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Livro “Não com um Estrondo, mas com um Gemido”, de Theodore Dalrymple

Filosofia | 31/03/2017 | | IFE BRASIL

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Não com um Estrondo_frenteNão com um Estrondo_verso

As duas melhores vertentes de Theodore Dalrymple reunidas em um único livro: a crítica da classe intelectual e a análise da cultura de massas

Em Não com um Estrondo, mas com um Gemido, Theodore Dalrymple dá a medida do declínio cultural e da triste decadência da Grã-Bretanha – com sua burocracia, mentalidade de bem-estar opressiva, juventude sem rumo e a perseguição em nome da democracia e da liberdade. O autor mostra como o terrorismo e o número crescente de minorias muçulmanas mudaram a vida pública na Inglaterra. Registra, também, suas observações incisivas de artistas e ideólogos e, como médico psiquiatra, discorre sobre o tratamento de criminosos e dos mentalmente perturbados, área de seu interesse.

O livro é dividido em duas partes: “Artistas e Ideólogos” e “Política e Cultura”. A primeira traz ensaios sobre Samuel Johnson, Arthur Koestler, Henrik Ibsen, J. G. Ballard. A segunda centra-se em patologias sociais britânicas e suas fontes políticas e culturais. O autor discorre também sobre a sensação de declínio do mundo ocidental, especialmente na Grã-Bretanha, sobre multiculturalismo islâmico e terror.

Ele considera o crescimento das patologias sociais e o declínio dos padrões cultural, moral e estético britânicos mais abrangentes e alarmantes que processos semelhantes nos Estados Unidos e acredita que as políticas do Estado de bem-estar deram grande contribuição para o surgimento desses fenômenos.

 

Sobre o autor

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos de Anthony Daniels, nascido em Londres em 1949. Além de ensaísta, é médico psiquiatra, trabalhou em quatro continentes e atuou até 2005 no Hospital da Cidade e na Winson Green Prison, ambos em Birmingham, Inglaterra. Escreve para o City Journal, publicado pelo Manhattan Institute, e para veículos como The British Medical Journal, The Times, The Observer, The Daily Telegraph, The Spectator, The Salisbury Review, National Review e Axess. Tem diversos livros publicados, entre eles A Vida na Sarjeta; Nossa Cultura… ou o que Restou Dela; Podres de Mimados; Em Defesa do Preconceito; O Prazer de Pensar; Qualquer Coisa Serve; e A Nova Síndrome de Vichy, todos editados pela É Realizações Editora.

Título: Não com um Estrondo, mas com um Gemido – A política e a cultura do declínio
Autor: Theodore Dalrymple
Tradução: Hugo Langone
Editora: É Realizações Editora
Preço: R$ 49,90
Nº de páginas: 256
Lançamento: outubro de 2016

Fonte: É Realizações.

Para comprar acesse: http://www.erealizacoes.com.br/produto/nao-com-um-estrondo,-mas-com-um-gemido—a-politica-e-a-cultura-do-declinio

Famílias, escolas e igrejas: fundamentos de uma ecologia social saudável (parte 2, final) – por Erika Bachiochi

Filosofia | 24/03/2017 | | IFE BRASIL

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Lake_mapourika_NZ (Richard Palmer) - parte 2 - ed

 

No artigo anterior explorei os conceitos de ecologia humana e social como análogos próprios à ecologia natural. Neste artigo, ofereço três sugestões práticas para restaurar nossa ecologia social.

Assim como as ameaças aos nossos habitats naturais, as ameaças ao nosso ambiente moral são multifacetadas. Como lidamos com complexidade ainda maior nos seres humanos, que possuem tanto livre-arbítrio quanto concupiscência, frequentemente nos deparamos com um quadro complexo sem soluções óbvias, ao menos ao nível das leis e das políticas públicas. Então, ofereço as seguintes soluções no espírito da abordagem ecológica característica de Mary Ann Glendon de que primeiro devemos não causar dano, e então, por nossas ações,  buscar, como diz Glendon, “criar condições e mudar probabilidades” em favor do desenvolvimento completo da pessoa humana.

Para criar estas condições em nossas circunstâncias atuais, devemos priorizar nosso apoio a três segmentos importantes da sociedade: primeiro, famílias com crianças, que são em si mesmas uma educação na virtude, tanto para as crianças quanto para seus pais; segundo, escolas que intencionalmente cultivam as virtudes morais e intelectuais; e terceiro, igrejas locais como centros de revitalização ecológica.

 

Famílias: criando crianças, infundindo virtudes

 

Em um longo artigo de 1998 sobre o tema da “ecologia moral”, o cientista político Allen Hertzke perspicazmente escreveu:

A família está no centro da conexão moral ecológica, moldando e sendo moldada…sendo tanto uma causa quanto um efeito de rupturas ecológicas. O grau em que as crianças resistem às toxinas morais do ambiente externo depende extensivamente da imunização que suas famílias conseguiram proporcionar. Por outro lado, a habilidade das famílias para fazê-lo pode ser minada por forças ecológicas mais amplas. As interações são dinâmicas e interativas – em uma palavra, ecológicas”.

O trabalho de formação das crianças no lar – trabalho este que é essencial tanto à criança que recebe a formação quanto a seus pais que, levando a sério seus deveres parentais, são transformados por eles – é profundamente desvalorizado em nossa cultural atual. Com o movimento em massa de integração das mulheres à força de trabalho na última metade de século, com o assombroso nível de desemprego e subemprego entre os homens da classe trabalhadora, a com a crescente dependência de duas fontes de renda para famílias de classe média e de trabalhadores, com o elevado número de mães solteiras cuidando sozinhas de crianças, e com as valiosas e muitas vezes distintivas contribuições das mulheres para além da esfera privada, não podemos mais simplesmente apontar para os tradicionais modelos do homem-provedor e da mulher-dona-de-casa como a solução óbvia para nossa atual crise ecológica, por mais que quiséssemos. Não podemos mais presumir a sustentação familiar e comunitária que as mulheres forneceram por séculos como algo natural– de graça. Se o trabalho da família, aquele trabalho essencial de cuidar do dependente e do vulnerável, de formar as mentes e os corações tanto de filhos como de pais, já foi encarado como o mais essencial de todos os trabalhos, não o é mais.

Hoje precisamos adotar medidas fortes e afirmativas para manifestar muito mais respeito cultural pelo trabalho essencial da família: para inspirar e incentivar pais a se devotar para suas famílias; para combater as pressões financeiras e profissionais que em especial as mães sentem, uma vez que muitas das que trabalham fora priorizam o cuidado com a família; e para pensar de forma criativa sobre como a tecnologia e a engenhosidade empresarial podem ajudar a criar uma economia que está do lado de famílias com crianças, especialmente aquelas que passam por dificuldades.

