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O que é o liberal-totalitarismo? [Parte 2] (por Marcos Paulo Fernandes de Araújo)

Política e Sociologia | 02/06/2017 | | IFE BRASIL

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liberal-totalitarismo-2

Como vínhamos de falar, os escritos de John Rawls podem ser encarados como um exemplar contemporâneo bastante representativo daquilo que havia chamado pensamento liberal-totalitário. Este modo de pensar tem como ponto de partida, como já dito, o erro metafísico da abstração total. Ele se consubstancia, na teoria política – e igualmente, daí, pretende fazê-lo na prática – em um projeto político que tem por base a revolta contra a realidade e a pretensão de reconstruí-la totalmente a partir da razão.

Todavia, antes de iniciarmos as considerações sobre o projeto político do autor, talvez convenha ressaltar qual seja o aspecto mais propositivo dele, isto é, aquilo em que ele se pretende apresentar como um melhoramento relativamente ao estado prévio das discussões sobre o direito e a justiça.

No caso de Uma teoria da justiça, a proposta de Rawls consiste justamente em “apresentar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista em geral e, portanto, a todas as suas versões”[1], que, segundo ele, prescreveriam como meta da atividade social uma maximização do bem geral da sociedade, ou seja, da soma de satisfações desfrutada pelas pessoas, sem atentar à maneira como estas seriam distribuídas entre elas.

Tendo por base essa afirmação acerca da teoria que pretende desbastar, aponta como um dos propósitos declarados de seu projeto o de que “a violação da liberdade de poucos não possa ser justificada pelo bem maior compartilhado por muitos”[2]. Arremata afirmando que “em uma sociedade justa, as liberdades fundamentais são inquestionáveis e os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo dos interesses sociais”[3].

Segundo Rawls, na teoria utilitarista, o legislador ideal agiria fundamentalmente como um empresário, e isso se daria justamente em razão de que tal figura, ao calcular o saldo máximo de satisfação que seria a meta das leis elaboradas, apoiar-se-ia numa extensão indevida de um princípio de escolha projetado para um único ser humano, para a sociedade, fundindo todas as pessoas por meio de atos imaginativos do observador imparcial empático.[4] O utilitarismo, portanto, não levaria a sério a distinção entre as pessoas, segundo o autor de Uma teoria da justiça.

Pois bem: Rawls pretende ver superado esse suposto vício fundamental da teoria utilitarista, ao formular uma teoria da justiça que, em vez de considerar os princípios de escolha de um único ser humano, na sua totalidade, presume um pacto hipotético em que as “pessoas” irão aceitar, “de antemão, um princípio de liberdade igual, e sem conhecer os seus próprios objetivos específicos”[5]. Apesar de que diante de uma tal afirmação nossa “idéia intuitiva” seja vociferar um sonoro palavrão polissilábico composto, nossas reflexões ponderadas nos levam a crer que o melhor será dizer que nada poderia ser mais desprezível à pessoa, em sua singularidade, e em sua singular relacionalidade, do que tal formulação. Se há algo que não toma a sério as distinções entre pessoas é essa suposição, que as considera todas igualmente livres, num plano abstrato, isto é, igualmente indeterminadas, como um estratagema para justificar, contra todos os fatos, uma igual esfera de poder, ao argumento de que são todas igualmente capazes de escolher o bem.

De igual modo, deve-se precisar que a teoria de Rawls subverte, mais ainda que a teoria utilitarista, o são pensamento ético, na medida em que, se esta considera ser o justo um meio para maximizar o bem, o que já é errado, sua teoria faz muito pior, ao fazer uma instrumentalização contrária, e pretender ver o bem utilizado como ferramenta para obter “o justo”. Pois o bem é, de certa maneira, independente do justo, e não o contrário, na medida em que o justo é o bem de outro, e que se o conhece necessariamente a partir do bem de si, como demonstra o primeiro princípio específico da lei natural “todo ser vivo busca a conservação de sua vida”[6]. Porém Rawls dá por garantido que o bem de outro será atendido simplesmente se tornarmos mais indefinida sua identidade e mais indeterminadas suas aspirações.

Nada mais apropriado à figura do legislador rawlsiano, neste caso, do que o comentário de Voegelin acerca do sofista Pólo no Górgias: “Ele é o tipo de homem que irá piedosamente louvar o governo do direito e condenar o tirano, mas que fervorosamente inveja o tirano e não amaria nada mais do que sê-lo um ele próprio. Numa sociedade decadente, ele é o representante do grande reservatório de homens comuns que paralisam todos os esforços de ordem e proporcionam conivência popular na ascensão do tirano. ”[7] Ora, se no caso do utilitarismo, poderíamos configurar como despótica a pretensão do legislador ideal que pretendesse impor à sociedade sua visão de mundo através da imaginação empática, podemos configurar como totalitária a aspiração de Rawls, que pretende impor a visão moral de ninguém, visão moral a partir de lugar nenhum, ao resto da sociedade – sem imaginação empática, mas a partir de um Gedankenexperiment, de uma equação matemática.

