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Do “Reino da Necessidade” ao “Reino da Liberdade”: considerações sobre a técnica na origem da civilização (por Marcus Boeira)

Filosofia | 15/11/2018 | | IFE BRASIL

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Informações e créditos da imagem: Great Sphinx of Giza and the pyramid of Khafre. Most likely Hamish2k, the first uploader. Wikimedia Commons, link.

 

Dentre as causas históricas da civilização humana, há duas reconhecidas universalmente: a origem mito-poética, de matriz especulativa, e a origem produtiva, de raiz material. A primeira condiz com a importância dos símbolos para a formação das sociedades humanas. A segunda, com as diversas formas de conexão entre os seres humanos e a natureza. Ambas são tributárias da técnica, um tipo específico de raciocínio voltado para a atividade produtiva. A técnica indica habilidade, prescrição, método, enfim, o rigor com que alguém produz um bem exterior ao procedimento empregado. Em termos gerais, tanto o termo grego tecné como o latino ars designam um tipo de racionalidade endereçada à fabricação e construção de um objeto qualquer, estático ou dinâmico. Está, em outros termos, no campo semântico do verbo “fazer”.

Do ponto de vista especulativo, a técnica foi fundamental para a simbolização das narrativas originárias das sociedades humanas, para a constituição dos mitos e das genealogias divinas. Platão distingue o âmbito mimético, onde reside a imitatio e a criação universal das possibilidades universais do gênio humano e da imaginação, e o âmbito ético, em que as virtudes conduzem os habitantes da pólis a um nível superior de existência. O âmbito mimético é concebido pela ars poetica, pela técnica empregada na poiesis, e tem como escopo a representação de uma ação universal condizente com um mundo pleno de sentido e fonte de toda ordem para os habitantes do mundo concreto. Platão pinçou a arte poético-mimética em sua filosofia, mas não a aprofundou como o estagirita. Foi Aristóteles quem o fez, com proficiência ímpar. A remissão da ars poetica e, sob certo aspecto, da ars inveniendi ao universal desenvolveu-se pelo papel imprescindível da mimesis na configuração simbólica das sociedades. No fundo, a poética articulou as narrativas originárias, aquelas que explicitavam ao ser humano preso ao tempo e ao espaço a razão e a fundação de sua sociedade, bem como o sentido meta-histórico de sua própria existência. Dentre as diversas funções desempenhadas pelos símbolos e mitos nas antigas sociedades, três despontavam como principais: (i) a atribuição de sentido para a existência histórica, (ii) a sondagem genealógica dos deuses e heróis ancorada no princípio da existência cósmica e (iii) a idealização de um destino para os seres humanos, através da mediação entre o princípio e o termo da civilização. Estas funções eram vertidas ao auditório cultural dos povos pela sacralidade das composições poéticas, pela musicalidade evocada em seus intervalos, métricas e hexâmetros. A vocação do poeta estava devotada em apresentar à civilização seus rudimentos originais, antes presos pelo silêncio dos séculos e agora libertos através do domínio da técnica poética, manifesta pelo ato contemplativo da imagística e pela versificação. A ars poetica deflagrou a busca de sentido, uma etapa indispensável no itinerário intelectual dos povos, e atraiu as civilizações para a simbolização da ordem e a auto-interpretação de suas respectivas sociedades, traçando um fio condutor entre os símbolos, a linguagem e a consciência objetiva da realidade histórica.

O simbolismo das coisas que estão por trás da natureza submeteu a própria natureza ao seu escopo focal, supondo um nível intermediário entre a matéria e o espírito, entre a natureza propriamente dita e os personagens involucrados nas narrativas mencionadas. A abstração universal sopesada pela mimesis e lançada sobre a civilização instaurou uma tensão existencial intermitente, resolvida pelo irrompimento da estética. Da poética à simbolização, as formas de delineamento da beleza e da representação do “perfeito e inefável” ocuparam o espaço outorgado pela ars poetica, abastecendo as sociedades com ritos, práticas e instituições.

Do ângulo material, a técnica é igualmente indispensável. Foi Lucien Blaga, o grande intelectual romeno, quem erigiu dos escombros da história do experimento científico a manifestação teórica da imprescindibilidade da técnica para a construção da civilização artificial. Constatou que embora a antiguidade não tenha legado uma metodologia robusta e formalmente consistente para o desenvolvimento dos processos de conhecimento empírico da natureza, desempenhou, contudo, papel inegável na emancipação do domínio mitológico. Somente quando os elementos da natureza passaram a ser tomados como bastante em si mesmos, quando a natureza ocupou o lugar central na condição material de subsistência da espécie humana foi então possível o crescente apreço pela produção. A natureza passou a ser vista principalmente pelo que continha como ambiente material, mesmo ante a persistência da tendência mito-especulativa, que a designava por alusão a outro mundo. A observação da natureza foi enrijecida pelo cotidiano de cada sociedade, pela práxis experimental mediante a qual os seres humanos conectavam-se de algum modo à natureza e, por esta razão, propiciaram a lenta ascensão de uma noção arcaica de método, de alguma técnica primitiva destinada a facilitar a extração natural e viabilizar o primeiro salto abstrativo, a saber, a posse do conhecimento produtivo. A produção é, como a ação e a contemplação, objeto correspondente à taxonomia dos tipos de raciocínio humano. Produzir é operação típica do raciocínio técnico. Agir é próprio do raciocínio prático. E contemplar é raciocínio de tipo teorético/contemplativo.

Nós os seres humanos lidamos, portanto, com três modos de racionalidade: a racionalidade produtiva, própria da técnica, a racionalidade prática, própria da ação, e a racionalidade contemplativa, correspondente aos raciocínios teóricos. Entre elas, subsiste uma escala de abstração, mediada pela faculdade intelectiva e terminada no objeto causal a que cada operação racional tende. Assim, a primeira escala de abstração antes mencionada é de tipo tecnológico: permite ao ser humano tomar posse de um conhecimento produtivo, apto a estabelecer processos contínuos e duradouros no trato com a natureza.

É curioso que algumas civilizações primitivas tivessem desprezo pelo trabalho manual, encerrando os méritos e as honrarias na vida política e contemplativa. As aristocracias normalmente conferiam maior importância aos afazeres sociais e espirituais, residindo justamente nesses âmbitos de atividade a figura do homo sacer, o ser humano separado, diferenciado do restante da sociedade para dedicar-se aos assuntos mais relevantes, de acordo com a época. Coube ao ser humano rude, primitivo na acepção mais radical da expressão, a vocação social para a técnica. Os critérios por meio dos quais as atividades humanas eram reconhecidas giravam em torno da diferença entre o lúdico e o simbólico, entre as tarefas ociosas e as funções sociais fundamentais. Ao nobre, o esporte e a política. Ao pedagogo, a poética e a retórica. Ao não cidadão, apenas a arte de produzir os meios de subsistência e edificar as cidades. No fundo, o paradoxo entre o desprezo pela técnica e sua imprescindibilidade elucida uma tensão existencial de fundo no princípio das sociedades humanas: a de que os seres humanos transitam entre o mundo da técnica e o mundo que dela depende: a sociedade artificial.

A conquista da civilização só foi possível pela passagem do nível mais primitivo de envolvimento dos seres humanos com a natureza para outro, mais exigente, em que a natureza é contemplada desde fora, por imagens e impressões, através da primeira escala de abstração. A partir de então, o estado letárgico de indiferenciação das atividades é transfigurado em um cenário mais complexo, em que as ações produtivas são compreendidas no interior de um horizonte mais amplo, onde são diferenciadas e setorizadas. O contato cada vez mais profundo com a natureza conduziu a tal diferenciação, pelo que a dualidade entre experiência e conhecimento produtivo acarretou a crescente ocupação com o método.

As atividades técnicas, simultaneamente criativas e produtivas, constituíram o “reino da necessidade”: porque a civilização ancorou seus modos de vida primitivos na subsistência, o aperfeiçoamento da técnica foi perpendicular ao desenvolvimento intelectual das sociedades. Ou seja, a matéria foi condição para que, sob seus rudimentos, fosse soerguida a civilização ativa e contemplativa, própria de um nível mais denso de existência humana, lugar-comum da filosofia e da política, o que Hannah Arendt chama de “reino da liberdade”.

O “reino da liberdade” pode ser visto como aquele que, sustentado pelo da necessidade, dinamiza-se e desenvolve-se por dois modelos gerais de existência: o modelo social, pelo que os seres humanos dependem uns dos outros e reconhecem-se reciprocamente pelo que são e representam socialmente, como também pelo modo como agem; e o modelo intelectual, uma forma de vida inteiramente introspectiva, de acordo com a qual o sentido de vida é conquistado pela busca da sabedoria mediante a contemplação.

A vita activa e a vita contemplativa são dimensões enraizadas na condição humana. A primeira é própria da existência política e realizada no espaço público da palavra e da ação, no agir conjunto dos seres humanos. A segunda, uma forma sui generis de vida, entroniza-se em um âmbito reflexivo mais profundo, onde os sentidos e significados da existência são divididos e rearticulados em um esteio intelectivo mais amplo e permanente, um lugar em que as ideias são condensadas e fornecem subsídios existenciais para os que as possuem. O contemplativo tende à ciência das causas e dos princípios, de onde parte para desvelar as entidades, retirando da quietude as verdades e constatações do espírito para expô-las à humanidade. Apoia-se na máxima de Virgilio “felix qui potuit rerum cognoscere causas”(Georgicon 2, 490). Das duas dimensões brota o ideal de liberdade.

Obviamente, a ideia de liberdade pode ser vista também como princípio do primeiro reino – o da necessidade-, no sentido de que há uma liberdade específica que explica e fundamenta a liberdade produtiva. Ainda assim, a história das ideias e a história intelectual da liberdade normalmente convergem para definir e a analisar a liberdade a partir das modalidades de existência típicas do segundo reino, reduzindo o seu escopo filosófico a uma noção menos vital (nos sentidos vegetativo e apetitivo) e mais intelectual.

O reino da liberdade é dividido entre a sociedade política e a sociedade intelectual. A política e a filosofia coincidem em identificar que a ação e a contemplação reificam o ser humano de uma maneira distinta do modus operandi próprio da subsistência material. O reino da necessidade, embora condição material para a liberdade, a aprisiona ao labor, ao campo onde os seres humanos não podem prescindir de habitar e depender. Somente pela elevação humana ao reino da liberdade é possível tomar posse de um modo de vida mais autêntico e genuíno, menos efêmero e mais duradouro, menos instantâneo e mais pleno de sentido. O reino da necessidade não é capaz por si de conferir aos humanos um âmbito propício para uma vida dotada de sentido, para uma compreensão de si mais radical e menos vulnerável em que possam dedicar-se a perseguir certos fins, a tomar determinados bens como finalidades e adaptá-los aos respectivos modos de vida. A produção oferece o primeiro degrau da sobrevivência, constituindo-se como o espaço peculiar da economia, do oikos grego. Somente na transição do reino da necessidade para o mundo da liberdade, como alude Hannah Arendt, na articulação de um espaço público da palavra e da ação com outra esfera em que os seres humanos contemplam o cosmos e descobrem um sentido para si e para os demais é possível perquirir sobre os significados profundos designados pela palavra liberdade.

