição da prioridade da liberdade), p. 305.

[20]  Santo Tomás de Aquino. S. Th. I-IIae, q. 90, art. 3, ad. 3: “bonum unius hominis non est ultimus finis”. Santo Tomás de Aquino. S. Th. II-IIae, q. 58, art. 9, ad 3. “Bonum autem unius personae singularis non est finis alterius.”

[21] RAWLS, John. Op. cit., (§12. Interpretações do segundo princípio), p. 89.

[22] Eod. loc.

[23] Ibid., (§13. A igualdade democrática e o princípio de diferença) p. 96-97.

[24] DELSOL, Chantal. La haine du monde : totalitarismes et postmodernité. Paris : Du Cerf, 2016, p. 99.

 

Imagem: A Inveja’ (Óleo sobre tela) – Jacques de Backer (1570-1575) Museo di Capodimonte, Nápoles, Itália.

* Marcos Paulo Fernandes de Araújo é Bacharel e Mestre em Direito (teoria e filosofia do direito) pela faculdade de direito da UERJ.

O que é o liberal-totalitarismo? [Parte 1] (por Marcos Paulo Fernandes de Araújo)

Política e Sociologia | 26/05/2017 | | IFE BRASIL

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liberal-totalitarismo-1

La grande confrontation moderne est la
confrontation avec le totalitarisme.
JEAN MADIRAN

 

O grande confronto moderno, como afirma Jean Madiran, na frase da epígrafe, é o confronto com o totalitarismo. O século XX esteve repleto de episódios desse confronto, com milhões de mortos, em campos de concentração, câmaras de gás, confisco de propriedade, humilhação, tortura e valas comuns, fosse em nome de um nacional socialismo ou de um socialismo internacional. Seja como for, características comumente atribuídas a ambos os movimentos são o seu flagrante autoritarismo e, o que não é menos importante, seu desrespeito às leis: regime de culto ao líder, partido único, falta de ritos de justiça, subversão das instituições, assassinatos, julgamentos na calada da noite, clandestinidade, ocultamento…

Houve, ainda, regimes autoritários no século XX, muitos dos quais nitidamente não poderiam ser qualificados como totalitários, e nesse particular a classificação de Juan Linz parece resolver a questão. Contudo, parece difundido (ainda mais em um país em que uma narrativa canhestra da história do período logrou uma prevalência que só recentemente vem sendo contestada) certo pensamento segundo o qual, embora seja verdade que nem todo o regime autoritário é totalitário, todo regime totalitário é necessária e previamente autoritário, e que, portanto, qualquer discurso que pudesse pender – por pouco que fosse – para o autoritarismo seria um prelúdio inelutável ao totalitarismo. Daí que muitas pessoas pensem ser o totalitarismo coisa do passado, ao mesmo tempo em que enxergam em coisas do passado – como um certo discurso que apela ao povo, e a atuação de uma certa bancada no Congresso Nacional – as maiores ameaças de totalitarismo. Mas serão mesmo verdadeiras ou, ao menos úteis, tais associações de idéias?

Não parece que seja assim, por pelo menos duas razões. A primeira é que o totalitarismo de esquerda historicamente foi gerado a partir de um discurso libertador e emancipatório. Foi assim que, a partir do discurso de Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, bem como do de Karl Marx no século XIX, produziram-se as carnificinas da breve, mas sangrenta, Revolução Francesa – esta, ainda ao fim do século em que foi premiado o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens –, e também a da Revolução Russa – no início do século subseqüente à publicação do Manifesto Comunista. Logo, a predominância atual de discursos autointitulados “emancipatórios” nada depõe em favor de uma nova era isenta de totalitarismos; antes, pelo contrário, torna a iminência de desastre tanto mais provável quanto mais dissimulado é, no plano do discurso, o caráter francamente violento das práticas políticas revolucionárias.

A segunda razão é que as instituições do Ocidente, apesar de até há pouco tempo terem apresentado uma aparência de harmonia social, estão colapsando, e de que o ‘rule of law’ do ‘estado democrático de direito’ tem se demonstrado insuficiente para manter a sociedade dentro de limites minimamente saudáveis de entendimento mútuo e amizade política. E isso não surpreende, pois, afinal, como afirmou Solzhenitsyn acerca da democracia na América, no seu famoso discurso inaugural do ano letivo de 1978-79 na Universidade de Harvard, (Disponível aqui: http://www.americanrhetoric.com/speeches/alexandersolzhenitsynharvard.htm), logo após ter mencionado o regime soviético, em que estava ausente o ‘rule of law’: “uma sociedade sem nenhuma outra escala de valores além da legal não é, igualmente, digna do homem. Uma sociedade que é baseada na letra da lei e jamais alcança algo superior lança mão de uma vantagem muito pequena dentre aquelas possíveis ao ser humano. A letra da lei é por demais fria e formal para exercer um influxo benéfico sobre a sociedade. Onde quer que a trama da vida humana se veja tecida por relações legalísticas, cria-se uma atmosfera de mediocridade moral, paralisante dos mais nobres impulsos humanos. E será simplesmente impossível resistir às provações deste século ameaçador somente com o apoio em uma estrutura legalística. ”

Em suma, nada garante que um discurso “emancipatório” e a predominância de instituições e processos decisórios tais como a chamada “democracia representativa” e o “rule of law” consistam em algo, no primeiro caso, contrário, e no segundo, suficiente face ao totalitarismo, cujo fundamento filosófico se encontra para mais além desses fenômenos.