Deste modo, vemos que o problema de Rawls com o utilitarismo não é o seu caráter instrumentalizador, mas, antes, a unidade da pessoa, ou, ainda, qualquer cosmovisão que constitua as preferências de uma pessoa. Ele confunde o desprezo pelo “bem-comum”, das teorias utilitaristas, com o apreço delas pelo “bem particular”, e acha que este está sempre contra aquele. Dessa forma, se o utilitarismo impõe sobre todos o bem de uma pessoa singular, mas possível, Rawls impõe um bem abstraído das pessoas reais, segundo a idéia que ele faz daquilo que deva servir a “qualquer pessoa selecionada ao acaso”[8], uma pessoa sem forma, sem princípios de ação, sem hierarquia de bens, uma pessoa que tem apenas indeterminações e… necessidades. Todavia, é impossível chegar ao bem-comum de uma comunidade sem passar pelo bem particular da pessoa. Isso foi afirmado expressamente por S. Tomás, que disse que “o bem de um só é anterior ao bem de muitos, que consurge a partir dos bens dos singulares.”[9]

Esse amor pela “humanidade”, ou melhor pela “sociedade”, ou, ainda, pelo conceito que ele faz de ambas, segundo o qual a “a pluralidade de pessoas diferentes com diversos sistemas de objetivos é uma característica essencial das sociedades humanas”[10], leva-o a desprezar o próprio objeto da virtude da justiça, ou, ao menos, o da comutativa, que é o “bonum alterius singularis personae”[11]. E amostra maior desse desprezo não poderia estar mais evidente do que na concepção de inveja de Rawls “como a propensão a considerar com hostilidade o maior bem dos outros, mesmo que o fato de eles serem mais privilegiados que nós não diminua nossas vantagens”[12] – cujo efeito é que estejamos dispostos a diminuir as vantagens de outrem mesmo que as nossas também o sejam[13] – quando ela consiste justamente, numa definição comunicável, em que “de algum modo o bem de outrem seja estimado como mal na medida em que é diminutivo da própria glória e excelência.”[14]

Uma das razões da inveja radica em que, como disse S.Tomás, algumas coisas não permitem a fruição de mais de uma pessoa ao mesmo tempo, como sói acontecer com as coisas temporais, o que advém do próprio caráter intrinsecamente limitado delas. Daí o bem alheio, na medida em que não pode ser desfrutado por alguém, dar origem à inveja, [15] por ser considerado impeditivo do seu próprio bem pelo invejoso.[16] Pela inveja, complementa ainda o Doutor Angélico, toma-se o bem de outrem como mal próprio[17]. Já para Rawls, a inveja ocorrerá justamente “na medida em que as diferenças entre esse indivíduo e os outros não exceda certos limites, e que ele não acredite que as desigualdades existentes estão fundadas na injustiça ou resultam da aceitação do acaso, sem nenhum propósito social visando compensá-las.” [18] Essa concepção parece, no mínimo, temerária e não constitui um apoio seguro para qualquer ordem social, tornando instável a ordem jurídica e política, caso aplicada: mais ainda quando lemos no mesmo livro a dificuldade que o autor tem de expor o que para ele sejam as “injustiças […] mais cruéis”, termo que, para ele, evoca uma idéia “extremamente genérica”, cuja “avaliação do grau de afastamento do ideal dependerá em grande medida da intuição.”[19]

Essa revolta contra a pessoa singular e concreta, contra o objeto da justiça particular, o “bonum alterius singularis personae”, que, como afirma S. Tomás, não é o fim de cada uma das outras[20], vai de par com uma insurreição também contra as sociedades e as estruturas sociais concretas. Toda a empreitada de Rawls consiste também numa grande invectiva contra a natureza e a sociedade historicamente constituída, na medida em que ela é considerada “o resultado cumulativo de distribuições anteriores dos dotes naturais […] conforme foram cultivados ou deixados de lado, e seu uso foi favorecido ou preterido, ao longo do tempo, por circunstâncias sociais e contingências fortuitas tais como o acaso e a boa sorte […] fatores tão arbitrários do ponto de vista moral.”[21]  Ou seja, toda a criação e, a reboque, toda sociedade humana pretérita são um grande nonsense moral, cujo sentido último apenas agora é desvelado diante dos nossos olhos – e ainda deveríamos agradecê-lo por isso! – por John Rawls. Diante de tal cenário, o autor propõe que “as vantagens dos que têm dotes naturais maiores devem limitar-se àqueles que promovem o bem dos setores mais pobres da sociedade”[22].

Essa noção, contudo, não é comunicável. Como pretender liberal um sistema em que não apenas o bem de um não deve prejudicar o outro, mas deve sempre promover necessariamente o bem do outro, e não de um outro qualquer, mas daquele que está mais abaixo dele no elo da cadeia social? Assim, Rawls presume, vejamos bem, PRESUME (aliás, ele presume, muito mais do que um filósofo deveria, e intui o tempo todo, sendo sua teoria um grande exercício de intuição presunçosa), que a vantagem dos que estão “acima” na cadeia social, caso beneficie quem está “mais abaixo” na sociedade, necessariamente beneficiará as classes intermédias.[23] Isso não apenas não é verificável, como tem, também, seu contrário ocorrendo em diversos cenários da história da humanidade: desde a extinção dos parlements, e das corporações de ofícios e associações de agricultores pela Loi Le Chapelier, na França, até a aversão à família – praticamente a última sociedade intermédia que restou na sociedade brasileira atual –, e à classe média manifestada por certos setores da sociedade urbana no Brasil, em nome de um discurso há muito refutado, mas ainda muito disseminado, por afagar de maneira extremamente cômoda o senso que cada “playboy” da Zona Sul pretende ter de pertencer à camada mais esclarecida e mais sedenta de justiça, mais moralmente elevada da população: o socialismo.