Pessoas religiosas entendem melhor que ninguém que tanto as crianças quanto o trabalho voltado à família são bens públicos indispensáveis. Então, são as pessoas religiosas e as de boa vontade no mundo dos negócios e na política que devem pensar criativamente sobre como suportar, endossar, afirmar e celebrar publicamente o trabalho de cuidado e formação que ocorre em casa. Ao buscarmos meios para compensar os sacrifícios financeiros reais que pais fazem para criar bem seus filhos, reconhecemos que os serviços que os genitores prestam não servem apenas a seus filhos ou a eles mesmos, mas a toda a sociedade. Pensadores políticos como Ramesh Ponnuru e Yuval Levin têm defendido agendas reformistas que promovem suporte à famílias com crianças como algo essencial; esperamos que eles sejam mais bem acolhidos na nova administração Trump.

Enquanto esperamos uma nova abertura para soluções em políticas públicas, negócios e outras instituições privadas precisam ser pioneiros na busca por caminhos para encorajar e dar suporte à família. Como nos lembra Glendon: “O mercado, como nossa experiência democrática, depende de um certo tipo de cidadão, com certas habilidades e virtudes…depende da cultura, que por sua vez depende da criação e da educação, que por sua vez depende das famílias”. Suporte familiar inclui garantir que pais que trabalham – e, em especial, mães, que continuam assumindo uma parcela desproporcional do cuidado do lar – não sejam penalizados profissionalmente por dedicarem uma parte de suas energias ao cuidado das crianças, que é culturalmente essencial, e também dos genitores idosos. Como João Paulo II escreve na Laborem Exercens, “A verdadeira emancipação das mulheres exige que o trabalho seja estruturado de forma que as mulheres não tenham que pagar por sua emancipação…à custa da família, nas quais as mulheres, como mães, possuem um papel insubstituível”.

Descobrir meios inovadores de acomodar as necessidades da família não ajudaria apenas crianças e casamentos, mas também beneficiaria o espaço de trabalho e a cultura como um todo. Poderia servir para renovar o mundo do trabalho de forma que as pessoas seriam encaradas como prioridade, tanto como sujeitos de seus trabalhos, quanto no âmbito mais amplo da tomada de decisões de uma empresa, garantindo que a busca por eficiência e lucro não se sobreponha à questão mais humana de servir a pessoa em primeiro lugar. De forma mais prática, maior flexibilidade e respeito às demandas familiares poderia traduzir-se em taxas mais baixas de fadiga, reforço moral, e, alguns estudos mostraram, maior lucro no longo prazo.

 

O Renascimento da Educação Clássica

 

Mas politicas de encorajamento familiar por parte do governo e do setor empresarial certamente não representam tudo o que é preciso para restaurar nossa ecologia social. Pais e mães precisam de outras instituições de apoio – escolas vibrantes, igrejas e outras células da sociedade civil – para ajudá-los na formação de seus filhos nas virtudes que precisam para usar bem sua liberdade. Então, meu segundo desafio é que nós apoiemos o renascimento da educação clássica que ocorre agora por todo o país. Ao mergulhar as crianças no que a Civilização Ocidental tem de melhor a oferecer e ao intencionalmente instigar nelas as virtudes morais e intelectuais que precisam para se desenvolver, as escolas clássicas, uma a uma, recriam o ecossistema de suporte moral que os pais precisam para si e para seus filhos.

Essas escolas, como a que ajudei a fundar em 2013 em Natick, Massachusetts, têm consciência de que autogoverno requer autocontrole. Em uma era cada vez mais ligada à ideia de que o homem pode gozar de controle tecnológico sobre a natureza, ou até mesmo sobre seu próprio corpo, estas escolas, ao invés disso, ensinam as crianças que elas devem ser mestres de suas paixões, e que precisam da graça de Deus para alcançar esta maestria. Essas comunidades lutam juntas pelo bem comum e encorajam cada um a pensar mais em seus deveres sociais e menos em seus direitos. Elas reavivam os hábitos da mente e do coração necessários para a boa cidadania, tanto em nosso país e, espera-se, na eternidade. Escolas clássicas têm ávidos estudantes e pais,  fornecem um currículo incomparável, e as melhores delas ensinam educação de caráter que instruem as crianças tanto na linguagem quanto na prática da virtude. Elas, inclusive, frequentemente situam-se em prédios abandonados por escolas paroquias falidas. Mas elas precisam de mais financiamento – e precisam alcançar comunidades mais pobres.

Se o trabalho de teóricos sociais como Charles Murray e Robert Putnam e a ascendência de líderes políticos como Donald Trump e Bernie Sanders nos ensinou algo sobre o que incomoda nossa país hoje, é que a perturbação causada pela deterioração da ecologia social é tão profunda em algumas comunidades que ela ameaça a própria essência de nossa república. As causas desta deterioração ecológica são complexas, no entanto  claramente incluem eclosões tanto econômicas (por exemplo, a globalização) como culturais (como a revolução sexual). Agora é indiscutível que as classes pobres e trabalhadoras foram as mais atingidas por ambas.

 

Revitalizando igrejas locais

 

Igrejas locais e outros locais de culto foram por muito tempo os organismos sociais aos quais as pessoas se voltavam em tempos de necessidade e que outrora serviam como instituições intermediárias, integrando indivíduos de origens diversas. Já é tempo de se redescobrir em nossas igrejas a capacidade única que elas possuem de criar, conforme a frase de Glendon, comunidades “de suporte e memória mútuos”, das quais nossa república depende para sua liberdade e vitalidade, e das quais nós todos provavelmente dependemos para nossa salvação eterna.

É claro que igrejas devem sempre e primariamente ser veículos de formação espiritual e moral, e de graça sacramental; e, como tais, as igrejas têm a capacidade de restaurar comunidades através da revitalização de indivíduos. Brad Wilcox e Nichilas Wolfinger demonstraram, por exemplo, como homens afro-americanos e latinos que frequentam igrejas tem probabilidade muito maior de prosperar pessoal e profissionalmente do que seus pares não religiosos. Mas mesmo além disso, Jonathan Reyes da USCCB acredita que as igrejas poderiam atuar como centros de revitalização ecológica mediante um encontro mais efetivo daqueles em necessidade com os que querem ajudar, das próprias paróquias mais simples e suas irmãs mais ricas, mas também por meio de um engajamento intencional e mais efetivo com recursos privados, empresariais e públicos,  na comunidade toda.

Nossa ecologia social está doente. Os que entre nós vivem em comunidades mais ricas têm uma grave responsabilidade em relação aos que definham em comunidades mais pobres, não apenas de doar nosso dinheiro, mas também nossas vidas – para descobrir “mutualidade nas margens” como formulado por David Lapp. E para ser bem clara: isto não é apenas para assistir e acompanhar os pobres e marginalizados. É também para o bem da alma dos ricos, que talvez sejam tentadas a se resignar à decadência de nossa era. Se quisermos apoiar as condições sociais para a prosperidade humana – a nossa própria e daqueles a nossa volta – será preciso que cada um de nós enfrente este combate interior, dia após dia, ensinando nossas crianças como viver vidas generosas, e abdicando de nosso conforto pessoal para ajudar os outros.

Erika Bachiochi – Visiting Fellow no Ethics & Public Policy Center do Witherspoon Institute (Princenton).