Afinal, como bem observado por Graneris “toda filosofia começa na metafísica e desemboca na política” (Contribución tomista a la filosofia del derecho, p. 129), e não é em outro lugar que deve ser buscado o fundamento último do totalitarismo. Ele toma por seu este seguinte nome: “abstração total”. A “abstração total” consiste num modo de abstrair que, tirando o universal do singular, se esquece que de que, em primeiro lugar, o singular estava ali. A partir desse tipo de operação, começa-se a trabalhar sobre a realidade apenas a partir de idéias, sem reconhecê-la, e sem a ela retornar, por despicienda. É na “abstração total” que reside a fonte de toda ideologia, que se olvida do ato de ser dos entes, de sua presença real, para trabalhar com conceitos – a princípio tomados como quiditativos e exaurientes da realidade – que, posteriormente, são desprezados em prol de outros – meramente quantitativos e instrumentais –, mas não porque estes ajudam a conhecê-la, e sim porque permitem crescer a ilusão manipulatória.

Essa postura metafísica (ou, talvez, antimetafísica), embora se encontre já presente na Idade Média, com Escoto (que confundia os planos lógico e ontológico, fazendo de cada distinção lógica uma entidade substancial), desemboca, em suas consequências, na formulação assaz representativa de Karl Marx, nas suas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos tem somente tentado interpretar o mundo; chegou o momento, porém, para que ele seja transformado.” (tradução livre do original alemão: “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt darauf an, sie zu verändern.“) Como se, é claro, a compreensão do mundo fosse algo que já estivesse terminado, e que fosse razoável fechar-se à realidade em nome de uma apreensão incompleta dela, que é, ademais, sempre o máximo a que podemos chegar.

Na política, esse fenômeno da “abstração total” se reflete no fenômeno da representação, pela qual um partido (ou seja, uma parcela da sociedade), interpõe-se à sociedade-civil e o Estado, impondo, através deste, uma visão dela a partir de um suposto exterior. Ora, as diversas autoridades da sociedade civil não têm seu poder baseado na representação, e tampouco na liberdade e na igualdade, mas na presença, em vínculos constituídos e na preeminência: em outras palavras, elas não são, em grande medida, fruto da eleição subjetiva de quem me representa, mas do reconhecimento de quem já está presente, com quem já me encontro em relação e que se me preleva. Daí haver reparado Pierre Manent que: “Uma vez que num país democrático as circunstâncias dêem uma chance à escalada totalitária, a sociedade-civil estará vulnerável, porque semelhante escalada totalitária poderá dirigir contra os poderes intra-sociais a própria ideologia democrática, sem ter necessidade de recorrer à sua própria ideologia. Mais precisamente, ela poderá utilizar o princípio representativo de uma maneira puramente instrumental. Contrariamente à opinião convencional, a idéia representativa enfraquece intrinsecamente a legitimidade da sociedade civil, e põe em perigo sua independência.” (Enquête sur la démocratie, p. 89, n. 1) Dessa maneira, a confusão entre os planos conceitual abstrato e o ontológico – presente, por exemplo, na metafísica agostinista do tardo-medievo –traduz-se, na modernidade, na tendência à indistinção entre Estado como governo totalmente abstraído do seio da sociedade-civil, pelo conceito de soberania, e ela própria, na medida em que esse mesmo Estado se vale da soberania para a ela se impor.

Mas o fenômeno totalitário moderno, por mais que se o queira atribuir precipuamente ao Estado, e encontre efetivamente nele sua origem histórica, encontra sua justificação teórica exatamente na categoria em nome da qual, por outro lado, uma certa corrente de pensamento atual pretende contrapor ao Estado, como solução dos problemas atuais. Esta categoria é, justamente, o indivíduo, posto por Hobbes como conceito axial da construção do Estado moderno a quem tais pessoas pretendem se insurgir. Pouca esperança há de a situação atual política ser revertida, quando tantos pretendem combater o Leviatã justamente com os conceitos que lhe são opostos não como seus contraditórios, mas como seus contrários – e que figuram em relação a ele, unicamente como o outro lado da moeda –, como a liberdade individual e o direito subjetivo.

Esse fenômeno, que vem sendo com cada vez mais clareza percebido, foi tratado pela escritora Chantal Delsol em seu livro mais recente, La Haîne du Monde (O ódio do mundo). Em entrevista ao site www.atlantico.fr, a autora delineou algumas idéias-chave que, conquanto sumárias, podem ser-nos úteis para pensar este problema. Uma é a de que vivemos em um período em que os mesmos objetivos propugnados pelos Estados totalitários, como a eugenia, são promovidos, não a partir do Estado – i. e., ao menos não do Estado como governo – mas pelos indivíduos, por pessoas particulares, e têm por objetivo uma destruição da realidade. Tal modo de pensar remonta já à época da Revolução Francesa, e tem por exemplo cabal o Marquês de Sade, que “deslegitima a pena de morte quando ela vem do Estado, e a justifica quando ela é fruto de um desejo individual”. A outra é a de que tais ações de caráter e pretensões totalitárias têm sido movidas já não pelo aparato do Estado com suas leis, a partir de cima, mas por um hábil manejo da retórica jurídica a partir de conceitos destituídos de suficiência operativa como os de direito subjetivo e liberdade individual – isto quando ambos não são sumariados na categoria camaleônica dos direitos humanos –, e têm origem em correntes de pensamento nascidas nas universidades, como o desconstrucionismo e as correntes de esquerda, “que recusam a existência de uma antropologia e de uma moral que nos precedem e nos transcendem”. (http://www.atlantico.fr/decryptage/comment-desir-emancipation-liberale-est-porteur-systeme-post-totalitaire-chantal-delsol-2578295.html)

A fórmula expressa por Pierre Manent e o fenômeno descrito por Chantal Delsol correspondem em ampla medida à proposta de sociedade apresentada por John Rawls em suas famigeradas (ou, em todo caso, infames) obras Uma teoria da justiça e Liberalismo político. A obra política de Rawls é o epítome da abstração total levada ao terreno da política. Tal postura está expressa, na primeira das obras acima, na formulação de uma teoria “fraca” do bem e, também, na prioridade do justo sobre o bem; na segunda, ela se consubstancia na pretensão de imposição paulatina de uma teoria “política, não metafísica” à sociedade. Estas duas obras serão o assunto do segundo artigo desta série.