O liberal-totalitarismo de John Rawls reflete aquilo de que falou Chantal Delsol, ao tratar da imanentização da igualdade dentro do quadro de teorias políticas desprovidas de uma ontologia – como é a de Rawls: “teoria política, não metafísica” –: “os desejos (traduzidos em necessidades) tomam o lugar das aspirações. Estas últimas, espirituais, podiam continuar insaciáveis sem gerar infelicidade, ao passo que os desejos/necessidades insaciáveis suscita revoltas e ressentimentos sem fim”, concluindo, no parágrafo seguinte: “A inveja se tornou uma virtude.”[24]

Tudo o que fez Rawls, com sua teoria, foi uma repaginação do socialismo Fabiano nas discussões econômicas e amenizada no seu discurso. Aqui, nada de palavras-de-ordem, discursos incisivos e condenações taxativas; apenas “idéias intuitivas”, “convicções ponderadas” e “suposições”. Contudo, o totalitarismo proveniente da linguagem da abstração-total, que se esquece dos singulares, continua presente, conquanto dissimulado. É um totalitarismo sonso: sonso como John Rawls.

No próximo, e último, artigo, veremos como essa revolta de Rawls não consiste apenas numa revolta contra o bem dos indivíduos singularmente considerados, nem mesmo apenas do Estado, mas também contra o próprio fundamento da realidade, com suas idéias de razão pública e consenso sobreposto.

 

NOTAS:

[1] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. (§ 5 O utilitarismo clássico) p. 26-27.

[2] Ibid. (§ 5 O utilitarismo clássico) p. 32. Seja lá o que tenha querido dizer com essa frase, foi, no mínimo, infeliz ao expressá-lo, e os bandidos de todo o mundo provavelmente muito se contentariam em ouvi-la.

[3] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 34.

[4] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 35.

[5] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 37.

[6] Santo Tomás de Aquino. S Th., I-IIae, q. 94, art. 2, r.

[7] VOEGELIN, Eric. Ordem e História: III – Platão e Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2009, p. 87-88.

[8] RAWLS, John. Op. cit. (§24. O véu da ignorância), p. 169.

[9] Scriptum Super Sententiis, lib. 4 d. 23 q. 2 a. 4 qc. 2 expos. “Bonum autem unius est prius quam bonum multorum, quod ex singularibus bonis consurgit.”

[10] RAWLS, John. Op. cit. (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 35.

[11] Santo Tomás de Aquino. Summa Theologiae IIa-IIae, q. 58 a. 7 ad 1

[12] RAWLS, op. cit. (§80 O problema da inveja) p. 656.

[13] Eod. loc.

[14] Santo Tomás de Aquino. S. Th. II-IIae, q. 36, art. 1, r.

[15] Santo Tomás de Aquino. Scriptum Super Sententiis, lib. 3 d. 27 q. 1 a. 1 ad 3.

[16] Em outra passagem – Scriptum Super Sententiis, lib. 2 d. 5 q. 1 a. 3 ad 2 – o Aquinate fala que “a inveja é a dor pela prosperidade alheia, na medida em que é impeditiva de algum bem próprio.” “[…] invidia est dolor alienae prosperitatis, inquantum est impeditiva alicujus boni proprii.”

[17] Santo Tomás de Aquino. Summa Contra Gentiles, lib. 1 cap. 89 n. 12.

[18] RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes. (§80 O problema da inveja) p. 656.

[19] Ibid., (§ 39. Definição da prioridade da liberdade), p. 305.

[20]  Santo Tomás de Aquino. S. Th. I-IIae, q. 90, art. 3, ad. 3: “bonum unius hominis non est ultimus finis”. Santo Tomás de Aquino. S. Th. II-IIae, q. 58, art. 9, ad 3. “Bonum autem unius personae singularis non est finis alterius.”

[21] RAWLS, John. Op. cit., (§12. Interpretações do segundo princípio), p. 89.

[22] Eod. loc.

[23] Ibid., (§13. A igualdade democrática e o princípio de diferença) p. 96-97.

[24] DELSOL, Chantal. La haine du monde : totalitarismes et postmodernité. Paris : Du Cerf, 2016, p. 99.

 

Imagem: A Inveja’ (Óleo sobre tela) – Jacques de Backer (1570-1575) Museo di Capodimonte, Nápoles, Itália.

* Marcos Paulo Fernandes de Araújo é Bacharel e Mestre em Direito (teoria e filosofia do direito) pela faculdade de direito da UERJ.

O que é o liberal-totalitarismo? [Parte 1] (por Marcos Paulo Fernandes de Araújo)

Política e Sociologia | 26/05/2017 | | IFE BRASIL

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liberal-totalitarismo-1

La grande confrontation moderne est la
confrontation avec le totalitarisme.
JEAN MADIRAN

 

O grande confronto moderno, como afirma Jean Madiran, na frase da epígrafe, é o confronto com o totalitarismo. O século XX esteve repleto de episódios desse confronto, com milhões de mortos, em campos de concentração, câmaras de gás, confisco de propriedade, humilhação, tortura e valas comuns, fosse em nome de um nacional socialismo ou de um socialismo internacional. Seja como for, características comumente atribuídas a ambos os movimentos são o seu flagrante autoritarismo e, o que não é menos importante, seu desrespeito às leis: regime de culto ao líder, partido único, falta de ritos de justiça, subversão das instituições, assassinatos, julgamentos na calada da noite, clandestinidade, ocultamento…

Houve, ainda, regimes autoritários no século XX, muitos dos quais nitidamente não poderiam ser qualificados como totalitários, e nesse particular a classificação de Juan Linz parece resolver a questão. Contudo, parece difundido (ainda mais em um país em que uma narrativa canhestra da história do período logrou uma prevalência que só recentemente vem sendo contestada) certo pensamento segundo o qual, embora seja verdade que nem todo o regime autoritário é totalitário, todo regime totalitário é necessária e previamente autoritário, e que, portanto, qualquer discurso que pudesse pender – por pouco que fosse – para o autoritarismo seria um prelúdio inelutável ao totalitarismo. Daí que muitas pessoas pensem ser o totalitarismo coisa do passado, ao mesmo tempo em que enxergam em coisas do passado – como um certo discurso que apela ao povo, e a atuação de uma certa bancada no Congresso Nacional – as maiores ameaças de totalitarismo. Mas serão mesmo verdadeiras ou, ao menos úteis, tais associações de idéias?