Artigo originalmente publicado no site Public Discourse: Ethics, Law and the Common Good (www.thepublicdiscourse.com). Tradução e publicação autorizadas.

Assegurando as condições para uma autêntica ecologia humana – por Erika Bachiochi

Filosofia | 21/03/2017 | | IFE BRASIL

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Imagem: "Morning mist on Lake Mapourika, New Zealand", por Richard Palmer.

Imagem: “Morning mist on Lake Mapourika, New Zealand”, por Richard Palmer.

 

A ecologia humana, conceito desenvolvido por sociólogos no começo do século passado e apropriado pelo Papa João Paulo II em sua aclamada Centesimus Annus, fornece uma lente iluminadora através da qual se pode entender a multifacetada crise cultural na qual nos encontramos atualmente.

Utilizando o termo como uma analogia, no âmbito da cultura, a crescentes preocupações com a ecologia natural, João Paulo II escreveu em 1991:

Embora as pessoas tenham razão em estar preocupadas …. com a preservação de habitats naturais … esforço insuficiente é feito para assegurar as condições morais para uma autêntica “ecologia humana”. Não apenas Deus deu a Terra ao homem, que deve usá-la com respeito ao propósito original pelo qual foi dada a ele, mas o homem também é um presente de Deus ao próprio homem. A pessoa deve, portanto, respeitar as estruturas naturais e morais com as quais foi agraciada”.

Mais recentemente, na Laudato Si’, o Papa Francisco reiterou a preocupação ecológica amplamente abordada por João Paulo II, que havia sido transmitida, poderíamos dizer, através do Papa Bento. Francisco escreve:

“A ecologia humana também implica outra profunda realidade: a relação entre a vida humana e a lei moral, que é inscrita em nossa natureza e é necessária para a criação de um ambiente mais digno. O Papa Bento falou de uma ‛ecologia do homem’ baseada no fato de que ‛o homem também tem uma natureza que ele precisa respeitar e que não pode manipular à vontade’ ”.

Para estes papas recentes, “a ecologia do homem” parece se aproximar do que teria sido classicamente descrito como lei natural: a ideia de que a pessoa humana possui uma natureza que precisa ser compreendida e fomentada para seu completo florescimento (eudaimonia, para os gregos; beatitude, para os cristãos). Mas as conotações modernas tanto de natureza quanto de lei são, sem uma grande desconstrução, fixas ou estáticas demais para representar o dinamismo da pessoa humana de forma autêntica. Em consequência, o conceito de lei natural atualmente é muito mal compreendido. Para a maioria, é quase incompreensível.

A ecologia humana, em contraste, permite que se reflita com menos obstáculos intelectuais sobre o propósito e o dinamismo da pessoa humana e de sua experiência de vida. Isto é, a ecologia humana evoca mais prontamente a realidade de que a pessoa humana é criada e, ainda assim, por meio de suas escolhas, cria a si mesma; de que é profundamente influenciada por e, por sua vez, influencia os outros; de que é condicionada pelo ambiente no qual se encontra, mas é capaz de transcendê-lo. A analogia com a ecologia natural é útil no clima filosófico atual porque implica interdependência de influências e atores, complexidade de causas e efeitos, ao mesmo tempo em que exige validação empírica e científica. Assim como podemos medir toxinas em nossos rios, podemos usar as ciências sociais para corroborar empiricamente os destrutivos “efeitos downstream” da pílula, da pornografia e da ausência paterna em mulheres, homens e crianças reais. Ao contrário da visão libertária prevalecente, a analogia ecológica também revela que os supostamente “inofensivos” atos de indivíduos isolados, quando adotados por grande parte da população, podem ter efeitos profundamente lesivos.

Protegendo nosso ecossistema natural e social

Tanto nosso ecossistema natural quanto o social são frágeis: eles precisam de proteção e de cultivo para prosperar. Como disse o Papa Francisco em novembro de 2014:

A crise na família produziu uma crise ecológica, pois ambientes sociais, como os ambientes naturais, precisam de proteção. E, apesar de a raça humana ter começado a entender a necessidade de combater as condições que ameaçam nossos ambientais naturais, nós fomos mais lentos para reconhecer que nossos frágeis ambientes sociais também estão sob ameaça”.

Assim como na impressionante afirmação da Laudato Si’ de que os hábitos de consumo decadentes do primeiro mundo estão lesando de forma desproporcional os pobres do mundo, dados sociológicos confirmam claramente que são os mais vulneráveis, os mais frágeis seres humanos que são mais ameaçados por – e menos preparados para se proteger de – um ambiente moral em processo de deterioração. Pode-se ver isto de forma mais clara com o agudo declínio do casamento entre os pobres, lesionando de forma desproporcional exatamente aquelas comunidades que mais necessitam da miríade de benefícios pessoais, sociais e econômicos que casamentos estáveis propiciam.

A ecologia humana, então, implicitamente pressupõe a existência da lei natural, mas pode ter uma melhor habilidade de captar as influências sociais dinâmicas que sustentam ou enfraquecem o respeito por esta lei – e é suscetível a medição empírica de uma forma que a lei natural em absoluto não é, o que a torna útil. Da Centesimus Annus:

O homem recebe de Deus sua dignidade essencial e com ela a capacidade de transcender toda a ordem social de modo a buscar a verdade e a bondade. Mas ele é também condicionado à estrutura social em que vive, pela educação que recebeu e por seu ambiente. Estes elementos podem tanto ajudar quanto impedir que ele viva de acordo com a verdade”.

Neste documento fundamental da Doutrina Social da Igreja Católica, então, João Paulo II estava exortando a criação de um ambiente social mais digno, de uma ecologia social merecedora da dignidade da pessoa humana.

Ecologia Social:

Quando João Paulo II usou o termo “ecologia humana” na Centesimus Annus, ele estava entrando em uma robusta conversação que já estava ocorrendo entre pensadores sociais. Desde o começo do último século, cientistas sociais estavam fazendo uso do termo para descrever a ideia da sociedade como um complexo organismo e para estudar os diversos modos pelos quais as circunstâncias influenciam a pessoa humana. O psicólogo russo-americano Urie Bronfenbrenner notavelmente escreveu em 1977 sobre uma “ecologia do desenvolvimento humano” na qual se busca entender o sujeito humano a partir de seu aninhado, variado e constantemente mutável arranjo de estruturas ambientais. Uma abordagem ecológica é, por natureza, interdisciplinar, buscando integrar perspectivas diversas para alcançar uma visão mais ampla.