 

Figura: Hieronymus Bosch (1510), O Jardim das Delícias Terrenas, El Prado.

* Marcos Paulo Fernandes de Araújo é Bacharel e Mestre em Direito (teoria e filosofia do direito) pela faculdade de direito da UERJ.

Hayek e os intelectuais (por Roger Kimball)

Política e Sociologia | 12/11/2016 | | IFE BRASIL

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friedrich_august_von_hayek_1981

Friedrich August von Hayek em 1981.

Um sistema de governo que, em teoria, pode parecer extremamente
vantajoso para a sociedade, bem pode revelar-se, na prática,
totalmente pernicioso e destrutivo.
David Hume

Um dos espetáculos mais desalentadores de nosso tempo é ver
até que ponto algumas das coisas mais preciosas que a Inglaterra […]
legou ao mundo agora são desprezadas na própria Inglaterra.
Friedrich A. Hayek

Fomos os primeiros a afi rmar que, quanto mais complexas as
formas assumidas pela civilização, mais restrita deve tornar-se a
liberdade do indivíduo.
Benito Mussolini

 

Na verdade, Benito, você não foi o primeiro. Os louros pela promulgação desse princípio em toda a sua atrocidade moderna vão para V.I. Lênin, que já em 1917 se vangloriava de que, quando terminasse de construir o seu paraíso dos trabalhadores, “a sociedade inteira se terá tornado um só escritório e uma só fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de salários”.

O que quer que Lênin não soubesse acerca da restrição das liberdades individuais, certamente não valia a pena sabê-lo. Tudo bem, as coisas não andaram exatamente do modo como ele esperava – ou dizia esperar -, uma vez que, à medida que a União Soviética avançava aos trancos e barrancos, havia cada vez menos trabalho e salários cada vez mais desvalorizados. (Aceita trocar alguns destes dólares por rublos, camarada?). Na prática, a única igualdade que Lênin e seus herdeiros conseguiram foi a igualdade na miséria – o empobrecimento para todos, com exceção de uma minúscula e variável porcentagem da nomenklatura.

Trotsky foi direto ao ponto prático em jogo ao comentar que, quando o Estado é o único empregador, o velho adágio “quem não trabalha, que não coma” é substituído por “quem não obedece, que não coma”. Mesmo assim, os intelectuais ocidentais organizaram uma longa fila para virem, verem e serem conquistados: quantos escritores, jornalistas, artistas e ensaístas bien pensants não caíram de amores pela URSS, como Lincoln Steff ens, que dizia da sua visita de 1921: “Passei pelo futuro, e ele funciona”!

 

Evidentemente, não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos. Mas é notável a imensa pilha de cascas de ovos que amontoamos ao longo do último século. (Além de que sempre há a pergunta constrangedora de Orwell: “E onde é que está o omelete?”). Já não lembro quem foi o sábio que descreveu a esperança como o último dos males que restou no fundo da caixa de Pandora; talvez tenha sido injusto para com a esperança, mas o dito não é de todo inadequado àquela adamantina “fé em um mundo melhor” que sempre habitou o coração da empreitada socialista. E venham falar-me de plantas resistentes a todos os climas! A experiência socialista nunca funcionou como anunciaram, mas continua sempre a florir no coração humano – ao menos nas parcelas colonizadas pelos intelectuais, aquela tribo palpitante que Julien Benda memoravelmente denominou “clercs”, como na expressão “trahison des”. Mas por quê? Que têm os intelectuais que os torna tão prodigamente suscetíveis ao canto de sereia do socialismo?

Em seu último livro, The Fatal Conceit [1]. The Errors of Socialism (“A vaidade fatal. Os erros do socialismo”, 1988), Friedrich Hayek sublinhava com ironia esse paradoxo:

 

“A vã busca dos intelectuais por uma comunidade verdadeiramente socialista, que resultou primeiro na idealização de uma seqüência aparentemente interminável de ‘utopias’ – União Soviética, depois Cuba, China, Iugoslávia, Vietnam, Tanzânia, Nicarágua – para depois acabar na desilusão com todas elas, deveria ser suficiente para sugerir que há alguma coisa no socialismo que não bate com certos fatos”.

 

Deveria, mas não o fez. E o motivo, sugere Hayek, está no tipo peculiar de racionalismo em que uma certa espécie de intelectuais está viciada. A sua “vaidade fatal” consiste em crer que, pelo exercício da razão, a humanidade seria capaz de reformar a sociedade de um modo que fosse a um só tempo eqüitativo e próspero, ordenado e orientado para a liberdade política.

Hayek identifica esta ambição já em Rousseau e, antes dele, em Descartes. Se o homem nasce livre, mas em todo lugar encontra-se acorrentado – afirmava Rousseau -, por que simplesmente não rompe seus grilhões, a começar pelo fardo incômodo das restrições sociais tradicionais? Talvez se possa discutir se Descartes merece ser citado como réu na ação de paternidade por essa afirmação, mas entendo o que Hayek quer dizer. Do sonho cartesiano de fazer do homem o “senhor e dominador da natureza” por meio da ciência e da tecnologia, faltava apenas um pequeno passo para fazer dele o senhor e o possuidor da segunda natureza do homem, a sociedade. Tudo o que resistisse a isso na experiência humana e no mundo tinha de ser tornado líquido e negociável para poder sequer enveredar por esse caminho! Tudo o que se resumia em palavras como “bons modos”, “moral”, “costumes”, “tradição”, “tabu” e “sagrado” foi subitamente posto à venda. Mas é inerente à natureza embriagadora da vaidade fatal – ao menos, mais uma vez, para os que são suscetíveis aos seus encantos – que nenhum obstáculo pareça forte o suficiente para se opor à sedução exercida pelas engenhosas prestidigitações da humanidade. Segundo o célebre dito de Marx, “tudo o que é sólido dissolve-se no ar”.