Liberdade é palavra polissêmica. Pode designar as mais variadas experiências, ideias, ideais, ideologias, condições, estados-de-coisas, capacidades e operações. Ante uma galeria semântica assaz complexa e multifacetada, ousamos distinguir liberdade e liberdades. No singular, a palavra liberdade pode ser vista, do ponto de vista universal, como a condição através da qual os seres humanos atingem um grau de plenitude mediante a derrota dos empecilhos e a conquista de um plano imaterial de sentido. Nessa acepção, liberdade é uma condição genuína, um atributo antropológico compartilhado pela humanidade ante a mera verificação da existência humana concreta. A liberdade é, por isso, condição para o reino da necessidade e para o da liberdade, conforme o que dissemos antes. A liberdade é requisito para o reino da necessidade porque apenas o ser humano é capaz de produzir e abstrair o modo e a forma de relacionar-se com a natureza, erigindo a partir disso um processo composto de etapas e procedimentos específicos, discernindo o “fazer” e o utilizando em outros experimentos de mesmo cariz. A produção “em larga escala” não é, nesses termos, uma conquista singular da sociedade industrial, mas, substancialmente falando, uma qualidade ontológica do mundo produtivo. Como se pode ver, é a economia a ciência moderna posterior erigida para dar conta do conhecimento destes processos, como também o são as ciências naturais em grande medida.

As liberdades, todavia, coincidem com as várias formas de expressão da experiência humana na história. No âmbito do que designamos como “reino da liberdade” reside diversas dimensões da existência, como a política e a filosofia, que aludem cada qual a tipos de liberdades correspondentes: a liberdade política de deliberar e decidir e a liberdade de pensamento, opinião e expressão. Há, todavia, outros tipos de liberdade que dependem para sua consumação destas liberdades mencionadas, como a liberdade de associação, reunião e locomoção.

O engenho humano foi, desde o princípio das sociedades, capaz de articular estas dimensões e modelos, inclusive empregando processos de simbolização para elevar e dignificar cada um dos reinos analisados. A natureza, por exemplo, foi tomada como caminho para o paraíso, imagem do lugar de plenitude, símbolo da ordem criada, figura da perfeição, objeto das leis cósmicas, etc. A abstração da qual falamos no início levou o ser humano a contemplar a natureza desde fora, presentada aos sentidos como imagem ampliada, simbolizada e significada por atributos e propriedades adicionadas, em suma, como um retrato destinado a remeter a outro mundo, ao paraíso perdido, em alusão ao épico de J. Milton.

Do ponto de vista civilizatório, a natureza pavimentou a transposição do espírito humano da necessidade à liberdade, erigindo a partir de então uma miríade de concepções de liberdade: a liberdade econômica, nascida pela imprescindibilidade do reino da necessidade; a liberdade política, condizente com a vida social. A liberdade em sentido filosófico, atinente à vida contemplativa. A história intelectual da humanidade costurou estas dimensões, alocando o ideal de liberdade para os reinos da existência humana.

Marcus Boeira é Professor de Filosofia Política e Filosofia do Direito, membro da Confraria de Artes Liberais (http://artesliberais.com.br/).

Dilemas do homem atual

Filosofia | 13/10/2017 | | IFE BRASIL

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A figura de Sônia, do livro Crime e Castigo, de Dostoiévski, traduz o diagnóstico do genial escritor russo para o homem contemporâneo. Sônia é uma menina de 17 anos, filha de um pai alcoólatra e irresponsável e de uma madrasta deprimida, neurótica, agressiva e tuberculosa, com vários irmãos daqui e dali. Neste contexto, Sônia é levada, pelas circunstâncias, à prostituição para o sustento da família, mas nunca deixou sua fé de lado.

Contudo, ao contrário da percepção esperada pelo leitor e, principalmente, por Raskólnikov, um estudante influenciado por teorias sobre a origem estritamente humana da moral, na tradição de Maquiavel a Nietzsche, Sônia não guarda rancores do próximo. Muito pelo contrário, sente misericórdia por todos e, inclusive, por sua clientela, composta por bêbados, doentes e velhos que possuíam seu corpo de menina em troca de uns rublos.

Sônia não brilha para nós, seres voltados para o nosso umbigo, simplesmente porque ela ama. Para ela, se alguém ama, então é livre. Segundo o autor russo, quando Sônia, em seu movimento de amor, torna-se opaca (antes, uma menina perdida que, agora, necessita reencontrar-se), estamos no reino do niilismo chique e científico, a saber, a ciência e sua cultura, incapaz de produzir valores perenes.

O homem atual é caracterizado por um relativismo cultural e histórico, fruto do próprio processo filosófico e científico contemporâneo que, por vezes, é apontado como a única solução para uma boa convivência democrática, dentro do espectro da “tolerância às diferenças”, fato gerador daquilo que foi chamado por Ratzinger como a “tolerância intolerante”, mormente quando o debate público refere-se à dimensão religiosa do homem.

No entanto, tal espectro gera, sob outro ângulo, um impasse intelectual e prático, sobretudo no campo dos inúmeros dilemas éticos que vivemos, muitos dos quais encerram verdadeiras aporias, a serem “superadas”, em muitos países, pelos trabalhos das Cortes Constitucionais que, ultimamente, ao invés de interpretar a realidade jurídica a partir das chaves de leitura existentes na realidade ontológica, têm resolvido inovar nessa mesma realidade, ao arrepio do conselho de Gadamer: “Se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto lhe diga algo antes”.

Outro dado marcante do homem atual é sua completa dependência de toda situação que realize seu desejo. Aliás, tal constatação, que poderia ser meramente empírica, deixou essa esfera e ingressou no terreno axiológico, como um dos poucos e válidos critérios de valor. Some-se o apego generalizado pelas coisas materiais, as quais precisam ser adquiridas de forma imediata, paradoxalmente, na mesma velocidade com que, depois, saturam a pessoa, um círculo vicioso gerado pela dinâmica de uma “sociedade de mercado”, em que tudo é precificado e que são criadas sempre novas “necessidades”, com o intuito de o mercado satisfazê-las depois.

Assim, a tríade relativismo-consumismo-hedonismo substituiu, num só golpe, o eixo que sustentou a humanidade por séculos, formado pela transcendência, esperança e caridade. Evidentemente que a assunção daquela tríade foi fruto do desenvolvimento do pensamento moderno, definido, primeiramente, pelo paradigma de cisão entre filosofia e teologia (Descartes) e entre filosofia e ciência (Kant). Ato contínuo, tomou corpo o paradigma de identidade, o qual identifica o absoluto com a história (Hegel) ou com a ciência (Comte), acompanhado, depois, pelo paradigma do efêmero, que nasce com a adoração do tempo, e, ao cabo, pelo paradigma do desprezo à verdade (pragmatismo), seguido de sua negação (niilismo).

Entretanto, não se trata de refutar totalmente a cultura moderna, pois pensamos que muitas de suas facetas contribuíram materialmente para o incremento do tesouro intelectual da humanidade, naquilo que de sentido transcendente subsistiu em cada esforço em direção à órbita veritativa. As lições úteis devem ser conservadas: dentre as quais, uma maior sensibilidade filosófica na captação dos erros de algumas correntes de pensamento e a depuração epistemológica de uma visão estritamente intelectualista da filosofia.

Diante desse “humanismo antropocêntrico” que assinala a humanidade atual, convém refutar o antropocentrismo e não o humanismo, porquanto é legítima uma fecunda valorização do homem, mas não a sua absolutização, que degenera no niilismo mais pedestre. Em substituição, propomos um “humanismo teocêntrico”, infenso a alguns atavismos nostálgicos da Idade Média, justificantes da historicidade dessa importante época humana e que, hoje, padecem de sentido, sem refutarmos o magnífico desenvolvimento das ciências no curso dos últimos séculos, desde que suas conquistas respeitem a dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, acreditamos que as ciências e a filosofia não mais estarão, como outrora, numa relação de instrumentalidade nos confrontos com a teologia, conferindo-se, por outro lado, o lugar certo na ordem de valores para as mais elevadas formas do conhecimento. É induvidoso que uma inteligência formada exclusivamente pelos hábitos mentais da tecnologia e das ciências dos fenômenos dificilmente vive um ambiente normal aberto para o transcendente. Não obstante, a inteligência natural, que opera no senso comum, está centrada no ser espontaneamente e, com frequência, dá muitas pistas para o conhecimento da verdade para aqueles cujo coração está aberto a tanto.

Nunca os homens tiveram tanta necessidade do clima intelectual da filosofia e da teologia, irmanadas num propósito específico: o homem. Talvez, por isso, exista algum medo nesta aventura existencial, a única senda eficaz para reintegrar a inteligência ao seu funcionamento mais natural e profundo e, logo, reconciliar suas vias com o caminho próprio da transcendência.

Nesse momento, a menina Sônia torna-se menos opaca, e podemos perceber que ela é, na literatura, a encarnação do verdadeiro humanismo que vaga, como um cego, pelas “Sibérias” do pensamento humano. Ela está sempre pronta a nos fazer ressurgir, como fez com Raskólnikov que, depois da leitura da passagem evangélica sobre a ressureição de Lázaro, inicia seu processo de regeneração existencial e moral rumo ao resgate do homem novo de São Paulo apóstolo, esse homem teocentricamente reconciliado consigo mesmo.

 

André Gonçalves Fernandes é graduado cum laude pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre e Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (DGP – Lattes) e professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação. Juiz Instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura. Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo – Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões. Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras.

 

 

 

Da gênese das perguntas à obtenção de respostas no processo de investigação intelectual

Filosofia | 18/08/2017 | | IFE CAMPINAS

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1 – O desejo natural pelo conhecimento

Há em todos nós algo que nos impulsiona a compreender e conhecer as coisas. Esse “algo” recebe diversos nomes: força, desejo, impulso, ímpeto ou tendência. Diante de um estímulo, sofremos ou podemos sofrer uma incitação que tende a nos levar da ignorância (não conhecimento) ao entendimento e, na melhor das hipóteses, ao conhecimento.

Segundo Aristóteles, “todos os homens desejam por natureza saber” (Metaphysica I, 980a, 21). Sinal disso é o amor dos homens pelas sensações, que são amadas por si mesmas e não apenas por sua utilidade. Dentre os sentidos, destaca-se a visão, por permitir maior conhecimento. Tomás de Aquino, em seu Comentário à Metafísica, afirma que podem ser três as razões desse desejo natural de conhecer: (i) devido ao fato de que toda coisa deseja naturalmente a sua perfeição. O intelecto humano só é conduzido da potência ao ato e à perfeição pelo conhecimento; (ii) porque qualquer coisa tem uma inclinação natural para sua operação própria. A operação própria do homem, enquanto homem, é o conhecer; (iii) porque cada coisa é desejável para que se una ao seu próprio princípio. O princípio do intelecto humano é o conhecimento, assim como a cor é o princípio da visão, e por ela é desejada (Sententia Metaphysicae, I, l.1, 2-4).

O Estagirita afirma que “pela admiração os homens, agora e antes, começaram a filosofar” (Metaphysica I, 982b, 12). O termo grego traduzido por “admiração” é thaumázein (θαυμάζειν), que foi traduzido pelos latinos como “admirari” (admirar). Thaumázein pode ser ainda traduzido por “maravilhar-se”, “maravilhamento”, “honra”, “admiração”, “culto” ou “adoração”. Tal “maravilhar-se” pode ser considerado um ímpeto que nos leva a conhecer. Poderia ser definido como o conjugado positivo de “desequilíbrio cognitivo”, posto que este último tem sido usualmente descrito como “incômodo”, “insatisfação” ou “frustração” e o próprio termo “desequilíbrio” tem uma carga semântica que pode ser considerada negativa. Podemos dizer que o desequilíbrio cognitivo evidencia a falta do conhecimento e o “maravilhamento” evidencia a oportunidade de se ampliá-lo. Tendo, aparentemente, os mesmos efeitos, o conceito thaumázein evidencia mais fortemente aquele anseio pelo saber, o desejo de compreender inato nos seres humanos, algo decorrente de sua racionalidade, como bem sintetizado pelo filósofo canadense Bernard Lonergan:

“Dentro de todos nós, emergente quando o ruído dos outros apetites está silenciado, há um desejo de conhecer, de entender, de ver o porquê, de descobrir a razão, de encontrar a causa, de explicar. O que é desejado tem muitos nomes. No que consiste precisamente é matéria de disputa. Mas o fato do inquirir está além de toda dúvida.” (LONERGAN, 2005, p. 28)

“De onde aquele ‘Por quê?’ vem? O que ele revela ou representa? […] Nomeie-o como queira – vigilância da mente, curiosidade intelectual, espírito de inquirir, inteligência ativa, desejo de conhecer. Sob qualquer nome, ele é o mesmo e é, acredito, muito familiar a você” (LONERGAN, 2005, p. 34).