Já nos anos 90, teóricos sociais de todo o espectro político estavam pensando ecologicamente sobre as interações dinâmicas entre as influências familiares, políticas, econômicas e sociais; e sobre como estes “sistemas mutuamente condicionantes” afetavam crianças, famílias e comunidades nos Estados Unidos. A analogia ecológica ajudou um grupo diverso de pensadores a diagnosticar (mesmo não concordando quanto às causas) a crescente deterioração das antes estáveis famílias e comunidades, o impacto deletério que isso estava tendo nas crianças e nos pobres da nação, e as consequências dessa desintegração cultural – ou ecológica – das instituições americanas. Em particular, comunitaristas como Mary Ann Glendon, Michael Sandel e Amitai Etzioni demonstraram preocupação com o fato de que as célebres e livres instituições políticas e econômicas americanas sofriam grande risco de minar suas próprias fundações em razão de uma erosão da “ecologia moral” – ou, conforme o termo de Robert Putnam, “capital social” – de que estas instituições livres precisavam para prosperar.

Naquele tempo, poucos negariam que os sistemas americanos de livre-mercado capitalista e a democracia constitucional se mostraram os melhores do mundo para garantir a liberdade individual, criando riqueza e oportunidades, e fornecendo o espaço necessário para a completa prosperidade humana. É por isso que João Paulo II, pela primeira vez na história da Igreja Católica, expressamente endossou estes sistemas na Centesimus Annus – ao menos quando são devidamente restringidos por uma robusta cultura moral. Nossa economia e nossas instituições políticas livres, afinal, não dizem nada sobre como devemos usar nossa liberdade e riqueza, ou como devemos transmitir os hábitos da mente e do coração que são necessários para a nossa autonomia e para uma economia justa e humana.

Assim, como a Centesimus Annus proclamou de forma firme, a busca capitalista por ganho material, sem ser compensada com valores que ensinam indivíduos a usar sua liberdade e sua riqueza para o bem comum, vai influenciar e, em última instância, deteriorar a cultura, dando origem ao hedonismo, ao individualismo e ao consumismo. De forma similar, sem um forte edifício cultural promovendo a verdade, o bem e a beleza, a tendência da nossa democracia liberal de dar voz igual a todas as ideias corroerá a cultura, levando à relativização de todos os estilos de vida, à tirania da opinião popular, a uma igualdade que demanda a eliminação de todas as diferenças (incluindo as biológicas), e a ao solapamento da religião, a força mais vital na cultura.

Quão próximo da realidade tudo isso soa para nós hoje.

Liberdade, virtude e dependência humana:

Instituições livres fornecem uma importante pré-condição para um ambiente moral ou uma ecologia social robustos: a liberdade. Mas a liberdade – seja a política, econômica, pessoal ou até mesmo religiosa – nunca pode ser seu próprio fim. Sem desconsiderar a importância da liberdade para a ecologia humana, é preciso dizer que a liberdade é meramente instrumental. A liberdade está a serviço da ecologia humana e da prosperidade humana. Mas este instrumento, este servo – a liberdade – também tem suas próprias pré-condições, as quais não pode prover para si. O fim verdadeiro e a pré-condição necessária para a liberdade são os mesmos: a virtude.

Como tem defendido Mary Ann Glendon, professora de Direito de Harvard, ao longo de seu trabalho influente e extremamente preciso, os fundadores dos Estados Unidos elaboraram um extraordinário sistema de instituições livres, mas não asseguraram as condições para essa liberdade. Isto é, apesar de terem se protegido contra interesses pessoais desenfreados através de um sistema de freios e contrapesos, e de compreenderem que um governo autônomo exige homens particularmente virtuosos para sustentá-lo, Glendon sugere que eles pareciam presumir que os americanos continuariam a ser formados nos tipos de ambientes sociais que iriam produzir estas virtudes – ambientes como as profundamente religiosas, firmemente coesas, autogovernáveis colônias que estavam no pano de fundo, e forneceram parte do ímpeto, da Convenção Constitucional. Glendon escreve:

Se a história nos ensina algo, é que uma democracia liberal não é apenas um presente; que parecem haver condições que são mais ou menos favoráveis para sua manutenção e que estas condições envolvem consideravelmente caráter … Caráter, por sua vez, também tem condições – residindo em grau relevante em criação e educação. Assim, é difícil deixar de reconhecer a importância política da família”.

Sem uma cidadania virtuosa, memoravelmente nos recorda John Adams, a democracia sempre comete suicídio. Liberdade sem virtude parece inclinada à sua própria autodestruição, como estamos testemunhando em nosso país atualmente. Mas, é claro, a virtude não pode ser tomada como certa. Precisa ser ensinada, inculcada, praticada e estimada em todas as gerações, em todas as famílias e em todos os corações humanos. Esta é uma missão complicada– e uma luta real para qualquer um que a leve a sério – mas é este confronto interior que foi passado de geração em geração até recentemente.

De fato, ao longo das últimas décadas, nós testemunhamos a Suprema Corte, particularmente, utilizar argumentos fundados na autonomia pessoal (ou na liberdade mal compreendida como seu próprio fim) para enfraquecer exatamente aquelas instituições – maternidade, paternidade, casamento e outras estruturas mediadoras – mais aptas a sustentar a ecologia social, para formar as pessoas ao correto uso de sua liberdade. A longa tradição americana de autodeterminação se transformou ao longo dos anos em uma espécie de invenção pessoal constitucionalizada sem impedimentos, na liberdade de me definir como eu quiser, livre de qualquer alegação contrária ou restrição sobre mim.

E aqui reside o problema, talvez evidenciado de forma mais clara pelas lentes da ecologia. O indivíduo autodefinidor, autossuficiente e radicalmente autônomo localizado no centro deste paradigma moderno simplesmente não existe. Desde o momento em que cada um surge, somos encarnados, frágeis e integrados em relações, aninhados em nosso ambiente social. Nós somos animais sociais, ou políticos como afirma Aristóteles. E como tais, nossa liberdade é limitada pela nossa dependência em relação a outros e, conforme nos tornamos maduros, pela dependência de outros a nós. A vulnerabilidade e a dependência humanas são os mais básicos e duradouros fatos da existência humana, da identidade humana, antes mesmo do pecado. Nós seres humanos prosperamos ou falhamos dentro do contexto dessa interdependência, nunca de forma isolada. Como nos lembra o filósofo Alasdair MacIntrye, a independência responsável adulta pela qual nós justamente lutamos requer cuidado prévio e sacrifício de outros, de mães e pais, de famílias, de comunidades; nós não obtemos as virtudes necessárias para a independência, para o bom uso de nossa liberdade, para prosperar por conta própria. Nós dependemos que outros nos ensinem essas virtudes – e que as moldem para nós.

E, assim, se buscamos assegurar (ou, atualmente, deveríamos dizer recriar) as condições morais para uma autêntica ecologia humana, uma cultura merecedora da dignidade do ser humano, uma que encoraje em vez de desencorajar os deveres que temos perante Deus e uns aos outros, devemos levar muito mais a sério – muito mais a sério – o cuidado, a criação e a cultivação dos jovens na virtude, e também dos organismos sociais que apoiam essa cultivação. Devemos focar, como João Paulo II nos diz na Centesimus Annus, naquela “primeira e fundamental estrutura para a ‘ecologia humana’, a família” e em tudo aquilo que apoia sua crítica função.

No próximo artigo, eu oferecerei três sugestões de pontos de partida.