John Maynard Keynes – ele mesmo uma vítima patente da vaidade fatal – resumiu
o metabolismo psicológico desse orgulho na sua descrição de Bertrand Russell e dos seus amigos de Bloomsbury:

 

“Bertie, concretamente, sustentava ao mesmo tempo duas opiniões disparatadamente incompatíveis. Afirmava que na prática os negócios humanos são conduzidos de um modo absolutamente irracional, mas que o remédio para isso era extremamente simples e acessível, uma vez que tudo o que tínhamos de fazer era conduzi-los de maneira racional”.

 

Que prodígios de prestidigitação existencial não se ocultam nesta frase “tudo o que tínhamos de fazer”. F. Scott Fitzgerald afirmou certa vez que o teste para “uma inteligência de primeira categoria” era “a habilidade de sustentar duas idéias opostas na mente ao mesmo tempo”, e ainda assim ser capaz de funcionar. A bem da verdade, esta habilidade é tão comum quanto o pó. Olhe à sua volta.

 

Friedrich Hayek (ele abandonou o “von” com o qual nascera) era um esplêndido anatomista desta espécie de desvarios intelectuais ou intelectualistas. Nascido em uma próspera família de Viena em 1899, Hayek já havia forjado para si um modesto renome como economista quando partiu para a Inglaterra e a London School of Economics, em 1931. Ao longo da década seguinte, publicou meia dúzia de livros técnicos sobre economia (a título de amostra, Monetary Theory and the Trade Cycle – “A teoria monetarista e o ciclo comercial”). Mas sua vida mudou em 1944, quando The Road to Serfdom (“O caminho da servidão”), publicado primeiro na Inglaterra e alguns meses depois nos Estados Unidos, o catapultou rumo à fama.

O lançamento da nova edição do livro realizada pela Universidade de Chicago [2] – o segundo volume da série de vinte previstos para as “obras completas” – é uma boa ocasião para nos lembrarmos tanto da força da crítica de Hayek quanto da inamovível persistência das atitudes contra as quais argumentava. É preciso ter coragem, ou algo do gênero, para declarar que o produto que se oferece é “a Edição Definitiva”. “Definitivo”, nestas matérias, é um elogio enganoso e fugaz; no entanto, eu não hesitaria em descrever essa edição como excelente. As linhas mais longas fazem com que o texto seja levemente mais difícil de ler do que na bela Edição do Quinquagésimo Aniversário publicada pela mesma Universidade de Chicago, mas a nova edição corrige uma série de erros tipográficos e acrescenta um material suplementar útil, incluindo notas identificando os personagens citados por Hayek.

A história deste livro curto, mas extraordinário – que é menos um tratado de economia do que um cri de coeur existencial – é bem conhecida. Três editores o recusaram nos Estados Unidos – um dos analistas chegou a considerá-lo “inadequado para uma casa de boa reputação” – antes de a Universidade de Chicago, não sem uma certa hesitação, resolver assumi-lo. Um dos seus analistas, embora recomendasse a publicação, prevenia que o livro tinha pouca probabilidade de “atingir um mercado amplo neste país” ou de “mudar a opinião de muitos leitores”. Na hora H, porém, a Editora da Universidade de Chicago mal conseguiu atender à demanda. Em poucos meses, tinham sido impressos 50.000 exemplares. A seguir, o Reader´s Digest publicou uma versão condensada, que levou o livro a mais 600.000 leitores. E, alguns anos mais tarde, uma versão ilustrada da Look aumentou ainda mais o seu alcance.

 

Traduzido para mais de vinte línguas, O caminho da servidão transformou um acadêmico aposentado em uma celebridade internacional. Nos anos seguintes, a influência de Hayek  passou por altos e baixos, mas na ocasião de sua morte, seis semanas antes de seu nonagésimo terceiro aniversário, em 1992, ele tinha-se tornado finalmente um dos “queridinhos” do establishment acadêmico. Fora professor na London School of Economics, na Universidade de Chicago e na Universidade de Freiburg, e recebera numerosos títulos honoríficos. Em 1974, recebeu o Prêmio Nobel de Economia – o primeiro economista defensor do livre mercado a receber esta honra -,
e as suas teorias ajudaram a estabelecer os alicerces intelectuais da revitalização econômica levada a cabo por Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 80.

Em um sentido mais profundo, porém, Hayek permaneceu um outsider, às margens do filão principal dos meios intelectuais ou, ao menos, acadêmicos. A mensagem de O caminho da servidão mostra por quê. O livro tinha dois objetivos: por um lado, era um hino à liberdade individual; por outro, era um ataque vigoroso ao planejamento econômico centralizado e à diminuição das liberdades individuais que este tipo de planejamento impõe.

Na esteira das revoluções de Reagan e Thatcher, pode parecer estranho descrever um ataque ao planejamento centralizado ou uma defesa da liberdade individual como obra de um outsider. Na prática, porém, embora as teorias de Hayek tenham vencido “no campo de batalha” algumas escaramuças importantes, no mundo da opinião da elite intelectual as suas idéias são tão discutidas hoje como o eram em 1940. Ainda hoje, há uma vasta resistência ao principal insight de Hayek: o de que o socialismo é um berçário para o desenvolvimento de políticas totalitárias.