Não parece que seja assim, por pelo menos duas razões. A primeira é que o totalitarismo de esquerda historicamente foi gerado a partir de um discurso libertador e emancipatório. Foi assim que, a partir do discurso de Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, bem como do de Karl Marx no século XIX, produziram-se as carnificinas da breve, mas sangrenta, Revolução Francesa – esta, ainda ao fim do século em que foi premiado o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens –, e também a da Revolução Russa – no início do século subseqüente à publicação do Manifesto Comunista. Logo, a predominância atual de discursos autointitulados “emancipatórios” nada depõe em favor de uma nova era isenta de totalitarismos; antes, pelo contrário, torna a iminência de desastre tanto mais provável quanto mais dissimulado é, no plano do discurso, o caráter francamente violento das práticas políticas revolucionárias.

A segunda razão é que as instituições do Ocidente, apesar de até há pouco tempo terem apresentado uma aparência de harmonia social, estão colapsando, e de que o ‘rule of law’ do ‘estado democrático de direito’ tem se demonstrado insuficiente para manter a sociedade dentro de limites minimamente saudáveis de entendimento mútuo e amizade política. E isso não surpreende, pois, afinal, como afirmou Solzhenitsyn acerca da democracia na América, no seu famoso discurso inaugural do ano letivo de 1978-79 na Universidade de Harvard, (Disponível aqui: http://www.americanrhetoric.com/speeches/alexandersolzhenitsynharvard.htm), logo após ter mencionado o regime soviético, em que estava ausente o ‘rule of law’: “uma sociedade sem nenhuma outra escala de valores além da legal não é, igualmente, digna do homem. Uma sociedade que é baseada na letra da lei e jamais alcança algo superior lança mão de uma vantagem muito pequena dentre aquelas possíveis ao ser humano. A letra da lei é por demais fria e formal para exercer um influxo benéfico sobre a sociedade. Onde quer que a trama da vida humana se veja tecida por relações legalísticas, cria-se uma atmosfera de mediocridade moral, paralisante dos mais nobres impulsos humanos. E será simplesmente impossível resistir às provações deste século ameaçador somente com o apoio em uma estrutura legalística. ”

Em suma, nada garante que um discurso “emancipatório” e a predominância de instituições e processos decisórios tais como a chamada “democracia representativa” e o “rule of law” consistam em algo, no primeiro caso, contrário, e no segundo, suficiente face ao totalitarismo, cujo fundamento filosófico se encontra para mais além desses fenômenos.

Afinal, como bem observado por Graneris “toda filosofia começa na metafísica e desemboca na política” (Contribución tomista a la filosofia del derecho, p. 129), e não é em outro lugar que deve ser buscado o fundamento último do totalitarismo. Ele toma por seu este seguinte nome: “abstração total”. A “abstração total” consiste num modo de abstrair que, tirando o universal do singular, se esquece que de que, em primeiro lugar, o singular estava ali. A partir desse tipo de operação, começa-se a trabalhar sobre a realidade apenas a partir de idéias, sem reconhecê-la, e sem a ela retornar, por despicienda. É na “abstração total” que reside a fonte de toda ideologia, que se olvida do ato de ser dos entes, de sua presença real, para trabalhar com conceitos – a princípio tomados como quiditativos e exaurientes da realidade – que, posteriormente, são desprezados em prol de outros – meramente quantitativos e instrumentais –, mas não porque estes ajudam a conhecê-la, e sim porque permitem crescer a ilusão manipulatória.

Essa postura metafísica (ou, talvez, antimetafísica), embora se encontre já presente na Idade Média, com Escoto (que confundia os planos lógico e ontológico, fazendo de cada distinção lógica uma entidade substancial), desemboca, em suas consequências, na formulação assaz representativa de Karl Marx, nas suas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos tem somente tentado interpretar o mundo; chegou o momento, porém, para que ele seja transformado.” (tradução livre do original alemão: “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt darauf an, sie zu verändern.“) Como se, é claro, a compreensão do mundo fosse algo que já estivesse terminado, e que fosse razoável fechar-se à realidade em nome de uma apreensão incompleta dela, que é, ademais, sempre o máximo a que podemos chegar.