Tal “maravilhamento” ou “questão pura”, como é chamado por Lonergan, pode ser evidenciado no breve relato, de todo verossímil, acerca de um garoto que vê pela primeira vez o mar:

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Me ajuda a olhar!” (GALEANO, 2002, p.12).

 

Parece essa uma situação que exprime simbólica e sinteticamente a relação entre educando e educador. O último tem de ajudar o primeiro a chegar além das “dunas altas”, a “olhar” o desconhecido e a se “maravilhar” com o “mar do conhecimento”, que está diante dos “olhos” de sua mente. Mesmo que o educador já tenha vislumbrado e contemplado tal “mar”, certamente descobrirá coisas novas, aprofundando a sua intimidade com os seus diversos pormenores, com as suas maravilhas.

Para tratar da gênese das perguntas à obtenção de respostas no processo de investigação intelectual, tanto do educador quanto do educando, apresentaremos, a seguir, algumas considerações sobre o processo cognitivo e alguns elementos de epistemologia e filosofia da educação.

2 – As três operações cognitivas e argumentação no processo cognitivo

Tomando como referência as três operações cognitivas (denominadas operações do espírito pelos escolásticos), a saber, apreensão simples, juízo e raciocínio, particularmente utilizadas no estudo da lógica tradicional, acrescida da argumentação, própria da retórica, apresentaremos sucintamente, a seguir, o desenvolvimento dos processos cognitivos do ser humano.

O sujeito cognoscente (a pessoa que pode conhecer) está imersa em um ambiente, ou melhor, faz parte de um ambiente composto por diversos elementos individuais (coisas, animais, pessoas, etc.).

A primeira operação cognitiva é a simples apreensão ou percepção da realidade. Tal operação permite a formação de conceitos, o que é próprio do pensamento racional.

Na experiência sensorial, dada pela relação com tais elementos, vários processos causais são iniciados, resultando em diversos estados no sujeito. Tais processos geram nos órgãos dos sentidos diversas impressões sensíveis. Inicia-se desse modo, a percepção e a cognição intelectual. Por exemplo, quando uma pessoa olha para uma maçã, toma-a em suas mãos, cheira-a e a morde a fim de degustá-la, estão presentes nessas simples operações várias impressões sensíveis resultantes nos cinco sentidos (textura, forma, cores, cheiro, sabor e sons), que só estão presentes na interação direta com o objeto (a maçã, no caso).

Uma vez retirado o objeto do alcance dos sentidos, as impressões sensíveis desaparecem, estão ausentes. Todavia, mesmo na ausência do objeto já experienciado, é possível “invocar” ou “acessar” de algum modo alguns “dados” oriundos da interação/percepção prévia. Tais “dados” não são “dados imediatamente sensíveis”, posto que o objeto está ausente e, consequentemente, também estão ausentes as correspondentes impressões sensíveis. Os “dados” em questão são imagens, geradas na imaginação e registrados na memória. Imagens que além de visuais, podem ser táteis, auditivas, gustativas e olfativas. A imaginação é o reino das possibilidades, onde se cria imagens correspondentes às impressões sensíveis de objetos e dos próprios objetos. Além disso, a imaginação é capaz de criar objetos nunca antes experienciados, combinando imagens de mesmo tipo e de tipos diferentes. Por exemplo, imagine o leitor uma montanha dourada ou um elefante roxo (combinações de imagens visuais), e ainda, uma pizza com aroma de baunilha (combinação de imagem visual e de imagem olfativa), objetos provavelmente nunca antes experienciados.

Por um processo de abstração (para nossos propósitos basta considerá-lo como um ponto de vista particular, que seleciona alguns tipos de dados e ignora a outros) a concepção (a inteligência que concebe) cria objetos que não podem ser imaginados: ideias ou conceitos. Por exemplo, por meio de diversas impressões sensíveis de cachorros particulares, pode-se imaginar cachorros particulares diversos, experienciados anteriormente ou não, todavia, a ideia ou o conceito de “cachorro” não pode ser imaginado, não se pode abstrair de todas as instâncias sensíveis e imagens de cachorros particulares todas as características comuns a eles e imaginar algo como a “cachorridade”. Só podemos conceber tal objeto abstrato, ainda que para invocar tal ideia ou conceito, devamos recorrer a imagens (por ex., pela imagem de algum cachorro particular ou por meio de algum termo como “cachorro” ou “dog”, que se associe ao conceito, quando o consideramos).

Alguns contrastes: a imagem é o conteúdo de um ato da imaginação, que está sob controle da inteligência. A ideia é o conteúdo de um ato da inteligência. A imagem é concreta e particular. A ideia é abstrata e universal.

Um conceito pode ser entendido como uma ideia explicitamente formulada pela consciência, usualmente expressa em palavras, símbolos ou definições. O conceito é uma criação da inteligência humana no propósito de encontrar entendimento ou conhecimento. Não é um fim em si mesmo e sim um meio, pelo qual podemos entender corretamente o funcionamento do mundo material.

A simples apreensão é, portanto, o processo de entendimento ou abstração da essência ou natureza de uma coisa, apreensão do que a coisa é, sem afirmar ou negar nada sobre ela. Apreender significa assimilar mentalmente, compreender, captar, e é a apreensão simples que permite a percepção de noções simples, que servirão para a consideração das mais complexas, por meio de sua combinação, em juízos ou raciocínios. Como os resultados de tal ato cognitivo são conceitos, segue-se que esses funcionarão como unidades básicas de pensamento. Note-se que apesar de se considerar na lógica tradicional que os conceitos que provêm da apreensão simples sejam perfeitamente determinados, não é esse o caso na realidade do processo cognitivo, pois as primeiras noções consideradas nesse processo são gerais e muito confusas. Daí a importância de uma correta análise de conceitos em todos os domínios do pensamento rigoroso, em particular na educação.

Os conceitos podem ser expressos externamente à mente do sujeito, podendo ser comunicados a outros sujeitos. Usualmente isso se dá mediante uma expressão oral ou escrita, denominada termo. O termo é a contrapartida linguística do conceito. O conceito também pode ser denominado termo mental.

A partição de um termo ou conceito se dá em sua extensão e em sua compreensão (ou intensão). A extensão é o conjunto dos elementos aos quais o termo ou conceito convém. A compreensão, por sua vez, é o conjunto de notas ou atributos que constituem o significado do termo ou conceito. Por exemplo, considere-se o conceito “homem” (= “ser humano”). A extensão de tal conceito contém todos os indivíduos aos quais convém o conceito. Aristóteles, Sherlock Holmes e a Princesa Isabel estão em sua extensão, o gato Félix, a Esfinge, a Lua, não. Na compreensão do conceito “homem” devem estar todas as características comuns a todos os seres humanos, por exemplo, os atributos “ser”, “vivente”, “racional”, “animal”, etc.

A segunda operação cognitiva é o juízo. O juízo é o ato da inteligência que une ou divide os conceitos, mediante afirmação ou negação, no confronto com a realidade das coisas. Pelo juízo, o sujeito cognoscente afirma ou nega alguma coisa de outra coisa, isto é, liga ou separa duas noções. Por exemplo, mediante um juízo, estabelece-se a união (afirma-se) ou a divisão (nega-se) dos conceitos “homem” e “animal” (“Todo homem é animal”; “nem todo animal é homem”). O juízo é, pois, a percepção e a afirmação da relação entre duas ideias. Um juízo é expresso por uma proposição, que pode ser verdadeira, se corresponder com a realidade, ou falsa, caso contrário.

Pela simples apreensão, a inteligência tenta capturar a essência ou natureza das coisas, o que a coisa é. O juízo, por sua vez, afirma o ser concreto, a relação entre as coisas, se tal coisa é ou não é uma outra coisa, isto é, se tal noção se pode ou não afirmar de uma outra.

A terceira operação cognitiva é a operação própria da razão, isto é, o raciocínio, que permite chegar ao conhecimento das coisas desconhecidas a partir das conhecidas. Na lógica tradicional, os tipos de raciocínio são o indutivo e o dedutivo. No raciocínio indutivo, parte-se de dados particulares (experiências, fatos, enunciados empíricos), obtendo-se leis ou conceitos mais gerais. Na dedução, parte-se de premissas aceitas como verdadeiras pelo juízo, obtendo-se uma conclusão necessariamente verdadeira. O exemplo mais conhecido de raciocínio dedutivo é o silogismo. Por exemplo,

Todo ser racional é livre.

Ora, o ser humano é racional.

Portanto, o ser humano é livre.

 

O raciocínio pode ser considerado como um tipo de argumentação interna ao sujeito, quando tal processo objetiva a aquisição de novos conhecimentos (considerados como entendimentos verdadeiros, isto é, que correspondem aos fatos). Tais raciocínios e outros tantos tipos de recursos podem ser utilizados como argumentos propriamente ditos, isto é, visando o convencimento de outros sujeitos acerca da veracidade de uma tese ou conclusão. Tais artifícios são objetos de estudo da retórica e são empregados, ao menos intuitivamente, pelos sujeitos nos contextos sociais mais variados.

O considerado acima a respeito das três operações cognitivas pode ser sumarizado no quadro abaixo, considerando como estágio “zero” a sensibilidade, que captura as impressões sensíveis, produzindo imagens, que servirão de matéria-prima para a construção de conceitos pela apreensão simples:

Operação Cognitiva Produto da Operação Expressão

(Oral ou Escrita)

1. Apreensão simples Conceito Termo, Palavra, Nome
2. Juízo Juízo Proposição, Sentença
3. Raciocínio/Argumentação Raciocínio Raciocínio, Argumentação

Além de concordar com algumas conclusões de recentes pesquisas das mais diversas áreas da filosofia e da educação, o esboço apresentado acima corresponde, em linhas gerais, a uma interpretação de teorias desenvolvidas na tradição aristotélico-tomista, na qual se emprega uma terminologia aparentemente mais hermética e é distinta em outros pormenores. Parece, portanto, adequada uma breve consideração acerca de algumas assunções da que poderíamos denominar filosofia da educação nessa tradição, apresentando alguns de seus resultados e consequências, bem como outros desdobramentos dentro da mesma linha filosófica.

3 – Duas formas de aprendizagem e as ferramentas do Trivium

Tomás de Aquino definiu a Educação (educatio) como “o progresso da criança à condição de excelência propriamente humana, ou seja, ao estado de virtude”(Scriptum Super Sententiis, IV). Para o Aquinate, tal processo se realiza mediante duas formas distintas de aprendizagem, a saber, disciplina e inventio. A primeira forma, a disciplina, consiste na ideia de aprendizagem pela instrução. A segunda, a inventio, corresponde à descoberta ou aprendizagem por si mesmo. Para Tomás a inventio é a mais importante, posto que constitui a essência de todo aprendizado. Segundo o filósofo, “não se diz que o professor transfere conhecimento ao aluno, como se o conhecimento que está no professor fosse numericamente o mesmo que surge no aluno” (De Veritate, XI, ad 6). Em outras palavras, não há transmissão de conhecimento do professor para o aluno. O conhecimento que surge no aluno pelo ensino é similar ao que há no professor, que deve chamar a atenção de seus estudantes para um centro de interesse, do qual ele mesmo tenha conceitos bem estabelecidos e que lhes sejam acessíveis cognitivamente. Tal conhecimento (scientia) é conduzido (educta) da potência ao ato. Desse modo, o professor não é propriamente o agente da aprendizagem e sim uma causa instrumental. No que compete ao educador, o sucesso desse processo reside na ordem pela qual sua disciplina (instrução) conduz o educando na sequência natural da inventio (descoberta).