 

Erika Bachiochi – Visiting Fellow no Ethics & Public Policy Center do Witherspoon Institute (Princenton).

Artigo originalmente publicado no site Public Discourse: Ethics, Law and the Common Good (www.thepublicdiscourse.com). Tradução e publicação autorizadas. Março de 2017.

Um punhado de pó – por Luiz Felipe Pondé

Filosofia | 17/03/2017 | | IFE BRASIL

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Imagem: ilustração que acompanha o artigo na versão impressa, por Paulo von Poser.

Imagem: ilustração que acompanha o artigo na versão impressa, por Paulo von Poser.

 

Pois quem pode saber o que é bom para o homem na vida, durante
os dias de sua vã existência, que ele atravessa como uma sombra?

Eclesiastes 6,12

Abertura

O Eclesiastes deixa claro que o Deus de Israel não gosta de covardes.

Ao dizer isso, não pretendo erigir-me em especialista em Bíblia, no sentido de alguém que busque a todo o custo a literalidade histórica dos textos ou queira fazer a arqueologia de cada palavra; também não o sou no sentido de alguém que aplique cada versículo às incongruências da vida a título de operação salvífica; nem pretendo falar aqui a partir de alguma “burocracia da objetividade”.

Quem sou, então? Penso encontrar-me na mesma posição do comum dos mortais que procuram um sentido pessoal na leitura das Escrituras, e que eventualmente chegam à conclusão de não passarem daquilo que em inglês se chama suffering jokers – talvez um daqueles fools, os bobos da corte ou “loucos” que, mascarados sob o absurdo do que falam, às vezes têm mais a dizer sobre o real do que alguns pretensos sábios.

Quando me pergunto quem escreveu o Eclesiastes – para além de a resposta concreta já ter variado desde Salomão ou alguém de sua elite até qualquer membro de qualquer elite na Palestina ou fora dela por volta do século III a.C. -, assumo que foi Deus. Não o faço por razões confessionais (uma das vantagens da conversão a Atenas é a liberdade de espírito perante qualquer ortodoxia), mas antes de tudo pelo “efeito filosófico” da idéia de Deus, que me permite ver no texto uma mensagem dAquele que tudo sabe e tudo pode. Nessa mensagem descubro então uma análise precisa da condição humana que, além do mais, é capaz de despertar uma emoção profunda, uma emoção que o Antigo Testamento sempre descreve como oriunda das entranhas do homem.

Se, filosoficamente, somos incapazes de estabelecer a verdade cognitiva e epistêmica última acerca de nosso destino, a verdade visivelmente empírica encontra-se resumida no Eclesiastes. Por isso, posso assumir que sua filosofia é pura empiria, pura experiência prática humana. Assim, a minha questão é: O que quer Deus dizer-me com este texto? Como Lutero, entendo que ele nos fala da contingência e da graça, da dinâmica da graça, e é sobre esta que desejo tratar aqui.

Filosoficamente, o conceito de graça implica, além da noção de dádiva, o princípio da insuficiência ontológica da criação e seu “resumo”, o Nada. Ou somos graça ou somos vazio. Neste sentido, penso que no empirismo do Eclesiastes – na medida em que ele descreve de modo nada idealizado a condição humana – associam-se uma cosmologia ou uma ontologia da gratuidade com uma filosofia das virtudes.

É como se a contingência pedisse coragem ao homem, essa coragem que é uma das virtudes centrais e, filosoficamente, se identifica com o amor. E é por isso que, ao abordar o Eclesiastes, o leitor deve preparar-se para ter medo.

 

Estado da questão

A fortuna crítica descreveu o Eclesiastes de várias formas: helenista, cético, pessimista, agnóstico, contraditório, depressivo. Seus defensores caracterizam-no como um otimista relativo, sadio (e concordo com esse caráter saudável), crítico da elite do seu mundo, e o mais contemporâneo nosso dentre todos os textos bíblicos, pois sua busca pelo significado da vida o torna próximo do existencialismo de Kierkegaard e da psiquiatria de Jaspers, tanto no que se refere à angústia como ao conceito de naufrágio da existência como primeiro passo para a cura psicológica ou espiritual.

Algumas controvérsias apontam para um possível caráter bilíngüe do autor: hebraico e aramaico, hebraico e grego, ou aramaico e grego. Não entrarei aqui nesta questão.

Outra frente é a polêmica sobre se podemos ou não dizer que existe uma estrutura geral que sirva como ponto de apoio para a leitura sistêmica do texto. Seria o Eclesiastes uma colcha de retalhos, feita sem um objetivo estrutural, ou seria apenas mais complexo do que outros textos antigos?

Quanto aos gêneros literários, o livro comporta desde reflexões, provérbios, aforismos, sentenças da tradição, instruções de sabedoria, lamentações, bênção, louvor, alegorias, até dados autobiográficos e biográficos. Todos concordam em que o autor seguramente devia dominar todos esses distintos estilos, bem como as complexidades dos idiomas de origem. Parece razoável, pois, pressupor que estamos diante de um texto unitário, mas requintado e sutil sob uma certa aparência de desorganização.

 

O lugar de onde falo

Apesar de fazer parte da estrutura acadêmica, confesso que sou um descrente dela. Com essa descrença não quero negar a existência de almas bem-intencionadas e capazes, mas apenas reafirmar um fato estrutural de ordem sócio-política: a instituição acadêmica esmaga o conhecimento, sofisticando aquilo que Nelson Rodrigues chamava de “idiotas da objetividade”.

Faz parte dessa sofisticação supor que, se conheço “a fundo” o modo como homens e mulheres compravam, produziam ou vendiam frangos ou plantas, a forma como se beijavam ou faziam sexo, ou o tipo de espancamentos que praticavam, etc., conhecerei melhor o teor do texto em questão. Discordo. Se agisse assim, acabaria escrevendo mais sobre as crenças ideológicas que me movem no infinito círculo hermenêutico (como diria Joseph Ratzinger) do que sobre a possível pureza da verdade político-social do texto bíblico.

Nada disso me interessa, porque não estou buscando pureza alguma: estou-me posicionando diante de um texto da tradição que fala da minha condição enquanto ser humano que pensa dentro do cosmos. Se estivesse a fazer uma “arqueologia”, poderia até assumir a importância, em algum nível, da identificação dos fragmentos contextuais da época; hoje, porém, penso que grande parte do totalitarismo dos idiotas da objetividade e da sua burocracia advém exatamente da contínua repetição desse “mito do contexto”.

Foi devido a esse mito que chegamos a perguntas como estas: “Por acaso seria fruto das ‘estruturas de poder’ o fato de a experiência cotidiana desaguar quase que necessariamente em um drama da ‘vaidade’ como categoria ontológica e psicológica profunda do ser humano? O gênero sexual determina as semelhanças de destino entre o sábio e o insensato? A matéria orgânica torna-se inorgânica por causa da estrutura econômica? Ou a consciência alocada na matéria orgânica desfaz-se por imposição política ou de gênero?”