Com o exemplo da Alemanha Nazista diante dos olhos, Hayek pôde testemunhar com que naturalidade o socialismo, à medida que dissolve mais e mais a iniciativa individual para transferi-la para o Estado, se transforma pouco a pouco em totalitarismo. Uma das principais teses do livro é que a escalada do fascismo não foi uma reação contra as tendências socialistas dos anos 20, como freqüentemente se afirma, mas, pelo contrário, o resultado natural dessas tendências. O que tinha começado como a convicção de que o planejamento, se queria ser “eficiente”, tinha de ser “tirado dos políticos” e entregue aos especialistas, terminou com a falência da política e o abraço dado à tirania. “Hitler não precisou destruir a democracia”, observa; “ele simplesmente tirou partido da decadência da democracia e, no momento crítico, obteve o apoio de muitos que, embora o detestassem, nele viam o único homem forte o suficiente para fazer as coisas acontecerem”.

A Grã-Bretanha, alertava Hayek, já tinha percorrido longo trecho do caminho que conduz à abdicação socialista. “As conseqüências imprevistas mas inevitáveis do planejamento socialista”, escreve, “criam um estado de coisas no qual […] as forças totalitárias acabam levando a melhor”. E cita inúmeros ensaístas influentes que advogam frivolamente não apenas o planejamento econômico em grande escala, mas a rejeição aberta das liberdades. Em 1932, por exemplo, o influente teórico político Harold Laski afirmava que não se deve permitir que “a derrota nas urnas” crie obstáculos para o glorioso progresso do socialismo. Isso de votar está muito bem – desde que as pessoas votem certo, isto é, na esquerda.

Em 1942, o historiador E.H. Carr afirmava com entusiasmo que “o resultado desejado por nós só poderá ser conquistado por meio de uma reorganização deliberada da vida européia, tal como a que foi levada a cabo por Hitler”. O eminente biólogo e ensaísta C.H. Waddington também propunha que a sociedade fosse entregue nas mãos dos especialistas, observando que a liberdade “é um conceito muito problemático para merecer ser discutido pelos cientistas, em parte porque, em última análise, eles não estão convencidos de que exista tal coisa”. Sir Richard Ackland, arquiteto do “movimento Commonwealth“, escreveu com falsa simpatia que a comunidade diz ao indivíduo: “você não precisa preocupar-se de ganhar o seu sustento”; a “comunidade” como um todo cuidará disso, determinando como, quando e de que maneira cada indivíduo será empregado. Além do mais, acrescentava, ela também providenciará campos de trabalho para os vagabundos, mas não se preocupe, pois “a comunidade” cuidará de que ali reinem “condições bastante toleráveis”. Tal como Carr, Ackland achava muito o que admirar em Hitler, que, segundo dizia, tinha “tropeçado com […] uma pequena parte, ou talvez se devesse dizer um aspecto particular, daquilo que em última análise se exigirá da humanidade”. Isto, diga-se de passagem, foi escrito em 1941, em um momento em que o mundo estava descobrindo que seguir Hitler de fato exigia bastante da humanidade.

 

As duas grandes influências que presidiram à elaboração de O caminho para a servidão foram Alexis de Tocqueville e Adam Smith. De Tocqueville, Hayek tomou emprestado tanto o título quanto sua sensibilidade para aquilo que o pensador francês, em uma célebre passagem de A democracia na América [3], denominou “despotismo democrático”. Assim como Tocqueville, Hayek via que nas sociedades burocráticas modernas as ameaças à liberdade freqüentemente se apresentam disfarçadas de benefícios sociais. Se o despotismo à antiga tiranizava, o despotismo democrático infantiliza. “Seria semelhante”, escreve Tocqueville,

 

“ao poder paterno se, tal como ele, tivesse o escopo de preparar homens para a maturidade; mas, pelo contrário, busca apenas mantê-los irrevogavelmente fixados na infância; agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, desde que pensem somente em divertir-se […]. Trabalha com gosto pela sua felicidade, mas quer ser o único agente e o árbitro exclusivo dela; provê segurança para todos, prevê e atende às suas necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz-lhes os negócios mais importantes, dirige os seus afãs, regula-lhes as propriedades, divide para eles as suas heranças; quem sabe não chegará a poupar-lhes inteiramente o problema de pensar e a dificuldade de viver? [… Esse poder] estende seus braços sobre a sociedade como um todo; cobre-lhe a superfície com uma rede de regras pequenas, complicadas, meticulosas e uniformes, através das quais as cabeças mais originais e as almas mais vigorosas não conseguem abrir caminho para sobressair da massa; […] não tiraniza, mas limita, compromete, enerva, extingue, entontece e, por fim, reduz cada nação a não ser nada além de um rebanho de animais tímidos e laboriosos que o governo pastoreia”.

 

Fazendo eco a Tocqueville, mas indo além dele, Hayek afirmava que os efeitos mais importantes da tutela abrangente por parte do governo eram psicológicos, “uma alteração do caráter das pessoas”. Somos as criaturas, bem como os criadores das instituições nas quais habitamos. “A questão fundamental”, concluía, “é que os ideais políticos de um povo e a sua atitude perante a autoridade são tanto o efeito quanto a causa das instituições políticas sob as quais vive”.