Por uma tradição que remonta aos pitagóricos, a educação clássica de gregos, romanos e europeus, do Medievo até o Século XIX, baseava-se essencialmente no ensino das artes liberais. Esse sistema de ensino pretendia desenvolver o homem de pensamento livre, capaz de tirar suas conclusões por conta própria. Tais artes dividiam-se em Trivium e Quadrivium. Podemos dizer que, nesse tipo de educação, o Trivium corresponde às humanidades e consiste no ensino de gramática, lógica e retórica, artes da linguagem. O Quadrivium era constituído da aritmética, geometria, música e astronomia. Era a parte matemática e científica da educação clássica. Tais artes serviam como introdução para os indivíduos que continuariam os estudos em medicina, filosofia, direito e teologia. Os temas apresentados na seção anterior correspondem a uma pequena porção dos conteúdos tratados no Trivium, especialmente na disciplina de lógica.

Em seu famoso ensaio “As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem” (The Lost Tools of Learning, apresentado pela primeira vez em Oxford, em 1947), a escritora Dorothy Sayers sugere que o estado da educação contemporânea consiste em ensinar tudo às crianças, exceto como aprender. Sayers propõe um ensino focado numa estrutura metodológica que possibilite aos educandos o domínio de métodos de aprendizagem (o conteúdo em si seria de importância secundária), de acordo com estágios de desenvolvimento intelectual, uma espécie de Trivium para o século XX. Primeiramente, em sua perspectiva, os alunos devem empreender o estudo de uma língua (além da sua materna), a fim de que possam conhecê-la e compreender a sua estrutura. Após tal estágio, os alunos devem aprender como usar a língua, como definir seus termos e efetuar proposições acuradas, como construir argumentos e como detectar falácias nos discursos. No terceiro estágio, os educandos devem aprender como se expressar na língua, como se comunicar de forma elegante e convincente. Sayers considera tal programa um Trivium moderno “com modificações”, como uma preparação para a aprendizagem. Os estágios considerados recebem os mesmos nomes das artes do Trivium e coincidem com certas idades ou fases dos educandos, isto é, cada estágio instrucional do Trivium deve coincidir com o correspondente estágio do desenvolvimento cognitivo do indivíduo: o estágio gramático ao pensamento concreto, o estágio lógico ou dialético ao pensamento analítico e o estágio retórico ao pensamento abstrato.

Tal abordagem tem sido efetuada por aqueles que desejam oferecer uma educação clássica. Nessa esteira, considera-se que do mesmo modo que as coordenações motoras da criança se desenvolvem em função do tempo, de acordo com fases, também as habilidades cognitivas se desenvolvem no tempo, de acordo com estágios. Como um processo natural, admite-se que todo sujeito, seja criança ou adulto, ao aprender algo novo, percorre os mesmos estágios. No estágio gramático, é dada a ênfase na memorização de nomes, de coisas, de fatos concretos, etc. No estágio dialético, a ênfase está no entendimento e pensamento analítico. No estágio retórico, dá-se ênfase na livre expressão e no pensamento mais abstrato e sintético.

O quadro a seguir sumariza algumas das principais características de cada estágio de desenvolvimento cognitivo das crianças (ou quais características devem ser consideradas em cada estágio instrucional), incluindo o estágio pré-gramático:

Estágio Instrucional Principais Características Descrição Geral
Pré-gramático

(c. 4 – 7 anos)

Grande interesse em aprender;

Gosta de canções, histórias, jogos e projetos;

Intervalo de atenção curto;

Gosta de repetição;

Quer tocar, saborear, cheirar, ver e ouvir;

Imaginativo e criativo.

Perguntas: Qual é o gosto disso? Qual é a textura disso? etc.

Sensação
Gramático

(c. 8 – 12 anos)

Grande interesse em fatos novos;

Gosta de entender, explicar e conversar;

Gosta de colecionar e organizar;

Gosta de canções e rimas;

Aprende idiomas facilmente;

Absorve fatos básicos e fundamentais facilmente;

Memoriza informações facilmente;

Coleta dados de uma grande variedade de domínios;

Não tem preconceitos (não pré-julga);

Desenvolve clareza, descrição e narrativa.

Perguntas: O que? Quem? Quando? Onde?

Observação – Concepção
Lógico

(c. 12 – 15 anos)

Grande interesse em aprender, se desafiado;

Gosta de discussão e debates;

Gosta de conhecer fatos de bastidores;

Interesse no porquê das coisas;

Entende causa e efeito;

Percebe princípios e relações;

Capacidade de análise;

Desenvolve comparação e contraste, criticidade e argumentação.

Perguntas: Por quê? Para que? É verdade?

Raciocínio
Retórico

(c. 15 – 17 anos)

Comunicação expressiva;

Interesse na aplicação dos conhecimentos;

Idealista, interesse em justiça;

Grande interesse em áreas ou tópicos especiais;

Capacidade de síntese;

Desejo de expressar sentimentos e ideias;

Preocupação com a opinião alheia (especialmente a impressão que causa nos outros e no grupo);

Persuasivo, polêmico, poético, criativo, independente;

Discurso e ação baseado no conhecimento adquirido.

Perguntas: Como? O que fazer?

Comunicação

É importante ressaltar que, nesse contexto, o Trivium pode ser considerado como (i) um conjunto de disciplinas; (ii) o processo natural de aprendizagem de algo novo por todo sujeito, seja criança ou adulto e (iii) uma sequência de estágios instrucionais, que correspondem às fases do desenvolvimento cognitivo dos educandos. O quadro acima contempla essa última perspectiva, destacando o que é próprio de cada estágio. Todavia, deve-se ter em mente que em todos os estágios instrucionais, o indivíduo exerce operações que correspondem a todos os estágios da aprendizagem, de acordo com capacidades e restrições próprias de sua maturidade. Por exemplo, uma criança que esteja no estágio instrucional lógico, ao adquirir conhecimentos novos, opera em todos os estágios de aprendizagem, a saber, estágios gramático, lógico e retórico. Na situação ideal, tal criança deve ter recebido uma quantidade satisfatória de estímulos no estágio instrucional anterior (estágio instrucional gramático), a ponto de já possuir um rico repertório de conceitos e fatos, bem como um aguçado domínio das operações do estágio gramático de aprendizagem. O mesmo deve se dar em seu estágio instrucional atual (estágio instrucional lógico), mediante uma sequência adequada de estímulos adequados que desenvolva as operações lógicas (do estágio lógico de aprendizagem), sendo dada uma natural ênfase à disciplina correspondente (disciplina lógica).

Na coluna “Descrição Geral” do quadro acima, procurou-se apresentar a habilidade que corresponde mais propriamente a cada estágio instrucional ou, o que é o mesmo, a ênfase que é devida ao estágio do desenvolvimento cognitivo da criança ou adolescente, no qual se encontra. Desse modo, atribuiu-se ao estágio pré-gramático a sensação, ao gramático a observação/concepção, ao lógico o raciocínio e ao retórico a comunicação. Pode-se notar, que tais habilidades próprias se assemelham à sensibilidade e às três operações cognitivas, a saber, apreensão simples, juízo e raciocínio/argumentação.

O quadro abaixo evidencia a correspondência entre sensibilidade-operações cognitivas, estágios instrucionais do Trivium e suas habilidades próprias:

Faculdade ou Operação Cognitiva Estágio Instrucional Habilidade própria do Estágio
Sensibilidade Pré-gramático Sensação
Apreensão Simples Gramático Observação – Concepção
Juízo Lógico Raciocínio
Raciocínio/Argumentação Retórico Comunicação

É possível perceber que a correspondência não é estritamente precisa, a não ser que se considere a terceira operação cognitiva mais no seu caráter argumentativo e a segunda operação contemple um caráter raciocinador, o que é plausível, tendo em conta que a conclusão (o conhecimento novo adquirido a partir de outros conhecimentos prévios) pode ser considerada um juízo. Para não se corromper a precisão das operações, também é possível considerar que ao estágio lógico, corresponde a segunda operação e parte da terceira.

Nas principais características foram incluídas perguntas usuais consideradas por sujeitos em cada estágio instrucional: “qual é o gosto disso?”, “qual é a textura disso?” e outras perguntas associadas a experiências sensíveis, no estágio pré-gramático; “o que?”, “quem?”, “quando?” e “onde?” no estágio gramático; etc. Podemos considerar que cada uma dessas perguntas são manifestações, de tipos distintos, da “pura questão”, do “maravilhamento”, que impulsiona e norteia a investigação intelectual do sujeito cognoscente.

Do considerado acima, além de uma direta reflexão sobre as fases do desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes, bem como de suas particularidades, surgem duas novas sugestões: (i) o nosso entendimento sobre as próprias operações cognitivas pode ser ampliado e (ii) pode-se efetuar a abordagem sobre a investigação intelectual mediante o estudo do processo  de obtenção de respostas a perguntas de distintos tipos. Podemos dizer que as duas sugestões são contempladas e desenvolvidas por Lonergan, como se pode verificar na seção a seguir.

4 – Das perguntas às respostas.

Em sua principal obra “Insight: Um Estudo do Entendimento Humano” (1957), Lonergan procede a fim de entender “o que é entender”. Para tanto, procura responder às questões conexas fundamentais: “O que acontece quando conhecemos?”, “Por que essa atividade é conhecimento?“ e “O que se conhece quando tal acontece?”. Desse modo, desenvolve uma teoria cognitiva, uma epistemologia e uma metafísica, respectivamente.

Em sua teoria cognitiva, considera três passos: experiência, entendimento e juízo. Acrescentando-se a decisão para agir, tais passos formam os níveis de auto-transcendência do sujeito. Tais níveis podem ser compreendidos como o conjunto de operações pelas quais uma pessoa transcende a si mesmo e lida com o mundo externo.

Segundo a sua abordagem, os objetos da experiência são dados. Dados não são apenas os objetos acessíveis aos sentidos, e sim todos os objetos que são imediatamente acessíveis à consciência.  Os dados dão origem a questões e questões dão origem a insights sobre os dados. Segundo Lonergan, um insight é simplesmente um ato do entendimento e sobre tal noção edifica seu sistema. Os matemáticos buscam insights sobre conjuntos de elementos, os cientistas nos domínios dos fenômenos e os homens do senso comum nas situações concretas e nos afazeres práticos. De acordo com o filósofo, todos os atos de entendimento tem certa semelhança e todas as pessoas têm insights. Através de insights do senso comum, um sujeito entende as coisas em sua relação consigo mesmo. Através de insights teóricos, pode-se entender as coisas em suas relações recíprocas, como as coisas se relacionam entre si. Esse último tipo de insight é o procurado pelos cientistas, que devem seguir certa metodologia a fim de se obter o conhecimento desejado. Como mencionado acima, tal desejo de conhecer é chamado por Lonergan a “questão pura” e sobre essa questão primordial ele constrói sua filosofia.

Baseado na famosa história de Arquimedes saindo dos banhos de Siracusa, correndo nu a gritar “Eureka!”, após solucionar um problema, Lonergan identifica cinco características do insight:

  1. O insight surge como uma libertação da tensão da pesquisa;
  2. O insight surge repentina e inesperadamente;
  3. Os insights dependem de condições internas ao invés de circunstâncias externas;
  4. Um insight oscila entre o abstrato e o concreto;
  5. Um insight passa a fazer parte da textura habitual da mente individual.