Na política, esse fenômeno da “abstração total” se reflete no fenômeno da representação, pela qual um partido (ou seja, uma parcela da sociedade), interpõe-se à sociedade-civil e o Estado, impondo, através deste, uma visão dela a partir de um suposto exterior. Ora, as diversas autoridades da sociedade civil não têm seu poder baseado na representação, e tampouco na liberdade e na igualdade, mas na presença, em vínculos constituídos e na preeminência: em outras palavras, elas não são, em grande medida, fruto da eleição subjetiva de quem me representa, mas do reconhecimento de quem já está presente, com quem já me encontro em relação e que se me preleva. Daí haver reparado Pierre Manent que: “Uma vez que num país democrático as circunstâncias dêem uma chance à escalada totalitária, a sociedade-civil estará vulnerável, porque semelhante escalada totalitária poderá dirigir contra os poderes intra-sociais a própria ideologia democrática, sem ter necessidade de recorrer à sua própria ideologia. Mais precisamente, ela poderá utilizar o princípio representativo de uma maneira puramente instrumental. Contrariamente à opinião convencional, a idéia representativa enfraquece intrinsecamente a legitimidade da sociedade civil, e põe em perigo sua independência.” (Enquête sur la démocratie, p. 89, n. 1) Dessa maneira, a confusão entre os planos conceitual abstrato e o ontológico – presente, por exemplo, na metafísica agostinista do tardo-medievo –traduz-se, na modernidade, na tendência à indistinção entre Estado como governo totalmente abstraído do seio da sociedade-civil, pelo conceito de soberania, e ela própria, na medida em que esse mesmo Estado se vale da soberania para a ela se impor.

Mas o fenômeno totalitário moderno, por mais que se o queira atribuir precipuamente ao Estado, e encontre efetivamente nele sua origem histórica, encontra sua justificação teórica exatamente na categoria em nome da qual, por outro lado, uma certa corrente de pensamento atual pretende contrapor ao Estado, como solução dos problemas atuais. Esta categoria é, justamente, o indivíduo, posto por Hobbes como conceito axial da construção do Estado moderno a quem tais pessoas pretendem se insurgir. Pouca esperança há de a situação atual política ser revertida, quando tantos pretendem combater o Leviatã justamente com os conceitos que lhe são opostos não como seus contraditórios, mas como seus contrários – e que figuram em relação a ele, unicamente como o outro lado da moeda –, como a liberdade individual e o direito subjetivo.

Esse fenômeno, que vem sendo com cada vez mais clareza percebido, foi tratado pela escritora Chantal Delsol em seu livro mais recente, La Haîne du Monde (O ódio do mundo). Em entrevista ao site www.atlantico.fr, a autora delineou algumas idéias-chave que, conquanto sumárias, podem ser-nos úteis para pensar este problema. Uma é a de que vivemos em um período em que os mesmos objetivos propugnados pelos Estados totalitários, como a eugenia, são promovidos, não a partir do Estado – i. e., ao menos não do Estado como governo – mas pelos indivíduos, por pessoas particulares, e têm por objetivo uma destruição da realidade. Tal modo de pensar remonta já à época da Revolução Francesa, e tem por exemplo cabal o Marquês de Sade, que “deslegitima a pena de morte quando ela vem do Estado, e a justifica quando ela é fruto de um desejo individual”. A outra é a de que tais ações de caráter e pretensões totalitárias têm sido movidas já não pelo aparato do Estado com suas leis, a partir de cima, mas por um hábil manejo da retórica jurídica a partir de conceitos destituídos de suficiência operativa como os de direito subjetivo e liberdade individual – isto quando ambos não são sumariados na categoria camaleônica dos direitos humanos –, e têm origem em correntes de pensamento nascidas nas universidades, como o desconstrucionismo e as correntes de esquerda, “que recusam a existência de uma antropologia e de uma moral que nos precedem e nos transcendem”. (http://www.atlantico.fr/decryptage/comment-desir-emancipation-liberale-est-porteur-systeme-post-totalitaire-chantal-delsol-2578295.html)

A fórmula expressa por Pierre Manent e o fenômeno descrito por Chantal Delsol correspondem em ampla medida à proposta de sociedade apresentada por John Rawls em suas famigeradas (ou, em todo caso, infames) obras Uma teoria da justiça e Liberalismo político. A obra política de Rawls é o epítome da abstração total levada ao terreno da política. Tal postura está expressa, na primeira das obras acima, na formulação de uma teoria “fraca” do bem e, também, na prioridade do justo sobre o bem; na segunda, ela se consubstancia na pretensão de imposição paulatina de uma teoria “política, não metafísica” à sociedade. Estas duas obras serão o assunto do segundo artigo desta série.

 

Figura: Hieronymus Bosch (1510), O Jardim das Delícias Terrenas, El Prado.

* Marcos Paulo Fernandes de Araújo é Bacharel e Mestre em Direito (teoria e filosofia do direito) pela faculdade de direito da UERJ.

A Ideologia Laicista

Sem Categoria | 15/12/2014 | |

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O laicismo já não é aquele elemento de neutralidade que abre espaços de liberdade a todos. Começa a transformar-se em uma ideologia que se impõe por meio da política e não concede espaço público à visão da religião, que corre o risco de converter-se em algo puramente privado e, no fundo, mutilado.

Entende-se por Estado confessional aquele que se vincula a determinado credo religioso e compromete-se a transportar para a vida civil as exigências sociais e políticas tal como são defendidas pela hierarquia eclesiástica correspondente. É emblemática a imagem da coroação de Dom Pedro II, retratada por Araújo Porto Alegre em seu famoso quadro (Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro). Aliás, a Constituição do Império (1824) subscrevia o caráter confessional de nosso Estado.

Contudo, hoje, o laicismo, propositadamente, utiliza a expressão “confessional” de forma genérica, sobretudo quando os poderes públicos tomam medidas com conteúdo ético-material de raiz ideológica ou religiosa. Como se fosse possível que qualquer ação estatal pudesse, por sua neutralidade, não incorporar qualquer matiz desta natureza. É algo dificilmente imaginável.