A leitura que faço, pelo contrário, procura estar fundada na própria atitude do texto diante do mundo. O Eclesiastes ajuda-me a enfrentar a minha condição humana sem mentir sobre ela. Apesar de correr o risco de soar “anti-humanista”, prefiro enfrentar um Deus que me diz que sou vão, uma nuvem que passa, um vento vazio, a um deus implicado no “marketing do bem”, essa última esperança mentirosa da dignidade intrínseca do ser humano.

Por isso, dizer que o Eclesiastes reflete a cosmologia bíblica é afirmar que ele narra o vazio do ser contingente que em nós toma consciência de sua real condição, estabelecendo um diálogo silencioso entre o Homem e o Nada sob os olhos d’Aquele que é. É uma física do pó que se olha no espelho e vê a sua imagem-mancha a desaparecer lentamente. E é perguntar-se: Qual a virtude possível desse grão de pó?

Segundo a tradição judaica, o Eclesiastes, o Quohelet, deve ser lido quando estamos na colheita e quando logramos uma vitória de qualquer tipo. Neste sentido, diante da modernidade e da sua obsessão pelo sucesso infinito da técnica, lê-lo é identificar a mentira profunda que está associada à arquitetura íntima desse sucesso. Contra a “tecnologia da alegria”, lembremo-nos de que “a sabedoria mora na casa da melancolia” .

Afirma Kierkegaard que todo o conhecimento verdadeiro sobre si mesmo começa com um profundo entristecimento. Enfrentemos, pois, essa ontologia da vaidade.

 

Are you a Mensch?”

Para boa parte da modernidade, o Eclesiastes é apenas uma espécie de hino ao carpe diem. Mas isso apenas mascara a incapacidade de ver – ou o desejo de não ver – que nos interpela muito mais profundamente, a nós que, na expressão de Nelson Rodrigues, somos “pulhas”.

Para entender bem o Eclesiastes, vale a pena aproximar-nos de outras fontes, enraizadas na modernidade, mas que enfrentam o mesmo drama existencial do autor antigo. Encontraremos essas fontes de preferência na literatura; o escritor, ao ser alguém que precisa ter uma abertura amorosa para o concreto, não pode discutir idéias esboçando teoremas, mas deve fazê-lo narrando dramas.

O Eclesiastes, em certa medida, faz isso mesmo: narra o drama de alguém que, acreditando que a sua “sabedoria” tem algum valor, descobre que ela sempre lhe passará uma rasteira, pois é incapaz de mudar o seu destino:

 

Eu notei que um mesmo destino

espera [o sábio e o insensato].

Por isso, disse comigo mesmo,

que tudo isso é ainda vaidade.

Porque a memória do sábio

não é mais eterna que a do insensato,

e, passados alguns dias,

ambos serão esquecidos.

Mas então? Tanto morre o sábio

como morre o louco! (2,15-16)

 

No exame da literatura relacionada com esse texto, poderíamos mencionar Machado de Assis, que, como é sabido, considerava o Eclesiastes um de seus livros favoritos; ou o já citado Nelson Rodrigues; ou ainda um T.S. Eliot, que usou extensamente as Escrituras.

Mas, pelo contraponto, vejamos um livro lançado mais perto de nós, em um momento em que o próprio Eclesiastes foi usado como justificativa para uma nova era de “paz e amor” que terminou em amargo desespero. É nessa mesma década de 1960 que encontramos Herzog (1964), de Saul Bellow, o grande livro sobre a falência do homem moderno e, mais especialmente, do scholar acadêmico.

Poucas vezes se fez com mais finura a crítica e o elogio do intelectual que, incapaz de lidar com os traumas da vida, se esconde no pedantismo do conhecimento, percebendo ao mesmo tempo que é um castelo construído sobre a areia.

O título se refere ao personagem principal, Moses Elkanah Herzog, estudioso das relações ocultas entre Romantismo e Cristianismo. Já uma vez divorciado, ele é informado de que a segunda esposa, Madeleine, o trocou pelo melhor amigo, um perneta chamado Valentine Gerbasch. No fundo deste abismo da existência, prestes a sofrer um nervous breakdown e sentindo a loucura aproximar-se com calma cruel, Moses decide escrever cartas a todos os seus conhecidos, vivos e mortos.

“If I’m out of my mind, then it’s all right with me” (“Se eu estiver louco, por mim está tudo bem”) – estas são suas primeiras palavras no livro. O que não está muito longe da conclusão do Quohelet: “A minha sorte será a mesma que a do insensato. Então para que me serve toda a minha sabedoria?” (2,15).

Bellow remete diretamente a uma passagem algo misógina do Eclesiastes ao criar um drama iniciado pela traição de uma mulher: “E descobri que a mulher é mais amarga do que a morte […]. Eis a conclusão a que cheguei: Deus fez o homem reto; este, porém, procura complicações sem conta” (7,27-30).

Mas, para o seu personagem, a traição de Madeleine é muito mais: é a prova de que Deus o abandonou por completo. Percorre, em conseqüência, um ritual de humilhações que atinge não apenas a sua auto-estima, mas a sua estatura de homem. O advogado Sandor Simmelstein pergunta-lhe a certa altura: “Are you a Mensch?”, “Você é um ser humano?”

A palavra iídiche ou alemã Mensch, inserida no inglês, transfere a pergunta do plano de um mero machismo politicamente incorreto para o existencial, porque levanta a questão do sentido da vida humana e daquilo que faz do homem, um homem. Mensch, no alemão, indica apenas o ser humano em si, para além da distinção de “gêneros”; mas no iídiche é mais rico, porque significa o “homem decente”, “homem reto”, o homem de estatura moral, “humano” no pleno sentido da palavra. O homem que adquiriu “forma de homem”. Aponta, pois, para o “justo” do Antigo Testamento ou para o “sábio” do Eclesiastes.

Também o primeiro nome de Herzog, Moses, não é casual. Moisés foi o exemplo máximo de Mensch para o judaísmo: é o “dador da Lei”, protótipo do sábio. E é também o guia na saída da “terra do pecado”, o Egito, terra da alienação e da escravidão, bem como na travessia do Mar Vermelho. Para Israel, o mar, o “abismo”, significa com freqüência a morte: a saída do homem alienado, escravo do contingente, dessa sua condição passa por uma morte pelo menos parcial – a compreensão de que “tudo é vaidade”.

Herzog, acadêmico e scholar, traído e louco, também tem de reconhecer que todo o seu conhecimento não lhe serve para nada. Seu ponto de partida era o mesmo do Quohelet no início de sua procura pela sabedoria: “Em meu coração dediquei-me a conhecer, a raciocinar e a pesquisar a sabedoria e a reflexão” (7,26). Mas, a partir da sua “morte existencial”, o desmantelamento de suas convicções teóricas o leva a descobrir uma virtude insuspeitada.