No anseio de conhecer, uma pessoa pode dedicar muito esforço na busca de soluções para determinados problemas, deixando outros afazeres de lado. Quando ocorre o insight correspondente, o sujeito se livra da tensão da pesquisa e sente deleite e satisfação no sucesso. Apesar de desejado, o insight ocorre repentinamente; ocorre quando ocorre. Não é possível forçá-lo, ainda que se possa criar situações propícias para seu surgimento, que depende das condições internas, diante de uma pergunta concreta e precisa. É, portanto, bem distinto da experiência sensitiva, que depende das circunstâncias externas. Uma vez encontrada a solução para o problema concreto e bem delineado, tal solução pode ser aplicada a diversos outros problemas particulares, sendo, portanto, uma solução abstrata. Desse modo, o insight liga o concreto e o abstrato. Uma vez adquirido, tal insight passa a fazer parte do rol de conhecimentos habituais de uma pessoa. O que era difícil passa a ser simples e óbvio. É como andar de bicicleta: uma vez aprendido, por mais que se tenha dificuldades iniciais em se retomar o hábito, a habilidade é própria de quem a adquiriu.

Os insights ocorrem em um indivíduo a todo instante de sua consciência. Ao ouvir ou ler e entender o que se deseja comunicar, ao entender algo errado, em todas as antecipações de fatos, na expectativa de ouvir o som do trovão, ao perceber-se o clarão de um relâmpago, ao se resolver um problema de matemática, etc.

No estágio da experiência, os insights provêm entendimento provisório. No estágio do entendimento, o sujeito lida com a acumulação, integração e a sistematização de insights. Percebe assim relações e conexões entre os conteúdos dos insights prévios. Todavia, o inquirir oriundo da questão primordial não fica satisfeito com entendimento plausível. É necessário verificar se o entendimento é correto ou não, se há razão para afirmá-lo ou negá-lo. Esse é o estágio do juízo.

Fica delineado, desse modo, um roteiro para uma metodologia de pesquisa, ou um método de aprendizagem. Um método que segue os passos naturais do processo cognitivo. Segundo Lonergan, “um método é um esquema normativo de operações recorrentes e relacionadas entre si, que produzem resultados cumulativos e progressivos”. Os resultados são progressivos mediante uma sequência contínua de descobrimentos. Os resultados são cumulativos quando se efetua uma síntese de cada insight com os insights válidos prévios. Seguindo o exemplo da ciência moderna, as operações consideradas podem ser lógicas ou não-lógicas. Estão incluídas as operações lógicas, já que se objetiva a descrição, a formulação de problemas e hipóteses, deduzindo implicações, referindo-se a proposições, termos e relações. Essas servem para consolidar os resultados obtidos. As operações não-lógicas são consideradas visando-se o tratamento de investigação, observação, descobrimento, experimento, síntese e verificação. Essas servem para que os resultados obtidos se mantenham abertos para progressos posteriores. Para Lonergan, a conjunção de ambos os tipos de operações conduz a um processo “aberto, dinâmico, progressivo e cumulativo”.

A lista de operações que compõe esse esquema fundamental é a seguinte: ver, ouvir, tocar, cheirar, saborear, inquirir, imaginar, entender, conceber, formular, refletir, ordenar e ponderar a evidência, julgar, deliberar, avaliar, decidir, falar, escrever. Tais operações são transitivas no sentido psicológico, posto que fazem o operador consciente do objeto. Ninguém pode ver sem ver algo, ou pode ouvir sem ouvir algo, etc. Tal operador, ao qual pertencem as ditas operações, é um sujeito no sentido psicológico, isto é, ele opera conscientemente. Pela intencionalidade (tender-a), as operações em questão fazem presentes os objetos ao sujeito. Pela consciência, as operações fazem presentes o sujeito a si mesmo.  Despertas, a consciência e a intencionalidade expandem-se em quatro níveis qualitativamente diferentes, mencionados acima como níveis de auto-transcendência:

  1. Nível empírico (nível da experiência), no qual o sujeito tem sensação, percepção, imaginação, sente, fala e se move;
  2. Nível intelectual (nível do entendimento), no qual o sujeito inquire, entende, expressa o que entendeu, elabora pressupostos e implicações de sua expressão;
  3. Nível racional (nível do juízo), no qual o sujeito reflete, ordena as evidências, faz juízos, seja sobre verdade ou falsidade, seja sobre certeza ou probabilidade;
  4. Nível responsável (nível da decisão para agir), no qual o sujeito se interessa por si mesmo, por suas operações, suas metas, etc. e delibera sobre suas possíveis vias de ação, as avalia, decide e tomas suas decisões.

Como seres empiricamente conscientes, os seres humanos não se distinguem muito dos outros animais mais desenvolvidos. Todavia, a consciência e a intencionalidade empírica são apenas parte de atividades de ordem superior. Os dados empíricos provocam o inquirir. O inquirir, por sua vez, conduz o sujeito ao entendimento, que é expresso mediante a linguagem. Surge a ocasião de julgar. O sujeito inteligente busca insights, que acumulados são revelados em seu discurso, conduta e habilidades. O sujeito reflexivo e crítico se entrega aos critérios da verdade e da certeza, abandona-se a si mesmo. Na ação, emerge como pessoa, encontra os demais no interesse comum pelos valores, desejando uma organização baseada na perceptividade, inteligência, razoabilidade e no exercício responsável de sua liberdade.

Em cada nível, há questões que são manifestações da “questão pura”. Essas dirigem as operações correspondentes no afã de se obter respostas adequadas a cada nível. A esse respeito, Lonergan afirma que a questão pura, é anterior a todo insight, conceito ou palavra, posto que esses têm a ver com respostas e, antes de um sujeito procurar respostas, ele as deseja.

No nível intelectual, opera-se o inquirir, o entender e a formulação. As questões norteadoras são: “O que é isso?”, “Por quê?” e “Quão frequentemente?”. A primeira pergunta leva a uma compreensão e formulação de um todo-identidade-unidade inteligível nos dados como indivíduo. A segunda resulta numa compreensão e formulação de uma lei, uma correlação, um sistema. A terceira corresponde a uma compreensão e formulação de um ideal de frequência.

No nível reflexivo, pode-se considerar a relação entre juízos e proposições. Há duas atitudes mentais com relação às proposições: (i) apenas considerá-las e (ii) concordar ou discordar delas. No primeiro caso, uma proposição pode ser considerada como um objeto do pensamento, como o conteúdo de um ato de conceber, definir, pensar, supor ou considerar. No segundo, uma proposição é um ato de julgar, portanto, é o conteúdo de uma afirmação ou de uma negação, de um assentimento ou de uma discordância. Podemos perceber que assim considerada, uma proposição pode significar um juízo, como o produto da segunda operação cognitiva.

Lonergan chama a atenção de que um juízo pode ainda ser compreendido em sua relação com questões. As questões podem ser de dois tipos: questões para inteligência e questões para reflexão. Diferentemente das questões para inteligência, já consideradas no nível intelectual, as questões para reflexão podem ser respondidas simplesmente com “sim” ou “não”. À pergunta “Existe a raiz quadrada de quatro?”, responde-se, corretamente, com um “sim” ou, erroneamente, com um “não”. Tal questão é um exemplo de questão para reflexão. Agora, à pergunta “Qual é a raiz quadrada de quatro?”, não se pode responder com “sim” ou “não”. A única resposta correta é “dois”. Esse é um exemplo de questão para inteligência. As questões para entendimento podem ser associadas à primeira operação cognitiva. As questões para reflexão, por sua vez, à segunda operação cognitiva. Cada questão para inteligência (que resultam em conceitos, definições, objetos de pensamento, suposições e considerações) leva a uma posterior questão para reflexão: “É assim mesmo?”. Emergem assim as noções de verdade, falsidade e probabilidade. Nesse nível, surge também a realidade de que cada sujeito é responsável por seus próprios julgamentos, o que aponta para o nível seguinte, que não é propriamente cognitivo (“Como agir?”).

No quadro abaixo, apresentamos sinteticamente os três níveis do processo cognitivo, acrescentando-se o nível da decisão para agir, considerados por Lonergan:

Níveis Apresentações ou Questões Atos Produtos
I.    Nível Empírico Dados. Imagens perceptuais Imagens Livres Expressões
II. Nível Intelectual Questões para Inteligência Insights (Intelecções) Formulações
III. Nível Racional Questões para Reflexão Reflexão Juízo
IV. Nível Responsável Questões para deliberação Decisão Ação

Após essa breve apresentação, fica patente a correspondência entre os níveis de auto-transcendência de Lonergan, com os estágios instrucionais do ensino baseado no Trivium e com as faculdades sensitivas e operações cognitivas consideradas no ínicio dessa investigação. Nota-se também que, na abordagem lonerganiana, há uma abundância de operações bem específicas em cada nível, que amplia o nosso entendimento sobre as próprias operações cognitivas ou o próprio rol delas. Ademais, possibilita que se possa entender o processo cognitivo do sujeito cognoscente como um processo de obtenção de respostas, mediado por tais operações e insights, a perguntas bem particulares, em cada um desses níveis. Tais correspondências são indicadas no quadro a seguir:

Faculdade ou Operação Cognitiva Estágio Instrucional

(Trivium)

Níveis de Auto-Transcendência e suas Principais Operações, segundo Lonergan
Sensibilidade Pré-gramático Nível Empírico

(Experimentar)

Apreensão simples Gramático Nível Intelectual

(Entender)

Juízo Lógico Nível Racional

(Afirmar)

Raciocínio/Argumentação Retórico Nível Responsável

(Decidir para agir)

Cabe observar que no nível responsável, mais do que o raciocínio, o ato próprio é a tomada de decisão para agir, o que contempla possivelmente uma “argumentação” interna durante a deliberação e, manifesta-se exteriormente, na ação, que serve de “argumentação” externa, expressão do sujeito.

 

 

5 – Considerações finais

Nossa reflexão acerca das operações cognitivas pressupôs a realidade externa, a existência de um sujeito cognoscente e a acessibilidade dos dados da realidade por esse sujeito. Desse modo, considerou-se que as apresentações sensíveis, provocam produções internas ao indivíduo, que num processo de abstração, captura a essência das coisas, gerando conceitos, que podem ser relacionados mediante juízos. Se tais juízos correspondem aos fatos, diz-se que são verdadeiros, são conhecimentos. Os juízos, por sua vez, podem ser assumidos a fim de se obter novos conhecimentos. Ademais dos raciocínios, outros recursos podem ser utilizados para a comunicação de conhecimentos.

Lonergan, assume que há uma tendência natural do ser humano em direção ao conhecimento. Refletindo sobre o modo habitual de entendimento nas diversas áreas do fazer humano, destaca o conceito de insight como um ato do entendimento que liga questões a suas respostas. No primeiro nível, o intelectual, um insight a uma pergunta para inteligência pode ser formulado. No nível seguinte, o racional, tal formulação é julgada por um insight reflexivo, afirmando ou negando a formulação do nível anterior. Apresenta um conjunto de operações que expandem as três operações cognitivas de nossa reflexão inicial. Ainda assim, há uma correspondência entres tais operações cognitivas e as principais de cada nível de auto-transcendência. A partir do conjunto expandido de operações, que contém as operações dos sentidos externos, Lonergan conclui a intencionalidade e a consciência do sujeito, que acabam por afirmar a realidade externa, a existência de um sujeito cognoscente e a acessibilidade dos dados da realidade por esse sujeito, numa ordem inversa a inicial. Em outras palavras, seguindo ordens distintas, com pressupostos diferentes, é possível chegar a resultados bastante semelhantes, corroborando as suas conclusões.

Os estágios do Trivium parecem contemplar esse esquema cognitivo, mediante uma instrução orientada pela ênfase, a fim de se aprimorar subconjuntos de operações de cada nível de desenvolvimento cognitivo e/ou de auto-transcendência.