O laicismo, portador de uma agressividade ideológica secular preocupante, vai mais além quando rejeita a singela possibilidade de as confissões serem vetores na construção da vida social. Defende não ser suficiente a estrita separação entre Estado e religião, mas o completo isolamento da religião do próprio âmbito público da sociedade, acantonando-a nos lares, já que o cidadão só teria direito a exercer um credo de natureza intimista. Afinal, “é incabível impor as próprias convicções aos demais”.

A assertiva é curiosa. Quando se fala de “convicção”, imediatamente, pensa-se naqueles que professam alguma confissão religiosa. Então, os incrédulos seriam cidadãos sem convicções. Como conseqüência, justamente por não estarem convencidos de nada, sua opinião deveria ser exclusivamente decisiva no momento de se estabelecer um consenso democrático a respeito de uma tema de interesse geral. Trata-se de um verdadeiro paradoxo.

Certamente, não faltará um constante patrulhamento em todo cidadão que se sinta convencido além da conta e, então, sua opinião será recebida como um mero juízo lastreado nuns princípios religiosos, dos quais estaria prisioneiro por neles crer piamente ou por ainda não ter superado sua menoridade intelectual. Assim, a deliberada intenção de converter os cidadãos que acreditam em uma fé em uma classe social de categoria secundária não deixaria de ser uma piada, porquanto proveniente de suas presumidas e impotentes vítimas.

O laicismo, ao relegar à nulidade o papel do religioso na sociedade, avoca a si o vácuo deixado e transforma-se na única doutrina confessional, obrigatória a todo o cidadão, à semelhança dos partidos únicos dos regimes comunistas. É feita uma blindagem, de natureza fundamentalista, a qualquer outra opção. A dimensão pública do religioso é retirada de qualquer debate plural.

Pelo contrário, a laicidade consiste em ter em conta, no âmbito público, as várias crenças religiosas dos cidadãos, de maneira que se dá o devido destaque ao exercício do direito individual à liberdade religiosa, com absoluta separação entre Estado e religião. Por conseguinte, as confissões religiosas deixam de ser co-autoras no teatro da vida política e econômica e tornam-se meios eficazes para que os cidadãos possam viver privada e publicamente suas convicções.

Precisamos de uma sociedade livre, democrática e pluralista, na qual as pessoas tenham a possibilidade de aderir livremente às verdades objetivas, que são plenamente compatíveis com a laicidade de um Estado, gerando um todo harmônico. A indisfarçável proposta do laicismo, expressão de um certo racionalismo, redundará, mais cedo ou mais tarde, no relativismo, a antessala dos totalitarismos do século XX, pródigos na destruição de gerações, vidas e das próprias sociedades liberais secularizadas, pois estas vivem de pressupostos que elas mesmas não têm condições de assegurar.

André Fernandes (IFE Campinas)

O fiel da balança

Sem Categoria | 01/12/2014 | |

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Já faz algum tempo que existe um certo consenso acerca da importância de um Estado democrático, sobretudo no velho e bom mundo ocidental, onde muitos parecem estar entediados desse valor, a ponto de se bandearem para as hostes do bando terrorista que está impondo a sharia a bala e fogo literalmente do outro lado do mundo. Lamento a má escolha feita, porque as instituições democráticas são a consagração histórica da dignidade da pessoa humana.

Contudo, por outro lado, há aqueles que endeusam o Estado – os exemplos estão diariamente nos jornais – e entendem que ele deve apresentar-se como a própria vox Dei ao pretender representar a vox populi e, assim, o Estado transforma-se numa espécie de bezerro de ouro, sobretudo na visão jacobina de democracia, em que o Estado personifica a “vontade geral” de Rousseau, sem que haja um tribunal de apelação. Nesse ponto de vista, é evidente que a sociedade assume uma posição posterior e inferior ao Estado.

Churchill dizia que a democracia é o pior de todos os regimes, excetuados todos os outros. A sabedoria de tal afirmação está no fato de que a política democrática não é a resposta última para os fins últimos do homem. Entretanto, ela é muito superior às outras formas de política, porque respeita a dignidade humana, protege os direitos do homem, promove um ethos de paz, possibilita o controle e a substituição dos governantes e zela pela justiça social.

Além disso, a democracia está aberta ao futuro e oferece um grande espaço para o exercício da responsabilidade pessoal e a busca do bem comum. De fato, são tantos bens que a democracia proporciona, que resulta difícil ter algum pendor para os outros regimes, embora haja muitos que estão apenas esperando a democracia enfraquecer para mostrar sua verdadeira máscara. Porque sabem que uma democracia, tal como hoje é vista, fundada apenas no procedimentalismo e no primado do princípio da maioria é uma democracia incapaz de sustentar os pressupostos morais e valorativos em que a mesma democracia busca erguer-se e, principalmente, sustentar-se. Seria como um castelo assentado na areia: na primeira intempérie mais forte, não resiste e desmorona.

Essa visão é um perigo a longo prazo, pois a democracia corre o risco de se tornar numa espécie de ante-sala de novos ensaios autoritaristas ou totalitaristas, “os outros regimes” a que Churchill referiu-se, e é provocada pelo relativismo ético reinante, compreendido por muitos como o fiel, na balança social, da tolerância, do respeito recíproco entre as pessoas e da adesão às decisões majoritárias, o que seria impossível se prevalecessem alguns absolutos morais, mais propensos, segundo essa ótica, ao descalabro democrático.