A maior parte de O caminho da servidão é negativa ou crítica. Pretende expor, descrever e analisar a ameaça socialista à liberdade. Mas há também um lado positivo na argumentação de Hayek: pode-se encontrar, diz ele, o caminho que afasta da servidão abraçando aquilo que denominava “a ordem estendida da cooperação” – em outras palavras, o capitalismo. Em A riqueza das nações, Adam Smith apontava o paradoxo, ou aparente paradoxo, do capitalismo: quanto mais se deixasse os indivíduos em liberdade para perseguirem seus próprios fins, mais as suas atividades seriam “conduzidas por uma mão invisível a promover” fins que auxiliassem o bem comum. Empreendimentos privados conduzem a bens públicos: eis a alquimia benéfica do capitalismo. O insight fundamental de Hayek, ampliando o pensamento de Smith, é que a ordem espontânea criada e mantida pelas forças de um mercado competitivo levam a uma prosperidade maior do que a economia planejada.

O sentimental não é capaz de envolver este dado com a sua mente ou o seu coração. Não é capaz de entender por que não deveríamos preferir a “cooperação” (expressão que soa bem) à “competição” (muito mais áspera), uma vez que em toda competição há perdedores, o que é ruim, e vencedores, o que pode ser ainda pior. O socialismo é uma versão do sentimentalismo. Mesmo um observador realista como George Orwell deixou-se infectar por ele. Em The Road to Wigan Pier (1937), Orwell argumentava que, uma vez que o mundo, “ao menos em potência, é imensamente rico”, se o desenvolvêssemos “como deve ser desenvolvido […], poderíamos todos viver como príncipes, supondo que o queiramos”. Deixemos de lado o fato de que ser príncipe implica, ao menos em parte, que os outros, a imensa maioria dos outros na verdade, não são da realeza…

O socialista, o sentimental, não consegue compreender por que, se as pessoas foram capazes de “gerar um sistema de regras para coordenar seus esforços”, não seriam igualmente capazes de, conscientemente, “projetar um sistema ainda melhor e mais gratificante”. Central ao ensinamento de Hayek é o fato indiscutível de que a ingenuidade humana é limitada, de que a elasticidade da liberdade exige a atuação de forças situadas além de nosso domínio, e de que, no fim das contas, as ambições do socialismo são uma expressão da hybris racionalista. Uma ordem espontânea gerada pelas forças de mercado pode ser tão benéfica à humanidade quanto você quiser; pode ter uma vida muito longa, e produzir – como de fato produziu – riquezas enormes que, há apenas algumas gerações, seriam inimagináveis. Mesmo assim, não é perfeito: os pobres continuam entre nós, nem todos os problemas sociais foram solucionados. No fim das contas, porém, aquilo que realmente custa aceitar na ordem espontânea produzida pelos mercados livres não é a sua imperfeição, mas a sua espontaneidade: o fato de ser uma criação que não nos pertence. Transcende a direção consciente da vontade humana e é, portanto, uma afronta ao orgulho humano.

A veemência com que Hayek condena o socialismo está na proporção direta do que está em jogo. Como explica em The Fatal Conceit, “a disputa entre a ordem do mercado e o socialismo é nada mais, nada menos que uma questão de sobrevivência”, porque “seguir a moral socialista destruiria grande parte da humanidade atual e empobreceria boa parte do resto”. Temos um aperitivo do que Hayek diz em toda a parte onde as forças do socialismo triunfam: nesses lugares, tal como a noite se segue ao dia, segue-se um crescimento da pobreza e uma diminuição
da liberdade individual.

 

O que intriga é que este fato tenha tido tão pouco efeito sobre as atitudes dos intelectuais. Nenhum mero desenvolvimento prático, ao que parece – repitamo-lo até a saciedade – é suficiente para minar os prazeres do sentimentalismo socialista. Esse distanciamento do mundo está ligado a outro traço comum nos intelectuais: seu desprezo pelo dinheiro e pelo mundo do comércio. O intelectual socialista despreza o “sórdido motivo do lucro” e recomenda o aumento do controle governamental da economia. Parece-lhe, nota Hayek, que “empregar cem pessoas é […] exploração, mas comandar o mesmo número [é] louvável”.

Não é que os intelectuais, como classe, não gostem tanto de ter dinheiro como todos nós. O que acontece é que olham toda a maquinaria do comércio como algo distante dos seus mais íntimos desejos, algo indescritivelmente inferior a eles. Evidentemente, há um certo sentido em que isto é verdadeiro. Mas muitos intelectuais não conseguem compreender duas coisas: primeiro, o fato de que o dinheiro, como diz Hayek, é “um dos maiores instrumentos de liberdade jamais inventados”, uma vez que abre “um leque inacreditável de opções ao homem pobre – um leque maior do que aquele que, há não muitas gerações, estava à disposição dos mais ricos”; segundo, a extensão em que a organização do comércio afeta a organização de nossas aspirações. Como aponta Hilaire Belloc em The Servile State, “o controle da produção de riqueza é o controle da própria vida humana”.

A questão realmente assustadora que a maioria dos planejamentos econômicos levanta não é se somos livres para ir atrás dos nossos fins mais importantes, mas quem determina quais devem ser estes “fins mais importantes”. “Quem quer que tenha o controle exclusivo dos meios”, observa Hayek, “também tem de determinar que fins devem ser buscados, quais os valores que devem ser preferidos e quais os desprezados – em uma palavra, aquilo em que os homens devem acreditar e pelo que devem lutar”. Assim, embora possa “soar nobre dizer, ‘que se dane a economia, vamos construir um mundo decente’, […] na verdade é mera irresponsabilidade”.

No fim das contas, o apelo socialista é um apelo emocional. E como um dos principais meios de expressão das nossas emoções é a linguagem, as perversões do socialismo têm seu correlato em uma perversão da linguagem. “Do mesmo modo que a sabedoria se encontra freqüentemente escondida sob o sentido das palavras”, nota Hayek, “o mesmo se dá com o erro”. Em conseqüência, a tarefa de defender a liberdade implica a tarefa de defender a linguagem.