Tal breve estudo pretende contribuir para auxiliar o educador na reflexão sobre os processos cognitivos e epistêmicos de um sujeito cognoscente. Tal sujeito pode ser o próprio educador ou educando. Segundo o exposto acima, cada um deles, com suas particularidades, passa pelos três estágios de aprendizagem do Trivium quando busca adquirir novos conhecimentos. Para que cada um desses estágios de aprendizagem esteja aprimorado, a proposta de estágios instrucionais do Trivium parece bastante razoável, especialmente à luz da reflexão acerca das operações cognitivas e dos níveis de auto-transcendência, com suas considerações sobre os insights, obtidos a partir de questões concretas e bem delineadas.

Fábio Maia Bertato é pesquisador do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência – Unicamp e superintendente do IFE Campinas.

 

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Artigo originalmente publicado em BORGES, R. R., et al. Do projetar o contexto investigativo ao maravilhar-se: quais caminhos seguir? Campinas: 148 Educação, 2017. Pp. 33 – 48.

Uma vida filosófica – por Marcelo Musa Cavallari

Filosofia | 14/07/2017 | | IFE BRASIL

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Alasdair MacIntyre at The International Society for MacIntyrean Enquiry conference held at the University College Dublin, March 9, 2009. Photo: Sean O’Connor.

 

Num momento importante em suas vidas, Martin Heidegger e Edith Stein encontraram-se pela última vez, para uma caminhada com seu mestre, Edmund Husserl. Começava a década de 1920. Husserl e a fenomenologia que ajudara a criar eram a mais instigante novidade no cenário filosófico alemão. Heidegger ainda não havia escrito sua obra máxima, O ser e o tempo, publicada em 1927, mas era o mais promissor dos alunos de Husserl. Uma estrela em ascensão em meio a um grupo, em geral, brilhante. Stein trabalhava como secretária de Husserl, estagnada na carreira acadêmica ao menos em parte por ser mulher e em parte por ser judia.

Terminado o passeio, os caminhos dos dois alunos de Husserl se afastam. O ex-seminarista Heidegger abraça o nazismo, que lhe deu cargos. A judia atéia Stein converte-se ao catolicismo, torna-se freira carmelita, morre em Auschwitz e é canonizada como Santa Teresa Benedita da Santa Cruz, seu nome de religiosa. “A direção da vida de Stein só se torna inteligível à luz de sua filosofia, e suas posições filosóficas são, de maneira significativa, informadas por suas experiências de vida”, escreve Alasdair MacIntyre em seu livro Edith Stein: a Philosophical Prologue 1913-1922. A frase serve como resposta à pergunta que dá o título ao capítulo inicial “Por que se interessar por Edith Stein como filósofa?”

Stein é, segundo MacIntyre, um exemplo moderno de algo comum na antigüidade: um filósofo que vive seu pensamento. O contraste com Heidegger, observa, não poderia ser maior. Depois da guerra, os seguidores de Heidegger criaram a versão de que a vida do filósofo – e seu envolvimento com o nazismo – era uma coisa, sua filosofia, outra. O repúdio àquela “aventura política” não deveria prejudicar a recepção de sua obra. “O próprio Heidegger, na última parte de sua vida, cooperou generosamente com aqueles que estavam estabelecendo as bases desse mito”, escreve ele. É a situação do filósofo como especialista universitário levada ao extremo. Para MacIntyre, que enfrentou a tarefa de pensar, se não diante de um evento tão definidor quanto a Segunda Guerra, ao menos diante de uma situação tão tensa quanto a Guerra Fria, o conforto da “poltrona de Oxford” não bastava.

Publicado em 2005, Edith Stein: a Philosophical Prologue 1913-1922, é o mais recente livro de MacIntyre. Nascido em 1928 em Edimburgo, ele vem publicando livros e artigos regularmente desde 1953. O interesse pela vida de Edith Stein amarra vários fios que sua investigação filosófica vem perseguindo desde o começo. E ilustra, como exemplo dramático de vida filosófica, uma outra vida filosófica: a do próprio MacIntyre.

No mundo de língua inglesa, ele é hoje um dos filósofos mais importantes e influentes. Especialmente no campo da filosofia moral. Chegou a ela através da política. Membro do Partido Comunista britânico até o início da década de 1950, saiu dele com a geração de escritores e pensadores que, desencantada com o rumo que o stalinismo imprimira ao comunismo internacional, fundaria a New Left britânica. MacIntyre, então no início de sua carreira acadêmica, lançou-se filosoficamente em busca da solução para um problema. O comunismo, e mais do que ele o marxismo, pareciam-lhe corretos em certos pontos. Basicamente a crítica ao capitalismo liberal e seu efeito destruidor ao transformar o homem que trabalha em uma mercadoria. Diante do sinistro quadro que se desenhara na União Soviética, no entanto, era claro que o marxismo tinha falhas graves. Se não implicava necessariamente uma ditadura sanguinária como a de Stalin – argumento da maior parte dos integrantes da New Left – também não era capaz de barrá-la. Faltava, dentro do marxismo, um argumento moral contra Stalin.

O diagnóstico de MacIntyre era de que o marxismo, ao se pretender científico, incorria num erro que vedava ou prejudicava toda argumentação moral. Parte do movimento socialista havia adotado a visão de que o marxismo era uma teoria científica. Assim, postulava causas para os comportamentos sociais e para a história. A primeira parte do caminho filosófico de MacIntyre lida, por causa disso, com o que se poderia chamar de filosofia das ciências sociais. Especialmente com a noção de causa aplicada a essas ciências. Causa, resume MacIntyre, entende-se na ciência como o conjunto das condições suficientes para que se dê um resultado. Isso elimina a escolha. A maçã não escolhe cair ou não na cabeça de Newton. Dadas as condições, ela cai. Uma ação humana, portanto, pode ter uma causa, ou pode ser fruto da vontade racional. Não as duas coisas ao mesmo tempo. Ora, o campo da filosofia moral é exatamente o da vontade racional e, por ser racional, livre. Posto fora desse campo pela pretensão científica, o marxismo se via impossibilitado de articular uma crítica moral que tornasse inaceitável a opção stalinista.

Era preciso, então, buscar uma alternativa. A mais evidente era a versão do humanismo socialista expressa por Eduard Bernstein em 1899. Para Bernstein, o socialismo era uma resposta moral do homem aos problemas sociais. O princípio básico era a idéia kantiana de que um ser humano não pode ser considerado como um meio. O homem é sempre um fim em si mesmo. Era exatamente isso que a versão stalinista do socialismo negava; logo, a alternativa humanista de Bernstein, se parecia boa no fim do século XIX, era claramente inútil na segunda metade do XX, o século do Holocausto e do Gulag.

O problema é que, fora do campo do socialismo, também não parecia haver nenhuma alternativa viável. O interminável debate em torno de questões morais que marca a modernidade revela duas coisas, segundo MacIntyre. A primeira é que o debate é interminável porque cada concepção moral fala a partir de seu próprio ponto de vista. Não há um critério ao qual possam apelar para resolver seus impasses os defensores das teses utilitaristas – que supõem que a ação moralmente correta é aquela que resulta em maior bem para o maior número de pessoas – ou deontológicas – os que supõem, na esteira de Kant, que a ação moral é aquela que decorre de princípios racionalmente estabelecidos, independentemente de quais sejam seus resultados.

A análise desse problema, e as componentes epistemológicas levantadas por MacIntyre em seu trabalho sobre causalidade nas ciências sociais e na psicanálise (na obra The Unconscious: a Conceptual Analysis, de 1958, em que MacIntyre acusa Freud do mesmo erro que apontara em ação nas ciências sociais, o de transformar em causa, portanto em encadeamento automático de situações, o que é fruto da vontade, ainda que inconsciente, no caso do objeto da psicanálise) levaram à sua mais ambiciosa obra, After Virtue. Traduzida para o português como Depois da virtude, o título significa ao mesmo tempo isso e mais do que isso. “Depois da virtude” é o sentido mais literal e aponta para o caráter histórico da obra. Ela é uma expansão do projeto iniciado por MacIntyre em 1966 com A Short History of Ethics e diagnostica a crise da filosofia moral moderna como um efeito de sua história. After Virtue, no entanto, também significa algo como “atrás da virtude”, “à caça da virtude” e, nesse sentido, representa o que MacIntyre propõe como solução para a situação atual de crise: a redescoberta da moral de virtudes em sua formulação clássica por Aristóteles, especialmente na versão do aristotelismo representada por São Tomás de Aquino. A escolha de Aristóteles, especialmente em sua versão tomista, não é aleatória e o caminho até essa solução não é simples. Articular todos os componentes da argumentação de MacIntyre vai muito além dos limites desse artigo. Mas três elementos permitem seguir, em traços rápidos, a sua argumentação geral.

Em primeiro lugar o diagnóstico da situação atual da filosofia moral como um debate feito em torno de termos e expressões – moral, bem, certo e errado etc. – cujo significado se perdeu. “Uma parte fundamental da minha tese é afirmar que o discurso e os métodos da moral moderna só podem ser compreendidos como uma série de fragmentos remanescentes de um passado mais antigo e que os problemas insolúveis que geraram para os teóricos modernos da moral permanecerão insolúveis até que isso seja bem compreendido”, escreve MacIntyre em Depois da virtude.

A moral clássica, tal como se desenvolveu desde a Antigüidade e que valeu, cristianizada, ao longo da Idade Média, pressupunha dois critérios fundamentais. Por um lado a moral visa a fazer do homem aquilo que ele deve ser por sua natureza. Assim, a moral das virtudes é teleológica. As virtudes visam a um fim específico. De outro lado, aquilo que o homem deve fazer é buscar o bem. Para articular cada bem particular evitando o relativismo, segundo o qual cada um considera bem aquilo que melhor lhe parecer, os bens articulam-se em torno de um Bem absoluto. Esses dois critérios fundamentais foram perdidos no início da era moderna. Sobraram apenas os termos em que o debate se dava. Sem os critérios, afirma MacIntyre, o debate contemporâneo se articula em torno de fantasmas. “Se o caráter deontológico dos juízos morais é o fantasma das concepções da lei divina, que é completamente estranha à metafísica da modernidade, e, se o caráter teleológico é, de maneira semelhante, o fantasma das concepções da natureza e da atividade humanas que também estão deslocadas no mundo moderno, devemos esperar que os problemas do entendimento e da atribuição de um status inteligível aos juízos morais continuem a surgir e se demonstrar hostis a soluções filosóficas”, escreve ele em Depois da virtude.

Em segundo lugar, é necessário superar a divisão entre visões de mundo estanques. Quando ainda se dedicava primariamente à epistemologia das ciências sociais, Thomas Kuhn publicou seu A estrutura das Revoluções Científicas, uma das mais influentes obras de filosofia da ciência. Nela, Kuhn lançou o conceito de paradigma, hoje banalizado. Ele argumentava que teorias científicas rivais não podem ser compreendidas uma com o aparato racional da outra. Quando das revoluções científicas, uma delas derrota a anterior. Muda o paradigma, nos termos de Kuhn. O novo paradigma não tem uso para o anterior. MacIntyre, sempre preocupado em evitar o relativismo, rejeita esse modelo. É preciso que haja algo pelo que os paradigmas rivais possam ser julgados. Se não for assim, não há motivo racional para mudar de um para o outro. E não havendo motivo racional para mudar, não há como apontar falhas morais, por exemplo, num “paradigma” stalinista, transportando a discussão de Kuhn para o campo das ciências sociais ou sua aplicação prática pelos marxistas. A solução para isso MacIntyre busca no conceito de narrativa, que ele elabora principalmente a partir da visão de história de R.G. Collingwood. É a narrativa que permite contar a passagem de um paradigma a outro, ou seja, que permite narrar o acontecimento histórico que é uma revolução científica. É ela a detentora da racionalidade pela qual se pode explicar a escolha de um paradigma em detrimento de outro. Essa narrativa contará como um paradigma ampliou o poder explicativo de uma ciência em particular, justificando, assim, de fora e acima de cada um dos paradigmas rivais envolvidos, a revolução científica representada pela troca de paradigmas. Essa narrativa é atividade de uma tradição dentro da qual seres humanos racionais se dedicam a uma investigação.