É inegável que, ao longo da história, foram cometidos muitos abusos em nome dos absolutos morais e que existe o risco real de que uns tantos, ainda hoje e apesar daqueles abusos, queiram impor uma opinião como se fosse um absoluto moral. Mas isso não é suficiente para prescindir dos absolutos morais, até porque muitos balaios de gato foram levados a cabo por aqueles que rejeitam qualquer ideia de absolutos morais: crimes não menos graves e negações radicais da liberdade e da humanidade foram cometidos e ainda se cometem em nome do relativismo ético.

Quando os absolutos morais deixam de nortear a ação social, as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder político ou econômico e a democracia, oca desses valores, converte-se num arremedo de si mesma. Mas não é só. Quando não se aceitam alguns absolutos morais, a lei passa a ser a substituta desses absolutos e o “aprovado democraticamente” transforma-se em critério prático para a atuação dos cidadãos, como se a democracia, em si mesma, fosse “o absoluto moral” definitivo. A democracia não é o outro nome do absoluto moral nem a panacéia da imoralidade: ela é um ordenamento e, como tal, um instrumento e não um fim “autorreferente” (Luhmann).

Sabemos que a democracia moderna surgiu como reação aos excessos absolutistas, em defesa dos direitos do homem e de um rol de valores que derivam da própria verdade do ser humano, isto é, a democracia moderna foi sendo forjada em prol de certos absolutos morais, em muito superiores à vontade arbitrária ou legislada de alguns homens sobre os outros. Horkheimer já nos recordava que “o mundo, que é relativo, pressupõe, segundo seu sentido, um absoluto”. Compete a nós a tarefa de discernir os absolutos morais e, depois, reconhecê-los como o verdadeiro fiel da balança democrática. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 1 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.

Um ousado diagnóstico de nosso tempo (resenha de “Totalitarianism, Globalization, Colonialism”)

História | 24/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Totalitarianism-Redner

Quando puxamos do fundo do baú da memória nossa primeira aula de história no colégio, invariavelmente recordamos a justificativa fornecida pelo professor para nos motivar a estudar vidas e eventos que transcorreram há tanto tempo: para compreendermos o mundo em que vivemos e para onde ele caminha, é necessário conhecermos o passado da humanidade. Não raramente esse chamado à curiosidade ecoa de maneira profunda em nossas almas, motivando-nos até mesmo a comprometer nosso futuro financeiro cursando uma graduação em história ou filosofia.

Mas quando, cheios de entusiasmo, iniciamos nossos estudos superiores, fatalmente vem o balde de água fria, sob a forma de uma solene advertência por parte de nossos mestres universitários: hoje em dia os estudos históricos devem se limitar à reconstituição minuciosa de eventos pontuais. É passado o tempo das grandes sínteses históricas e quem nelas se aventurar corre o risco de fazer má futurologia ou, pior, filosofia da história (atividades não sérias ou cientificamente superadas). Mas serão mesmo estas as únicas opções? Poderá a história, aliada com a filosofia, fornecer subsídios para a compreensão de nosso tempo sem renunciar à seriedade e ao rigor metodológico? É a este desafio que o filósofo e historiador australiano Harry Redner busca responder, levantando corajosamente uma discussão a respeito de um conceito banido por boa parte dos estudos acadêmicos atuais: o de civilização.

Em obra publicada neste ano de 2014, o autor argumenta que presenciamos um processo de destruição da civilização, mas, diferentemente do que sustenta o renomado historiador Eric Hobsbawm, tal processo não culmina num retorno à barbárie[1], mas naquilo que podemos chamar de era “pós-civilizacional”. Enquanto a destruição que conduz ao barbarismo atinge todos os elementos que possibilitam a vida civilizada, incluindo os de ordem material, o estágio pós-civilizacional é marcado por um desenvolvimento acentuado da ciência, da tecnologia, das formas de administração burocrático-legais, da riqueza material (pelo menos nos grandes centros da Europa e dos Estados Unidos) e da alfabetização. Em contrapartida, aquilo que está na raiz da civilização é paulatinamente varrido do mapa, a saber, os padrões éticos de convivência social e a alta cultura, corporificada na literatura e nas artes em geral. Dito de maneira breve: o ensino técnico prospera, mas as profundezas da razão que o tornaram possível definham.

Para o autor, a ideia de civilização está baseada no desenvolvimento da cultura literária que se desdobra a partir de um grupo de obras seminais. No caso do ocidente, as de Platão e Aristóteles, a Bíblia e o aporte do direito romano, que criaram a possibilidade do desdobramento daquilo que podemos chamar de forças da modernidade: o capitalismo industrial, o estado racional-legal e a ciência/tecnologia.

Retomando e desenvolvendo uma tese sustentada por Max Weber, Redner afirma que o desdobramento das forças da modernidade radica na própria natureza humana, uma vez que as perguntas que a elas deram origem foram colocadas por todas as grandes civilizações, mas, por razões de contingência histórica, floresceram de maneira predominante apenas na civilização ocidental, uma vez que as grandes civilizações do oriente (notadamente China, Índia e Islã) entraram em colapso.

Contudo, ao contrário da tese hegeliana, segundo a qual o desenvolvimento da razão implica necessariamente na ampliação da liberdade, Redner procura mostrar que o desabrochar das forças da modernidade do ocidente ocorreu de modo bastante ambíguo, com o surgimento de três fenômenos cujos desdobramentos ameaçam a própria existência da civilização: o colonialismo, o totalitarismo e a globalização.

