O sentido da educação

Opinião Pública | 23/01/2019 | | IFE CAMPINAS

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Certa vez, um de meus professores narrou a história de como uma amiga sua, doutora em matemática, havia optado por seguir essa carreira: ainda nos anos do ensino fundamental, um professor reproduziu para a classe em que ela estava a demonstração de um teorema de geometria. Naquele momento, ela teve como que uma iluminação, percebendo que o teorema era verdadeiro e que não poderia ser de outro modo. A partir de então, ela decidiu dedicar-se à matemática pelo resto da vida, para que pudesse reviver cotidianamente aquela experiência tão marcante. Meu professor indagou dela qual foi o teorema que lhe havia impactado tanto e recebeu como resposta um “não me lembro”. Este episódio nos revela que a experiência fundamental que preenche de sentido qualquer vida de estudos é o contato do estudante com a verdade, com a estrutura profunda do universo. Caso isso não aconteça, todo o esforço e os recursos empregados no processo de aprendizado vão por água abaixo. Infelizmente, é o que vem ocorrendo em nossas escolas e universidades. Por quê?

Desde o período iluminista, foi vencedora no meio pedagógico a ideia segundo a qual o ensino deve preparar o jovem antes para o mundo do trabalho que para o conhecimento da verdade. De acordo com esse discurso, que ressoa cada vez com maior força, a escola não deve transmitir conhecimento, mas habilidades exigidas pelo mercado. Longe de nós assumir uma postura ingênua e “saudosista”, segundo a qual no passado as coisas eram melhores; a sociedade moderna, com efeito, é orientada pelo vínculo estreito entre técnica e ciência e virar as costas para este fato seria algo no mínimo pueril.

Todavia, ocorre que boa parte das teorias científicas que servem de base para a construção de máquinas e instrumentos sofisticados de trabalho não correspondem à estrutura do universo, sendo apenas modelos que permitem a descrição de fenômenos com a finalidade de melhor dominá-los. Em outras palavras, são teorias que não se preocupam com o que as coisas são, mas apenas com o que se pode fazer com elas. Se tivermos em mente a constatação de Aristóteles, para quem todos os homens naturalmente desejam conhecer (entenda-se: conhecer a estrutura profunda do universo), perceberemos que há um descompasso entre o eixo em torno do qual se organiza nosso ensino e os anseios mais profundos da natureza humana. Não é de admirar, pois, que tantos jovens se revoltem contra a exigência a que são submetidos, a saber, de assimilar extensos conteúdos que não lhes fazem nenhum sentido. A velha desculpa de que “nunca vamos usar isso na vida” em muitos casos não é gratuita.

Como sair desse impasse? Em primeiro lugar, deve-se ter claro que o mundo moderno é uma sociedade do trabalho globalmente organizado em torno da aliança entre ciência e técnica e que seguir o caminho do “homem revoltado”, para quem devemos fazer uma crítica radical de tudo que aí está, só nos conduzirá a situações muito piores do que a atual. O caminho da prudência só pode, pois, apontar para um resgate inteligente de elementos milenares de nossa tradição pedagógica que, em seus momentos de maior sabedoria, mostrou que a finalidade da educação só pode ser desenvolver a inteligência humana até o limite de suas possibilidades, que vão muito além de operações técnicas. Resumindo: a inteligência desenvolvida ao máximo é capaz de contemplar a verdade, de alcançar a theoría (a visão global do universo pelas suas causas).

Alguém poderia indagar se um objetivo como esse não seria incompatível com o mundo moderno. Como resposta, evoco em favor de meu argumento um fato narrado pelo historiador francês Étienne Gilson: o sábio grego Arquimedes, que considerava a ciência como um meio para alcançar a contemplação, construiu muito mais máquinas que René Descartes, que considerava que a ciência deveria ser, antes de tudo, algo útil.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é professor de filosofia e membro do IFE.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 23 de Janeiro de 2018, Página A2 – Opinião.