Ao longo de seu trabalho, Hayek presta considerável atenção à “nossa linguagem envenenada”, mostrando como a sentimentalidade socialista distorceu quase a ponto de desfigurá-las palavras básicas como “liberdade” e “igualdade”. Para além de todo o significado definido que elas possam comunicar, essas palavras são elogiosas: solicitam automaticamente o nosso apoio, mesmo que tenham sido recrutadas para servir a realidades diferentes das coisas que denominavam originariamente, ou mesmo opostas a elas. Como nota Hayek, a “técnica mais eficiente” para atingir a transformação semântica almejada é “utilizar as palavras antigas, mas mudando seu sentido”. A frase “República do Povo” resume o processo, mas basta ver o que aconteceu com termos como “liberal”, “justiça” e “social”.

Em The Fatal Conceit, Hayek apresenta uma breve lista de 160 nomes aos quais se adicionou o termo “social”, desde “contabilidade”, “administração”, “era” e “consciência”, até “pensador”, “utilidade”, “opiniões”, “desperdício” e “trabalho”. Antigamente, dizia-se que uma doninha era capaz de esvaziar um ovo sem deixar marcas, e “social” é neste sentido uma “palavra-doninha”: uma casca fonética com pouco mais do que um eco de significado. É, escreve Hayek, “freqüentemente usada como uma exortação, um tipo de palavra-chave da qual a moral racionalista se vale para deslocar a moral tradicional, e agora suplanta gradualmente a palavra ‘bom’ como designação daquilo que é moralmente correto”. Basta pensar na odiosa fórmula “justiça social”: de facto, passou a significar injustiça, uma vez que atua manipulando o maquinário legal da justiça a serviço de fins pré-determinados. Os partidários da “justiça social” desprezam a justiça “meramente formal”; e, ao fazê-lo, substituem o império da lei – tradicionalmente representada como cega precisamente porque “não fazia acepção de pessoas” – pelo império de uma (pseudo)-“eqüidade”.

Não surpreende que Hayek tenha sido freqüentemente descrito como “conservador”. A bem da verdade, ele poderia replicar com razão que sua posição poderia ser descrita mais adequadamente como “liberal”, entendendo-se este termo não em sua deformação contemporânea (isto é, estatizante ou esquerdista), mas no sentido vigente na Inglaterra do século XIX, segundo o qual Burke, por exemplo, era um liberal. Há um sentido importante em que os liberais genuínos são (conforme a fórmula de Russell Kirk) conservadores precisamente por serem liberais: compreendem que a melhor possibilidade de preservar a liberdade está na preservação das instituições e práticas tradicionais que, por assim dizer, abrigaram a liberdade. Embora cauteloso quando se trata de inovações políticas, Hayek acreditava que o conservadorismo tradicional dos Torys era excessivamente comprometido com o status quo. Seu liberalismo era, neste sentido, um liberalismo ativista ou experimental.

Esta é uma faceta do pensamento de Hayek que o filósofo Michael Oakeshott discernia com precisão ao observar que a “principal importância” de O caminho da servidão não estava na coerência interna da doutrina de Hayek, mas “no fato de ser uma doutrina”. “Um plano para resistir a todos os planejamentos talvez seja melhor que os seus opostos”, prossegue Oakeshott, “mas pertence ao mesmo estilo político”. Talvez seja assim. Mas o valor inestimável de Hayek consiste em ter dramatizado a farsa sutil da empreitada socialista. “Raramente a liberdade, seja de que tipo for, se perde de uma vez”: a frase de Hume serve de epígrafe a O caminho da servidão. É tão pertinente hoje quanto no tempo em que Hayek a transcreveu em 1944.

 

Artigo traduzido da revista The New Criterion, vol. 25, n. 9, maio de 2007. Copyright © Roger Kimball, 2007. Todos os direitos desta tradução reservados a Dicta&Contradicta.

Roger Kimball é crítico de arte e editor executivo do The New Criterion Magazine. Publicou, entre outros, os livros The Rape of the Masters: How Political Correctness Sabotages Art (Encounter Books, 2004), The Long March: How the Cultural Revolution of the 1960s Changed America (Encounter Books, 2000) e Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education (HarperCollins, 1990).

 

Tradução de Marcelo Consentino. O tradutor é Bacharel em Direito pela PUC-SP, mestre em Filosofia pela Ponteficia Università della Santa Croce (Roma) e Doutor em Filosofia da Religião pela PUC-SP. É o atual presidente do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Tradução publicada originalmente na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 1, Junho de 2008.

 

NOTAS:


[1] O termo inglês conceit transita entre os nossos “vaidade” e “arrogância” (n. do. t.).

[2] The Collected Works of F.A. Hayek, vol. II: The Road to Serfdom: Text and Documents – the Definitive Edition, ed. Bruce Caldwel (Chicago: University of Chicago Press), 1994, 283 págs. [Traduzido no Brasil como O caminho da servidão, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1987. N. do t.].

[3] Edição brasileira Alexis de Tocqueville, A democracia na América, 4ª. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005,
2 vols. (n. do t.).

[RESENHA] Contra a perfeição ou A desilusão dos crentes políticos (por Bruno Garschagen)

Política e Sociologia | 30/09/2016 | | IFE BRASIL

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the-end-of-commitmentDados técnicos: Paul Hollander. The End of Commitment: Intellectuals, Revolutionaries, and Political Morality in the Twentieth Century. Ivan R. Dee, Publisher, 2006, 416 pp.

 

Por que alguns indivíduos são mais bem-sucedidos em resistir à desilusão política do que outros? Por que alguns são mais bem-sucedidos em romper com sua crença político-ideológica e decretar o fim do compromisso? Paul Hollander, investigador do Davis Center for Russian and Eurasian Studies da Universidade Harvard, parte desses dois problemas-chave para esboçar o perfil psicológico e moral dos comunistas que, tendo vivido sob tais regimes, conseguiram ou não completar a ruptura.