Dessas três forças, a mais destrutiva foi o totalitarismo, cujas formas principais elencadas por Redner são o bolchevismo (que está na origem de todas as demais adaptações nacionais do marxismo) e o antissemitismo (que lançou as bases para o nazismo alemão). Uma vez que a história da humanidade apresenta um extenso rol de regimes ditatoriais, repressores e assassinos, a nota distintiva do totalitarismo do século XX deve ser procurada na sua ligação com uma ideologia totalitária: faz sentido falar sobre a ideologia nazista, mas não falar sobre a ideologia de Gengis Khan. O legado do totalitarismo foi o maior morticínio já perpetrado na história da humanidade, mas, sobretudo, a destruição de padrões morais de comportamento humano.

Privilegiando definições histórico-genéticas, isto é, procurando a origem e o desenvolvimento histórico dos fenômenos e não definições essencialistas, o autor identifica os vários componentes que deram origem ao bolchevismo (os movimentos conspiratórios russos aliados a uma instrumentalização oportunista do marxismo operada por Lênin) e ao nazismo (a ideologia arianista, o darwinismo social, a teoria da guerra de Clausewitz). Também recebe destaque a ligação originária entre as duas ideologias, materializada na obra de Georges Sorel, que interpretou as lutas sociais em termos de mitologia, despertando reações de aprovação tanto de Lênin quanto de Mussolini.

Como contribuição original para o estudo do totalitarismo, o autor classifica os regimes totalitários em tipos ideais, que podem se suceder de modo cronológico: em primeiro lugar, implanta-se um regime proto-totalitarista, marcado pela mobilização geral da população, pela imposição da ideologia através da força e pela consolidação de um partido no poder. Foi o caso da Rússia desde a tomada do poder pelos bolcheviques em 1917 até o início da coletivização forçada das terras por Stalin em 1929.

Em segundo lugar, surge o totalitarismo propriamente dito, um regime de terror irrestrito, onde a repressão atinge potencialmente toda a população e a ideologia se instaura não como uma meta futura, mas como uma realidade presente (foi o caso da URSS até a morte de Stalin e da China, de 1949 até a morte de Mao Tse-Tung, em 1976). Após a morte do líder, seu partido procura se manter no poder afrouxando – mas não banindo – a repressão e implantando uma liderança colegiada, instaurando o chamado subtotalitarismo. Por fim, quando o partido único é apeado do poder, passa-se a uma fase pós-totalitarista  (fato que só ocorreu com o fim da URSS, mas não na China, que permanece subtotalitária).

Colonialismo e globalização são, por assim dizer, irmãos siameses, cirurgicamente separados quando a tocha da civilização ocidental se transfere da Europa para os EUA, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Seu princípio é o mesmo: a expansão do capitalismo ocidental e a conseqüente modernização do globo terrestre em bases européias (e depois estadunidenses), operada sobre os destroços das antigas civilizações chinesa, indiana e islâmica. Fugindo ao simplismo de imputar culpas pela destruição destas últimas, Redner busca analisar o fenômeno com isenção e chega à seguinte conclusão: o chamado despotismo oriental (conceito trabalhado de maneiras distintas por Marx, Weber e Wittfogel) resultou historicamente em becos sem saída: quando os ocidentais buscaram (brutalmente e de maneira moralmente injustificável em muitos casos) implantar a europeização, os antigos impérios persa, otomano, Mugal e Qing apresentavam sinais claros de decrepitude. O autor dedica longas páginas ao estudo de cada um desses casos.

Com o retraimento da civilização europeia, parte do antigo continente acolheu a ocupação americana de braços abertos e adotou a cultura de massas e o individualismo empreendedor que se sobressaíam nos Estados Unidos. O resultado foi o crescimento da prosperidade material, mas uma redução significativa do nível cultural. De outra parte, o lado oriental da Europa e os chamados países do terceiro mundo, tanto a América Latina quanto os territórios descolonizados, experimentaram a modernização em maior ou menor medida sob a influência da União Soviética: o socialismo, travestido de terceiromundismo, incentivou um agigantamento do Estado e da planificação, com conseqüências materiais e culturais bastante perniciosas.

O autor conclui sua obra com um prognóstico não otimista, mas aponta uma tarefa fundamental que hoje bate às portas da humanidade: a preservação daquilo que restou da civilização em um mundo globalizado. Para que isso seja possível, é mister sobretudo preservar as línguas nacionais das ingerências do vocabulário técnico e científico, que empobrece significados e torna boa parte da experiência humana indizível. Em segundo lugar, é preciso preservar e desenvolver as expressões artísticas nacionais. Não devemos, contudo,  nutrir o sonho de que a modernidade possa ser desfeita, com o retorno a formas pré-modernas de convivência, ou que ela possa ser reformada em termos não ocidentais (nesse ponto, Redner sustenta uma interessante polêmica contra Samuel Hutington e sua tese do conflito de civilizações), mas é preciso salientar que a manutenção daquilo que nos resta da civilização não pode ser feita de outra forma que não a de um empreendimento pacífico, com a participação de todos os povos do mundo.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é advogado, professor de filosofia e gestor do Núcleo de História do IFE Campinas.

LIVRO DA RESENHA: REDNER, Harry. Totalitarianism, Globalization, Colonialism: The Destruction of Civilization since 1914. Londres e New Brunswick, 2014.

NOTAS

[1] Cf. HOBSBAWM, Eric. Barbárie: Manual do Usuário. In. Sobre a História. São Paulo; Companhia das Letras, 1998.