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[RESENHA] Contra a perfeição ou A desilusão dos crentes políticos (por Bruno Garschagen)

Política e Sociologia | 30/09/2016 | | IFE BRASIL

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the-end-of-commitmentDados técnicos: Paul Hollander. The End of Commitment: Intellectuals, Revolutionaries, and Political Morality in the Twentieth Century. Ivan R. Dee, Publisher, 2006, 416 pp.

 

Por que alguns indivíduos são mais bem-sucedidos em resistir à desilusão política do que outros? Por que alguns são mais bem-sucedidos em romper com sua crença político-ideológica e decretar o fim do compromisso? Paul Hollander, investigador do Davis Center for Russian and Eurasian Studies da Universidade Harvard, parte desses dois problemas-chave para esboçar o perfil psicológico e moral dos comunistas que, tendo vivido sob tais regimes, conseguiram ou não completar a ruptura.

Em The End of Commitment: Intellectuals, Revolutionaries, and Political Morality, Hollander é hábil ao advogar a tese segundo a qual a mudança está alicerçada no limiar moral do indivíduo, “a capacidade variável de tolerar ou recusar determinadas ações políticas ou transgressões morais”. A relação entre as crenças políticas e as respectivas finalidades e os critérios morais individuais é configurada ou, de certa maneira, determinada, justamente pelo limiar moral.

Tal entendimento só é óbvio para os não-crentes ou céticos quanto à capacidade da política de redimir ou aperfeiçoar o ser humano. É uma característica essencial dos utópicos e/ou revolucionários: crer de forma resoluta na perfeição do ser humano não importa quais os meios e instrumentos usados para tal empreendimento. Michael Oakeshott, em The Politics of Faith & The Politics of Scepticism, chamou de política de fé a ação do poder central que tenha por objetivo a perfeição da humanidade.

O  escopo da investigação de Hollander são as fontes e a natureza da desilusão com os regimes comunistas, “quando os crentes (políticos) concluem que as suas crenças e compromissos já não merecem o seu apoio e dedicação, que os fins pretendidos são irrealizáveis e os meios usados na sua procura são inaceitáveis e moralmente imperfeitos”.

Em The God that Failed, Louis Fischer argumentava que o apoio genérico de um indivíduo a uma causa era mais determinante do que todo o resto. A postura do crente político, para usar a expressão de Hollander, é proteger das ameaças e ataques o objetivo final sobre o qual sua crença se baseia. Mesmo que as experiências concretas sejam uma prova da inviabilidade do projeto ainda hoje muitos intelectuais persistem em isentar as ideologias dos exemplos concretos de sua aplicação.

Issac Deutscher, celebrado biógrafo de Trótski, considerava que os fins do projeto comunista eram imunes à crítica e que buscar as causas profundas desses mesmos fins era não só errado como inútil. Deutscher defendia a perfeita compreensão dos horrores stalinistas para que esses não fossem vistos como horrores puros e, assim, pudessem ser apreciados.

Outro que trilhou percurso parecido foi o provedor de iniqüidades filosóficas Jacques Derrida: defendeu o marxismo e a experiência soviética como forma de sustentar a utopia comunista. “Todos os homens e mulheres, no planeta inteiro, são hoje, até um certo ponto, herdeiros de Marx e do marxismo, herdeiros da absoluta singularidade do projeto – ou de uma promessa. (…) A forma desta promessa, ou deste projeto, continua a ser absolutamente única. (…) Uma promessa messiânica, mesmo que não tenha sido cumprida (…) terá imprimido uma marca inaugural e única na história”. Eric Hobsbawm, o historiador-comediante, continua a fazê-lo. Giorgy Lukács, na mesma linha de amor incondicional pela humanidade, cunhou um lema exemplar: “mesmo o pior socialismo é melhor do que o melhor capitalismo”. São alguns exemplos de intelectuais que resistiram à desilusão (capítulo 9).

O livro de Hollander, que ganhou edição portuguesa em 2008 (O fim do compromisso: intelectuais, revolucionários e moralidade política, Colares: Editora Pedra da Lua, 478 pp.), de onde extraí os trechos traduzidos, apresenta perfis críticos de vários políticos, intelectuais, jornalistas et caterva que dedicaram grande parte das suas vidas à causa na União Soviética, Leste Europeu, Vietnã, China, Cuba, Nicarágua, Etiópia, Europa e Estados Unidos.

Eis o padrão revelado pelo estudo de Hollander: todos os crentes políticos apresentados sofreram uma dolorosa, hesitante e gradual experiência de desilusão política porque suas ilusões eram profundamente pessoais e comparáveis à fé religiosa. “Apesar de atéia, a nossa época é o completo oposto da ausência de religião”, notou Eric Hoffer. Os notáveis estudos de Norman Cohn (The Pursuit of the Millennium) e Thomas Molnar (Utopia: the Perennnial Heresy) mostram as raízes religiosas dos movimentos revolucionários de que o comunismo, ou a esquerda radical, é o mais poderoso representante.

A obra também aponta a mentalidade religiosa como uma semelhança entre os crentes das utopias comunistas e de engenharia social revolucionária, e os terroristas islâmicos. Hollander faz a ressalva de que a substância dessas crenças é muito diferente, mas há aí um equívoco se considerarmos que a mentalidade religiosa, a estrutura lógico-estrutural dessa mentalidade, é a substância mesma do modo de pensar e agir dos revolucionários ou utópicos.

O livro de Hollander é um alerta contra a idéia da perfeição do ser humano ou a possibilidade de aperfeiçoá-lo, assim como a completa inviabilidade de projetos políticos baseados nesse princípio e que contemplem transformações sociais radicais conduzidas por um poder concentrado e ilimitado. Os indivíduos investigados na obra mostraram a capacidade ilimitada do ser humano de fantasiar e se enganar para preservar as crenças e ilusões tenebrosas; também demonstram que é possível romper com o compromisso e abandonar as fantasias e falsas esperanças na construção de um futuro perfeito.

Bruno Garschagen é jornalista, mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Lisboa. É autor do best seller “Pare de Acreditar no Governo – Por que os Brasileiros não Confiam nos Políticos e Amam o Estado” (Editora Record). É professor de Ciência Política, blogueiro do site do jornal “EXTRA”, colunista do jornal “Gazeta do Povo”, tradutor, podcaster do Instituto Mises Brasil.


Resenha publicada originalmente na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro de 2009.