É esse mesmo modelo que ele propõe como solução para o insolúvel debate moral contemporâneo. A racionalidade do debate terá de ser restituída através da retomada da tradição na qual o Ocidente se engajou, desde a Antigüidade até o início da era moderna, em busca de um modo racional de entender como se deve viver, o ponto de chegada, afinal, de toda ética.

E assim, chega-se ao terceiro ponto básico do projeto de MacIntyre. Assim como a narrativa é aquilo que nos permite superar as divisões de um debate que se tornou fragmentado, é ela que vai dar forma a cada vida humana. Na altura em que escreveu Depois da virtude, publicado em 1981, MacIntyre considerava que o principal problema para a aceitação das virtudes tais como Aristóteles as entendia, era o que ele chamou de “biologia metafísica”. Para o grego, aceitar o fato de que a moral dita aquilo que o homem tem de fazer para se tornar o que ele deve ser não era um problema. Ele sabia de antemão, graças a essa “biologia metafísica”, o que o homem deveria ser. Essa alternativa, disse McIntyre em Depois da virtude, não está disponível ao homem contemporâneo. MacIntyre mudou um pouco sua posição desde então, especialmente à luz de São Tomás de Aquino. De qualquer forma, a solução para MacIntyre era uma vida inteligível. Se há parâmetros morais que podem ser estabelecidos racionalmente, então é necessário que silogismos práticos sejam possíveis. Isto é, de duas premissas teóricas, segue-se uma conclusão que é um ato, uma ação humana racional. Racional, portanto compreensível. Uma vida vivida moralmente, portanto, será uma vida compreensível, como uma narrativa. Uma vida que tem a possibilidade de atingir ou não a meta. Essa vida inteligível será inteligível para os outros e para quem a vive. Será, pois, uma narrativa capaz de superar as divisões em papéis sociais estanques que a vida moderna impõe ao homem contemporâneo.

MacIntyre não parou em Depois da virtude. Sua concepção de tradição sofreu algumas mudanças em livros como Whose Justice? Which Rationality? Three Rival Versions of Moral Enquiry: Encyclopaedia, Genealogy, and Tradition e Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues. Nesse último, MacIntyre praticamente aceita a “biologia metafísica” de Aristóteles que havia rejeitado e sua versão da história da filosofia moral sofre alguns ajustes, mas não abandona a direção dada por Depois da virtude.

Essa direção é, na verdade, o que torna inteligível a vida de McIntyre. Desde as preocupações que o levaram ao marxismo e, depois, afastaram-no dele e o levaram de encontro a Aristóteles e São Tomás. Graças a isso, MacIntyre também conseguiu articular a preocupação com o cristianismo que desde o início se apresentou a ele como uma possível alternativa para o marxismo. Em 1988, aos 60 anos, o filósofo se converteu ao catolicismo. Assim se explica seu interesse por Edith Stein como filósofa. Uma judia que abandonou a fé de seus pais e encarou a morte guiada por uma busca filosófica é um exemplo radical de vida inteligível. E tornar a vida inteligível é um papel que a filosofia precisa urgentemente recobrar.

Marcelo Musa Cavallari é jornalista.

Publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro de 2009.

Mário Ferreira dos Santos e o nosso futuro – por Olavo de Carvalho

Filosofia | 22/06/2017 | | IFE BRASIL

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Quando a obra de um único autor é mais rica e poderosa que a cultura inteira do seu país, das duas uma: ou o país consente em aprender com ele ou recusa o presente dos céus e inflige a si próprio o merecido castigo pelo pecado da soberba, condenando-se ao definhamento intelectual e a todo o cortejo de misérias morais que necessariamente o acompanham.

Mário Ferreira ocupa no Brasil uma posição similar à de Giambattista Vico na cultura napolitana do século XVIII ou de Gottfried von Leibniz na Alemanha da mesma época: um gênio universal perdido num ambiente provinciano incapaz não só de compreendê-lo, mas de enxergá-lo. Leibniz ainda teve o recurso de escrever em francês e latim, abrindo assim algum diálogo com interlocutores estrangeiros. Mário está mais próximo de Vico no seu isolamento absoluto, que faz dele uma espécie de monstro. Quem, num ambiente intelectual prisioneiro do imediatismo mais mesquinho e do materialismo mais deprimente – materialismo compreendido nem mesmo como postura filosófica, mas como vício de só crer no que tem impacto corporal -, poderia suspeitar que, num escritório modesto da Vila Olímpia, na verdade uma passagem repleta de livros entre a cozinha e a sala de visitas, um desconhecido discutia em pé de igualdade com os grandes filósofos de todas as épocas, demolia com meticulosidade cruel as escolas de pensamento mais em moda e sobre seus escombros erigia um novo padrão de inteligibilidade universal?

Os problemas que Mário enfrentou foram os mais altos e complexos da filosofia, mas, por isso mesmo, estão tão acima das cogitações banais da nossa intelectualidade, que esta não poderia defrontar-se com ele sem passar por uma metanóia, uma conversão do espírito, a descoberta de uma dimensão ignorada e infinita. Foi talvez a premonição inconsciente do terror e do espanto – do thambos aristotélico – que a impeliu a fugir dessa experiência, buscando abrigo nas suas miudezas usuais e definhando pouco a pouco, até chegar à nulidade completa; decerto o maior fenômeno de auto-aniquilação intelectual já transcorrido em tempo tão breve em qualquer época ou país. A desproporção entre o nosso filósofo e os seus contemporâneos – muito superiores, no entanto, à atual geração – mede-se por um episódio transcorrido num centro anarquista, em data que agora me escapa, quando se defrontaram, num debate, Mário e o então mais eminente intelectual oficial do Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado Júnior. Caio falou primeiro, respondendo desde o ponto de vista marxista à questão proposta como Leitmotiv do debate. Quando ele terminou, Mário se ergueu e disse mais ou menos o seguinte:

– Lamento informar, mas o ponto de vista marxista sobre os tópicos escolhidos não é o que você expôs. Vou, portanto, refazer a sua conferência antes de fazer a minha.

E assim fez. Muito apreciado no grupo anarquista, não por ser integralmente um anarquista ele próprio, mas por defender as idéias econômicas de Pierre-Joseph Proudhon, Mário jamais foi perdoado pelos comunistas por esse vexame imposto a uma vaca sagrada do Partidão. O fato pode ter contribuído em algo para o muro de silêncio que cercou a obra do filósofo desde a sua morte. O Partido Comunista sempre se arrogou a autoridade de tirar de circulação os autores que o incomodavam, usando para isso a rede de seus agentes colocados em altos postos na mídia, no mundo editorial e no sistema de ensino. A lista dos condenados ao ostracismo é grande e notável. Mas, no caso de Mário, não creio que tenha sido esse o fator decisivo. O Brasil preferiu ignorar o filósofo simplesmente porque não sabia do que ele estava falando. Essa confissão coletiva de inépcia tem, decerto, o atenuante de que as obras do filósofo, publicadas por ele mesmo e vendidas de porta em porta com um sucesso que contrastava pateticamente com a ausência completa de menções a respeito na mídia cultural, vinham impressas com tantas omissões, frases truncadas e erros gerais de revisão, que sua leitura se tornava um verdadeiro suplício até para os estudiosos mais interessados – o que, decerto, explica mas não justifica. A desproporção evidenciada naquele episódio torna-se ainda mais eloqüente porque o marxismo era o centro dominante ou único dos interesses intelectuais de Caio Prado Júnior, ao passo que, no horizonte infinitamente mais vasto dos campos de estudo de Mário Ferreira, era apenas um detalhe ao qual ele não poderia ter dedicado senão alguns meses de atenção: nesses meses, aprendera mais do que o especialista que dedicara ao assunto uma vida inteira.

A mente de Mário Ferreira era tão formidavelmente organizada que para ele era a coisa mais fácil localizar imediatamente no conjunto da ordem intelectual qualquer conhecimento novo que lhe chegasse desde área estranha e desconhecida. Numa outra conferência, interrogado por um mineralogista de profissão que desejava saber como aplicar ao seu campo especializado as técnicas lógicas que Mário desenvolvera, o filósofo respondeu que nada sabia de mineralogia mas que, por dedução desde os fundamentos gerais da ciência, os princípios da mineralogia só poderiam ser tais e quais – e enunciou quatorze. O profissional reconheceu que, desses, só conhecia oito.

A biografia do filósofo é repleta dessas demonstrações de força, que assustavam a platéia, mas que para ele não significavam nada. Quem ouve as gravações das suas aulas, registradas já na voz cambaleante do homem afetado pela grave doença cardíaca que haveria de matá-lo aos 65 anos, não pode deixar de reparar na modéstia tocante com que o maior sábio já havido em terras lusófonas se dirigia, com educação e paciência mais que paternais, mesmo às platéias mais despreparadas e toscas. Nessas gravações, pouco se nota dos hiatos e incongruências gramaticais próprios da expressão oral, quase inevitáveis num país onde a distância entre a fala e a escrita se amplia dia após dia. As frases vêm completas, acabadas, numa seqüência hierárquica admirável, pronunciadas em recto tono, como num ditado.

Quando me refiro à organização mental, não estou falando só de uma habilidade pessoal do filósofo, mas da marca mais característica de sua obra escrita. Se, num primeiro momento, essa obra dá a impressão de um caos inabarcável, de um desastre editorial completo, o exame mais demorado acaba revelando nela, como demonstrei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas, um plano de excepcional clareza e integridade, realizado quase sem falhas ao longo dos 52 volumes da sua construção monumental, a Enciclopédia das Ciências Filosóficas.

Além dos maus cuidados editoriais – um pecado que o próprio autor reconhecia e que explicava, com justeza, pela falta de tempo –, outro fator que torna difícil ao leitor perceber a ordem por trás do caos aparente provém de uma causa biográfica. A obra escrita de Mário reflete três etapas distintas no seu desenvolvimento intelectual, das quais a primeira não deixa prever em nada as duas subseqüentes, e a terceira, comparada à segunda, é um salto tão formidável na escala dos graus de abstração que aí parecemos nos defrontar já não com um filósofo em luta com suas incertezas e sim com um profeta-legislador a enunciar leis reveladas ante as quais a capacidade humana de discutir tem de ceder à autoridade da evidência universal.

A biografia interior de Mário Ferreira é realmente um mistério, tão grandes foram os dois milagres intelectuais que a moldaram. O primeiro transformou um mero ensaísta e divulgador cultural em filósofo na acepção mais técnica e rigorosa do termo, um dominador completo das questões debatidas ao longo de dois milênios, especialmente nos campos da lógica e da dialética. O segundo fez dele o único – repito, o único – filósofo moderno que suporta uma comparação direta com Platão e Aristóteles. Este segundo milagre anuncia-se ao longo de toda a segunda fase da obra, numa seqüência de enigmas e tensões que exigiam, de certo modo, explodir numa tempestade de evidências e, escapando ao jogo dialético, convidar a inteligência a uma atitude de êxtase contemplativo. Mas o primeiro milagre, sobrevindo ao filósofo no seu quadragésimo terceiro ano de idade, não tem nada, absolutamente nada, que o deixe prever na obra publicada até então. A família do filósofo foi testemunha do inesperado. Mário fazia uma conferência, no tom meio literário, meio filosófico dos seus escritos usuais, quando de repente pediu desculpas ao auditório e se retirou, alegando que “tivera uma idéia” e precisava anotá-la urgentemente. A idéia era nada mais, nada menos que as teses numeradas destinadas a constituir o núcleo da Filosofia Concreta, por sua vez coroamento dos dez volumes iniciais da Enciclopédia, que viriam a ser escritos uns ao mesmo tempo, outros em seguida, mas que ali já estavam embutidos de algum modo. A Filosofia Concreta é construída geometricamente como uma seqüência de afirmações auto-evidentes e de conclusões exaustivamente fundadas nelas – uma ambiciosa e bem sucedida tentativa de descrever a estrutura geral da realidade tal como tem de ser concebida necessariamente para que as afirmações da ciência façam sentido.

