Em um artigo anterior (A Ciência Contemporânea e a Fé), publicado nesta mesma página 2 no dia 26/06/2019, começamos a esboçar as consequências teóricas que decorrem da recusa em admitir – em face das descobertas da ciência moderna – a existência de um Deus transcendente ao universo, livre e criador de tudo o mais. Se o surgimento do universo por si mesmo a partir do nada absoluto é uma contradição (com efeito, como aquilo que não é nada daria a si mesmo o ser? Ademais, o nada absoluto é algo contraditório, impensável), resta a possibilidade de que ele seja eterno. Examinemos as consequências disso em face dos dados atuais da ciência. As teses aqui expostas foram desenvolvidas no instigante livro Comment se pose aujourd’hui le problème de l’existence de Dieu, de Claude Tresmontant.
Em primeiro lugar, assumir hoje que o universo seja eterno sem mais não é uma possibilidade, pois o suprimento de hidrogênio nele existente é finito e a transformação deste elemento em hélio é irreversível, pelo menos em quantidades relevantes. Portanto, para sustentar de modo consistente a eternidade do universo, é necessário assumir que seu desenvolvimento é cíclico e que esses ciclos jamais tiveram começo, e que jamais terão fim.
Uma tal tese foi defendida na história do pensamento pelas antigas teosofias indianas e por alguns filósofos pré-socráticos, notadamente Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso: para eles, o próprio universo é o Ser, a Divindade, portadora de toda a sabedoria e todo o poder (o nome disso é panteísmo). É também comum a esses pensadores apresentarem-se como portadores de um saber de ordem sobrenatural, que ultrapassaria infinitamente a capacidade de compreensão dos reles mortais. A pergunta que então deixamos no ar é a seguinte: cientistas modernos sérios, com verdadeiro compromisso de compreender a realidade, estariam dispostos a assumir hoje, diante da imagem do universo descoberta por suas respectivas ciências, uma tese de ordem mística como essa?
Uma vez que o método científico, quando levado a sério, só nos permite tirar conclusões amparadas por sólidas evidências empíricas, e que estas apontam cada vez mais no sentido de que as transformações presentes no universo são de caráter irreversível, torna-se difícil sustentar essa opinião sem extrapolar as evidências disponíveis. Resta, contudo, para quem deseja se manter fiel à ciência e ao mesmo tempo fazer profissão de fé no ateísmo, o caminho escolhido pelos antigos atomistas gregos: Leucipo, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Para esses autores, o universo é composto de átomos eternos e indestrutíveis, que estariam perpetuamente em movimento e cuja combinação – que se daria ao acaso – seria a causa da existência de todos os entes complexos. Esse posicionamento implica, diante dos dados atuais da ciência, consequências que o colocam numa posição insustentável. Examinemo-las brevemente.
Do ponto de vista da organização dos corpos, o acaso é incapaz de explicar a formação de um mero aminoácido. Sobre isso, os biólogos são hoje unânimes. Se assim é, forçosamente não poderá explicar o surgimento de um organismo vivo vegetal, menos ainda o de um organismo vivo animal e, muito menos ainda, o da inteligência humana. Mas isso não é tudo: uma teoria como o atomismo deixa justamente de responder às perguntas fundamentais da filosofia (pois aqui se trata de uma investigação filosófica, visto que se debruça sobre a estrutura última da realidade): quais são as causas do movimento e do ser?
Ora, o fato é que na história do pensamento há uma solução bastante sólida para essas perguntas: a metafísica bíblica, segundo a qual o universo é criado por um Deus onipotente, inteligente e absolutamente livre. Esta crianção não se daria “por necessidade”, mas pela exclusiva bondade de Deus, que, como Ser Infinito e Onipotente, não necessita de nada além de si mesmo.
Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é professor e membro do IFE Campinas.
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 31 de Julho de 2019, página A2 – Opinião.