Bellow sabia do que estava falando quando escreveu Herzog, e toda essa obra é um diálogo constante com as reflexões surgidas de uma leitura atenta do Eclesiastes. No prefácio ao clássico livro de seu amigo Allan Bloom, O declínio da cultura ocidental [1], escreve:

 

“Na maior das confusões, ainda existe uma porta aberta para a alma. Pode ser difícil de encontrar, pois na meia-idade ela está coberta de mato, e algumas das moitas mais densas que a cercam brotam daquilo que definimos como a nossa educação. No entanto, a porta sempre existe e cabe a nós mantê-la sempre aberta, para ter acesso à parte mais profunda de nós mesmos – àquela parte que está a par de uma consciência superior, graças à qual podemos fazer juízos definitivos e considerar tudo em conjunto. A independência dessa consciência que tem força para ser imune ao ruído da História e às distrações de nosso meio ambiente: eis o que representa a luta pela vida. O espírito tem de encontrar e de manter a sua base contra as forças hostis, às vezes personificadas em idéias que freqüentemente negam a sua própria existência e que repetidamente parecem, na verdade, tentar anulá-lo por completo”.

 

O que Bellow descreve aqui é a atitude que transforma o intelectual em um Mensch, um homem que, depois de ter enfrentado a sua contingência, descobre que precisa assumir riscos. Também para o Eclesiastes, o risco é a forma de “estar-em-um-mundo-contingente” (como diria Heidegger), de lidar com uma ontologia que, em última análise, não se sustenta em si mesma, é “vaidade”.

E o risco, esse poder cumprir-se ou não dos desejos e investimentos de futuro humanos exige do homem a virtude. A coragem de aceitar a sua condição limitada, e o anseio do “pulha” por assumir a forma de Mensch. O encontro da porta aberta para o espírito e para o risco de ser homem.

 

As dez virtudes

Leiamos agora o Eclesiastes segundo essa ótica, procurando ver as grandes linhas que o sábio nos traça.

 

1. A lei do cosmos

O livro abre com uma passagem conhecida e muito citada, mas raramente entendida: “Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade”. A reduplicação semítica, cujo peso semântico podemos sentir também no português – “vaidade das vaidades” -, tem a finalidade de reforçar aquilo que aparece ao autor como a natureza aparente do cosmos: “Tudo é requintadamente vão!”, quase que “vão à segunda potência” – oco, desprovido de fundamento e enganoso, pois promete o que não pode cumprir.

Se é assim, o homem trabalha inutilmente e a dinâmica humana é essencialmente vazia:

 

Que proveito tira o homem

de todo o trabalho

com que se afadiga debaixo do sol? […]

Todas as coisas se afadigam

mais do que se pode dizer.

A vista não se farta de ver,

o ouvido nunca se sacia de ouvir (1,3.8)

 

O afã humano por transformar a matéria terá o mesmo destino do restante da matéria sem transformação: “Mas, quando me pus a considerar todas as obras de minhas mãos e o trabalho ao qual me tinha dado para fazê-las, eis: tudo é vaidade e vento que passa; não há nada de proveitoso debaixo do sol” (2,11). A condição de vaidade se abre pela consciência da inutilidade última de toda atividade humana.

Uma primeira conseqüência desse insight é que nenhuma ética do trabalho pode sustentar-se sobre a autovalidação do esforço humano: todo sucesso, toda obra derivados do agir humano em si continuam incapazes de escapar à lei radical da insuficiência ontológica. Trabalhar pelo êxito, por superar os concorrentes, por acumular riquezas, por construir alguma coisa de material, tudo isso é ainda auto-engano que encobre um apostar pelo Nada. “Nu saiu ele do ventre de sua mãe, tão nu como veio sairá desta vida, e, pelo seu trabalho, nada receberá que possa levar em suas mãos” (5,14).

O risco do niilismo ético é grande para o homem que não se engana, pois é fácil resvalar da impossibilidade de autovalidar o agir para a impossibilidade de validar em absoluto todo esforço. Também o autor do Quohelet enxerga lucidamente esta tentação:

 

E eu detestei a vida,

porque, a meus olhos

tudo é mau no que se passa

debaixo do sol,

tudo é vaidade e vento que passa.

Também se tornou odioso para mim

todo o trabalho que produzi

debaixo do sol […].

Todos os dias [do homem]

são apenas dores,

seus trabalhos apenas tristezas;

mesmo durante a noite

ele não goza de descanso (2,17-18.20.23)

 

Do resvalo niilista nasce em diversos tempos e lugares a atitude do carpe diem, erradamente associada ao Eclesiastes, como vimos, pois em última análise apenas reforça a amargura, de que consegue distrair transitoriamente, mas não logra superar: “Não há nada melhor para o homem que comer, beber e gozar o bem-estar no seu trabalho” (2,24).

No entanto, a transição niilista é um non sequitur lógico e existencial. Da premissa de uma contingência radical do esforço humano considerado em si mesmo apenas se conclui, acompanhando Viktor Frankl, que o trabalho tem de buscar o seu sentido em uma finalidade exterior a ele. Na sua terminologia, à dimensão do homo sapiens, que se move entre os pólos do sucesso e do fracasso, é preciso acrescentar a do homo patiens, cujos pólos, exteriores ao plano da contingência ontológica, são a realização ou o desespero.

Uma segunda conseqüência do reconhecimento da vaidade ontológica é que a consciência reside “na casa da melancolia”:

 

Melhor é ir para a casa onde há luto

do que para a casa onde há banquete.

Porque aí se vê aparecer

o fim de todo homem

e os vivos nele refletem.

Tristeza vale mais que riso,

porque a tristeza do semblante

é boa para o coração.

O coração do sábio

está na casa da melancolia,

o coração do insensato

na casa da alegria (7,1-4)

 

2. A luz

Como em O Estrangeiro, de Albert Camus, o excesso de luz, o olhar purificado de todo o auto-engano, revela uma geografia física monótona e indiferente ao homem. “Debaixo do sol” não há reais diferenças ontológicas entre as realidades situadas no tempo e no espaço. A simples passagem do tempo ou o mero conhecimento de um espaço maior não trazem nenhuma experiência qualitativa definitiva, mas apenas a variação da indiferença:

 

O sol se levanta, o sol se põe;

apressa-se a voltar a seu lugar;

em seguida, levanta-se de novo.

O vento vai em direção ao sul,

vai em direção ao norte,

volteia e gira nos mesmos circuitos.

Todos os rios se dirigem para o mar,

e o mar não transborda.

Em direção ao mar,

para onde correm os rios,

eles continuam a correr. […]

O que foi é o que será:

o que acontece é o que há de acontecer.

Não há nada de novo debaixo do sol.

Se é encontrada alguma coisa

da qual se diz:

“Veja: isto é novo”, ela já existia

nos tempos passados (1,5-7.9-10)

 

A ação humana é impotente para alterar esse ciclo que existe (e resiste) na sua impassividade. Estamos diante do “mito do eterno retorno” de Nietzsche, que por sua vez o tomou do hinduísmo e do budismo e, em parte, dos gregos; mas poderia igualmente tê-lo encontrado na religião egípcia e na babilônica, ou nas religiões menores do Próximo Oriente contemporâneas do autor do Eclesiastes.