Mário denomina a sua filosofia “positiva”, mas não no sentido comteano. Positividade (do verbo “pôr”) significa aí apenas “afirmação”. O objetivo da filosofia positiva de Mário Ferreira é buscar aquilo que legitimamente se pode afirmar sobre o conjunto da realidade à luz do que foi investigado pelos filósofos ao longo de vinte e quatro séculos. Por baixo das diferenças entre escolas e correntes de pensamento, Mário discerne uma infinidade de pontos de convergência onde todos estiveram de acordo, mesmo sem declará-lo, e ao mesmo tempo vai construindo e sintetizando os métodos de demonstração necessários a fundamentá-los sob todos os ângulos concebíveis.

Daí que a filosofia positiva seja também “concreta”. Um conhecimento concreto, enfatiza ele, é um conhecimento circular, que conexiona tudo quanto pertence ao objeto estudado, desde a sua definição geral até os fatores que determinam a sua entrada e saída da existência, a sua inserção em totalidades maiores, o seu posto na ordem dos conhecimentos, etc. Por isso é que à seqüência de demonstrações geométricas se articula um conjunto de investigações dialéticas, de modo que aquilo que foi obtido na esfera da alta abstração seja reencontrado no âmbito da experiência mais singular e imediata. A subida e descida entre os dois planos opera-se por meio da decadialética, que enfoca o seu objeto sob dez aspectos:

 

1. Campo sujeito-objeto. Todo e qualquer ser, seja físico, espiritual, existente, inexistente, hipotético, individual, universal, etc. é simultaneamente objeto e sujeito, o que é o mesmo que dizer – em termos que não são os usados pelo autor – receptor e emissor de informações. Se tomarmos o objeto mais alto e universal – Deus –, Ele é evidentemente sujeito, e só sujeito, ontologicamente: gerando todos os processos, não é objeto de nenhum. No entanto, para nós, é objeto dos nossos pensamentos. Deus, que ontologicamente é puro sujeito, pode ser objeto do ponto de vista cognitivo. No outro extremo, um objeto inerte, como uma pedra, parece ser puro objeto, sem nada de sujeito. No entanto, é óbvio que ela está em algum lugar e emite aos objetos circundantes alguma informação sobre a sua presença, por exemplo, o peso com que ela repousa sobre outra pedra. Com uma imensa gradação de diferenciações, cada ente pode ser precisamente descrito nas suas respectivas funções de sujeito e objeto. Conhecer um ente é, em primeiro lugar, saber a diferenciação e a articulação dessas funções. Alguns exercícios para o leitor se aquecer antes de entrar no estudo da obra de Mário Ferreira: (1) Diferencie os aspectos e ocasiões em que um fantasma é sujeito e objeto. (2) E uma idéia abstrata, quando é sujeito, quando é objeto? (3) E um personagem de ficção, como Dom Quixote?

2. Campo da atualidade e virtualidade. Dado um ente qualquer, pode-se distinguir entre o que ele é efetivamente num certo momento e aquilo em que ele pode (ou não) se transformar no instante seguinte. Alguns entes abstratos, como por exemplo a liberdade ou a justiça, podem se transformar nos seus contrários. Mas um gato não pode se transformar num antigato.

3. Distinção entre as virtualidades (possibilidades reais) e as possibilidades não-reais, ou meramente hipotéticas. Toda possibilidade, uma vez logicamente enunciada, pode ser concebida como real ou irreal. Só podemos obter essa gradação pelo conhecimento dialético que temos das potências do objeto.

4. Intensidade e extensidade. Mário toma esses termos emprestados do físico alemão Wilhelm Ostwald (1853-1932), separando aquilo que só pode variar em diferença de estados, como por exemplo o sentimento de temor ou a plenitude de significados de uma palavra, e aquilo que se pode medir por meio de unidades homogêneas, como por exemplo linhas e volumes.

5. Intensidade e extensidade nas atualizações. Quando os entes passam por mudanças, elas podem ser tanto de natureza intensiva quanto extensiva. A descrição precisa das mudanças exige a articulação dos dois pontos de vista.

6. Campo das oposições no sujeito: razão e intuição. O estudo de qualquer ente sob os cinco primeiros aspectos não pode ser feito só com base no que se sabe deles, mas tem de levar em conta a modalidade do seu conhecimento, especialmente a distinção entre os elementos racionais e intuitivos que entram em jogo.

7. Campo das oposições da razão: conhecimento e desconhecimento. Se a razão fornece o conhecimento do geral e a intuição o do particular, em ambos os casos há uma seleção: conhecer é também desconhecer. Todos os dualismos da razão – concreto-abstrato, objetividade-subjetividade, finito-infinito, etc. – procedem da articulação entre conhecer e desconhecer. Não se conhece um objeto enquanto não se sabe o que tem de ser desconhecido para que ele se torne conhecido.

8. Campo das atualizações e virtualizações racionais. A razão opera sobre o trabalho da intuição, atualizando ou virtualizando, isto é, trazendo para o primeiro plano ou relegando para um plano de fundo os vários aspectos do objeto percebido. Toda análise crítica de conceitos abstratos supõe uma clara consciência do que aí foi atualizado e virtualizado.

9. Campo das oposições da intuição. A mesma separação do atual e do virtual já acontece no nível da intuição, que é espontaneamente seletiva. Se, por exemplo, olhamos esta revista como uma singularidade, fazemos abstração dos demais exemplares da mesma tiragem. Tal como a razão, a intuição conhece e desconhece.

10. Campo do variante e do invariante. Não há fato absolutamente novo nem absolutamente idêntico a seus antecessores. Distinguir os vários graus de novidade e repetição é o décimo e último procedimento da decadialética.

 

Mário complementa o método com a pentadialética, uma distinção de cinco planos diferentes nos quais um ente ou fato pode ser examinado: como unidade, como parte de um todo do qual é elemento, como capítulo de uma série, como peça de um sistema (ou estrutura de tensões) e como parte do universo.

Nos dez primeiros volumes da Enciclopédia, Mário aplica esses métodos à resolução de vários problemas filosóficos divididos segundo a distinção tradicional entre as disciplinas que compõem a filosofia – lógica, ontologia, teoria do conhecimento, etc. –, compondo assim a armadura geral com que, na segunda série, se aprofundará no estudo pormenorizado de determinados temas singulares.

Aconteceu que, na elaboração dessa segunda série, ele se deteve mais demoradamente no estudo dos números em Platão e Pitágoras, o que acabou por determinar o upgrade espetacular que marca a segunda metanóia do filósofo e os dez volumes finais da Enciclopédia, tal como expliquei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas. O livro Pitágoras e o Tema do Número, um dos mais importantes do autor, dá testemunho da mutação. O que chamou a atenção de Mário foi que, na tradição pitagórico-platônica, os números não eram encarados como meras quantidades, no sentido em que são usados nas medições, mas sim como formas, isto é, articulações lógicas de relações possíveis. O que Pitágoras queria dizer com sua famosa afirmação de que “tudo são números” não é que todas as qualidades diferenciadoras podiam se reduzir a quantidades, mas que as quantidades mesmas eram por assim dizer qualitativas: cada uma delas expressava um certo tipo de articulação de tensões cujo conjunto formava um objeto. Mas, se de fato é assim, conclui Mário, a seqüência dos números inteiros não é apenas uma contagem, mas uma série ordenada de categorias lógicas. Contar é, mesmo inconscientemente, galgar os degraus de uma compreensão progressiva da estrutura do real. Vejamos, só para exemplificar, o que acontece no trânsito do número um ao número cinco. Todo e qualquer objeto é necessariamente uma unidade. Ens et unum convertuntur, “o ser e a unidade são a mesma coisa”, dirá Duns Escoto. Ao mesmo tempo, porém, esse objeto conterá em si alguma dualidade essencial. Mesmo a unidade simples, ou Deus, não escapa ao dualismo gnoseológico do conhecido e do desconhecido, já que aquilo que Ele conhece de si mesmo é desconhecido por nós. Ao mesmo tempo, os dois aspectos da dualidade têm de estar ligados entre si, o que exige a presença de um terceiro elemento, a relação. Mas a relação, ao articular os dois aspectos anteriores, estabelece entre eles uma proporção, ou quaternidade. A quaternidade, considerada como forma diferenciada do ente cuja unidade abstrata captamos no princípio, é por sua vez uma quinta forma. E assim por diante.

A mera contagem exprime, sinteticamente, o conjunto das determinações internas e externas que compõem qualquer objeto material ou espiritual, atual ou possível, real ou irreal. Os números são portanto “leis” que expressam a estrutura da realidade. O próprio Mário confessa não saber se essa sua versão muito pessoal do pitagorismo coincide materialmente com a filosofia do Pitágoras histórico. Seja uma descoberta ou uma redescoberta, a filosofia de Mário descerra diante dos nossos olhos, de maneira diferenciada e meticulosamente acabada, um edifício doutrinal inteiro que, em Pitágoras – e mesmo em Platão – estava apenas embutido de maneira compacta e obscura. Ao mesmo tempo, em A Sabedoria dos Princípios e demais volumes finais da Enciclopédia, ele dá ao seu próprio projeto filosófico um alcance incomparavelmente maior do que se poderia prever até mesmo pela magistral Filosofia Concreta. A esta altura, aquilo que começara como conjunto de regras metodológicas se transmuta num sistema completo de metafísica, a mathesis megiste ou “ensinamento supremo”, ultrapassando de muito a ambição originária da Enciclopédia e elevando a obra de Mário Ferreira ao estatuto de uma das mais altas realizações do gênio filosófico de todos os tempos.

Não tenho a menor dúvida de que, quando passar a atual fase de degradação intelectual e moral do país e for possível pensar numa reconstrução, essa obra, mais que qualquer outra, deve tornar-se o alicerce de uma nova cultura brasileira. A obra, em si, não precisa disso: ela sobreviverá muito bem quando a mera recordação da existência de algo chamado “Brasil” tiver desaparecido. O que está em jogo não é o futuro de Mário Ferreira dos Santos: é o futuro de um país que a ele não deu nada, nem mesmo um reconhecimento da boca para fora, mas ao qual ele pode dar uma nova vida no espírito.

 

Olavo de Carvalho lecionou Filosofia Política na Pontifícia Universidade Católica do Paraná de 2001 a 2005 e é autor de vários livros bem conhecidos, entre os quais O Jardim das Aflições: de Epicuro à Ressurreição de César – Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil (1995), Aristóteles em Nova Perspectiva (1996) e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (1996). Colunista de vários jornais brasileiros que o expulsaram de suas páginas quando passou a denunciar as atividades criminosas do Foro de São Paulo, ele hoje vive em Richmond, Virginia, EUA, como correspondente do Diário do Comércio, de São Paulo. Olavo de Carvalho foi também o primeiro estudioso brasileiro a retirar do ostracismo as obras de Mário Ferreira dos Santos, pronunciando a respeito inúmeros cursos e conferências e preparando, com introdução e notas, a edição do manuscrito A Sabedoria das Leis Eternas (São Paulo: É-Realizações, 2001). Website: www.olavodecarvalho.org.

NOTAS:

[1] São Paulo: É-Realizações, 2001.

Publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 3, disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/mario-ferreira-dos-santos-e-o-nosso-futuro/>