Em The End of Commitment: Intellectuals, Revolutionaries, and Political Morality, Hollander é hábil ao advogar a tese segundo a qual a mudança está alicerçada no limiar moral do indivíduo, “a capacidade variável de tolerar ou recusar determinadas ações políticas ou transgressões morais”. A relação entre as crenças políticas e as respectivas finalidades e os critérios morais individuais é configurada ou, de certa maneira, determinada, justamente pelo limiar moral.

Tal entendimento só é óbvio para os não-crentes ou céticos quanto à capacidade da política de redimir ou aperfeiçoar o ser humano. É uma característica essencial dos utópicos e/ou revolucionários: crer de forma resoluta na perfeição do ser humano não importa quais os meios e instrumentos usados para tal empreendimento. Michael Oakeshott, em The Politics of Faith & The Politics of Scepticism, chamou de política de fé a ação do poder central que tenha por objetivo a perfeição da humanidade.

O  escopo da investigação de Hollander são as fontes e a natureza da desilusão com os regimes comunistas, “quando os crentes (políticos) concluem que as suas crenças e compromissos já não merecem o seu apoio e dedicação, que os fins pretendidos são irrealizáveis e os meios usados na sua procura são inaceitáveis e moralmente imperfeitos”.

Em The God that Failed, Louis Fischer argumentava que o apoio genérico de um indivíduo a uma causa era mais determinante do que todo o resto. A postura do crente político, para usar a expressão de Hollander, é proteger das ameaças e ataques o objetivo final sobre o qual sua crença se baseia. Mesmo que as experiências concretas sejam uma prova da inviabilidade do projeto ainda hoje muitos intelectuais persistem em isentar as ideologias dos exemplos concretos de sua aplicação.

Issac Deutscher, celebrado biógrafo de Trótski, considerava que os fins do projeto comunista eram imunes à crítica e que buscar as causas profundas desses mesmos fins era não só errado como inútil. Deutscher defendia a perfeita compreensão dos horrores stalinistas para que esses não fossem vistos como horrores puros e, assim, pudessem ser apreciados.

Outro que trilhou percurso parecido foi o provedor de iniqüidades filosóficas Jacques Derrida: defendeu o marxismo e a experiência soviética como forma de sustentar a utopia comunista. “Todos os homens e mulheres, no planeta inteiro, são hoje, até um certo ponto, herdeiros de Marx e do marxismo, herdeiros da absoluta singularidade do projeto – ou de uma promessa. (…) A forma desta promessa, ou deste projeto, continua a ser absolutamente única. (…) Uma promessa messiânica, mesmo que não tenha sido cumprida (…) terá imprimido uma marca inaugural e única na história”. Eric Hobsbawm, o historiador-comediante, continua a fazê-lo. Giorgy Lukács, na mesma linha de amor incondicional pela humanidade, cunhou um lema exemplar: “mesmo o pior socialismo é melhor do que o melhor capitalismo”. São alguns exemplos de intelectuais que resistiram à desilusão (capítulo 9).

O livro de Hollander, que ganhou edição portuguesa em 2008 (O fim do compromisso: intelectuais, revolucionários e moralidade política, Colares: Editora Pedra da Lua, 478 pp.), de onde extraí os trechos traduzidos, apresenta perfis críticos de vários políticos, intelectuais, jornalistas et caterva que dedicaram grande parte das suas vidas à causa na União Soviética, Leste Europeu, Vietnã, China, Cuba, Nicarágua, Etiópia, Europa e Estados Unidos.

Eis o padrão revelado pelo estudo de Hollander: todos os crentes políticos apresentados sofreram uma dolorosa, hesitante e gradual experiência de desilusão política porque suas ilusões eram profundamente pessoais e comparáveis à fé religiosa. “Apesar de atéia, a nossa época é o completo oposto da ausência de religião”, notou Eric Hoffer. Os notáveis estudos de Norman Cohn (The Pursuit of the Millennium) e Thomas Molnar (Utopia: the Perennnial Heresy) mostram as raízes religiosas dos movimentos revolucionários de que o comunismo, ou a esquerda radical, é o mais poderoso representante.

A obra também aponta a mentalidade religiosa como uma semelhança entre os crentes das utopias comunistas e de engenharia social revolucionária, e os terroristas islâmicos. Hollander faz a ressalva de que a substância dessas crenças é muito diferente, mas há aí um equívoco se considerarmos que a mentalidade religiosa, a estrutura lógico-estrutural dessa mentalidade, é a substância mesma do modo de pensar e agir dos revolucionários ou utópicos.

O livro de Hollander é um alerta contra a idéia da perfeição do ser humano ou a possibilidade de aperfeiçoá-lo, assim como a completa inviabilidade de projetos políticos baseados nesse princípio e que contemplem transformações sociais radicais conduzidas por um poder concentrado e ilimitado. Os indivíduos investigados na obra mostraram a capacidade ilimitada do ser humano de fantasiar e se enganar para preservar as crenças e ilusões tenebrosas; também demonstram que é possível romper com o compromisso e abandonar as fantasias e falsas esperanças na construção de um futuro perfeito.

Bruno Garschagen é jornalista, mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Lisboa. É autor do best seller “Pare de Acreditar no Governo – Por que os Brasileiros não Confiam nos Políticos e Amam o Estado” (Editora Record). É professor de Ciência Política, blogueiro do site do jornal “EXTRA”, colunista do jornal “Gazeta do Povo”, tradutor, podcaster do Instituto Mises Brasil.


Resenha publicada originalmente na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro de 2009.