Dentro desse quadro, também a eternização na memória é ilusão. Todos serão esquecidos:

 

Não há memória do que é antigo,

e nossos descendentes

não deixarão memória

junto daqueles que virão depois deles (1,11)

 

Tomada apenas em si mesma, essa visão poderia facilmente produzir o tédio e o desespero, que de fato se encontram em Nietzsche –
e também como nota dominante de muitas das civilizações mencionadas. Mas o Quohelet pertence à sabedoria de Israel, e discerne para além do ciclo eterno uma ação e um querer pessoais: “Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu: é Deus quem chama de novo o que passou” (3,15).

 

3. O pecado

A consciência é irmã da dor, e esse fato deriva da ordenação ou do mandamento divino. “Apliquei meu espírito a um estudo atencioso e à sábia observação de tudo que se passa debaixo dos céus: Deus impôs aos homens esta ocupação ingrata. […] Porque no acúmulo de sabedoria, acumula-se tristeza, e o que aumenta a ciência, aumenta a dor” (1,13.18).

A tarefa humana consiste, em primeiro lugar, em tomar conhecimento de que “tudo é vento que passa”. Peca, portanto, aquele que nega esse estado de coisas, fugindo à dor necessária e inevitável e escondendo-se dela atrás de uma barreira de coisas contingentes (sucesso, dinheiro, prazer pelo prazer): “Aquele que ama o dinheiro nunca se fartará, e aquele que ama a riqueza não tira dela proveito” (5,9).

Mas peca igualmente aquele que se entrega ao desespero: “O insensato cruza as mãos e devora sua própria carne” (4,5). O niilista, desesperado de encontrar um sentido no que faz, incide da maneira mais radical na categoria a que o Quohelet designa por “pecador”: “Eu sei, no entanto, que a felicidade é para os que temem a Deus […] e que não haverá nenhuma felicidade para o ímpio, o qual, como a sombra, não prolongará sua vida” (8,12-13).

Tanto em um caso como no outro, na raiz do pecado há uma cegueira voluntária, uma negação deliberada da realidade. “Os olhos do sábio estão na cabeça, mas o insensato anda nas trevas” (2,14). Mas esta é sempre uma atitude de fraqueza, uma fuga do excesso de luz: “o coração do insensato está à sua esquerda” (10,2), do lado débil e incapaz de realizações.

Tal como ocorre na realidade física, o excesso de luz pode ter o mesmo efeito que a treva: cegar. A luz implacável da consciência reflexiva toca a sua própria contingência, e assim a mera experiência do acúmulo de conhecimento pelo conhecimento implica igualmente o risco do desespero:

 

Eu disse comigo mesmo:

“Eis que amontoei

e acumulei mais sabedoria

do que todos os que me precederam

em Jerusalém.

Porque meu espírito estudou

muito a sabedoria e a ciência,

e apliquei-o ao discernimento

da sabedoria, da loucura e da tolice”.

Mas cheguei à conclusão de que isso é

também vento que passa (1,16-17)

 

Esse dilema é em si mesmo insuperável. Não há solução possível para ele no plano do intelecto, e podem-se perfeitamente ler os grandes “sistemas fechados” do pensamento ocidental (Kant, Hegel, Comte, Marx) como tentativas de fugir a ele. A única saída real encontra-se em outro plano, o do “coração”: em uma “virtude”. E novamente o Eclesiastes põe-nos cara a cara com uma pergunta impertinente: Então, qual a virtude de quem caminha nas trevas?

Podemos responder que essa virtude é de certa forma a grande protagonista silenciosa de todo o Quohelet, o resultado de uma sabedoria verdadeira que se dá conta da sua própria vacuidade intrínseca: “A sabedoria dá ao sábio mais força que dez chefes de guerra reunidos em uma cidade” (7,19). O Eclesiastes inteiro prepara-nos para a necessidade da coragem como virtude ao mesmo tempo epistêmica e cognitiva – a coragem de abrir os olhos à realidade e de extrair as conseqüências -;
moral – a coragem de não fugir, mas enfrentar a dor conseqüente ao conhecimento -;
e teológica – a coragem de confiar.

Se o coração do insensato está à esquerda, “o coração do sábio está à sua direita” (10,2); se a imagem pode parecer-nos anatomicamente curiosa, vivencialmente é de uma clareza tremenda.

 

4. A consciência de si

A consciência da finitude ordenada por Deus esmaga o valor do prazer sensorial. O sábio pode experimentar o máximo acúmulo de prazeres, mas isso em nada altera o fato de o intelecto não ser cego: “Eu disse comigo mesmo: ‘Vamos, tentemos a alegria e gozemos o prazer’. Mas isso é também vaidade. Do riso eu disse: ‘Loucura!’ e da alegria: ‘Para que serve?’ Resolvi entregar minha carne ao vinho, enquanto meu espírito se aplicaria ainda à sabedoria; procurar a loucura até que eu visse o que é bom para os filhos dos homens fazerem durante toda a sua vida debaixo dos céus. Empreendi grandes trabalhos, construí para mim casas e plantei vinhas; […] Fui maior que todos os que me precederam em Jerusalém; e, ainda assim, minha sabedoria permaneceu comigo” (2,1-4.9). No fim, as mãos sempre estarão vazias.

Como vimos, a luz não apaga, antes ressalta o fato de não haver diferença entre a estupidez e a consciência diante da nulidade ontológica. A tarefa do homem temente a Deus consiste em pensar e conhecer o seu vazio, e contudo também essa tarefa não é validada pelo fruto dela mesma. Nem mesmo a inteligência é autofundante.

O homem desemboca, pois, na agonia de quem se vê habitado pelo Nada. A consciência da “intolerável leveza” do real conduz à consciência da própria nulidade: ver a vaidade é também ver-se a si mesmo, descobrir-se a si mesmo como participante do Nada.

 

5. A percepção real

A consciência, nossa graça e nossa agonia, é também a nossa semelhança com Deus, e por isso ser inteligente é um mandamento. “Inteligente” no sentido etimológico: alguém que lê a evidência escrita no íntimo da realidade, sem refugar, sem desviar os olhos, embora não necessariamente “inteligente” no sentido moderno (de quem tem um alto “QI”). É a “sabedoria dos simples”, de que as Escrituras traçam com freqüência o elogio.

O orgulho – enquanto fuga da realidade e recusa de ver-se a si mesmo – é o oposto da coragem. Por isso, para o Eclesiastes, coragem é humildade, uma vez que implica a aceitação difícil e dolorosa da nulidade pessoal. Dentro do horizonte cosmológico, a função máxima do intelecto é alçar-nos ao lugar de percepção plena daquilo que não é Deus.

Mas, quando aplicada com atenção, a consciência vê Deus e o Nada simultaneamente, como dois pólos essenciais do Todo sobre o qual estamos estendidos. Esta, sim, é a real percepção das coisas deste mundo.

E este é também o sentido último da ética judaica da alteridade. Somente se formos capazes de perceber que o ser e nós somos Nada, seremos também capazes de perceber que o ser, em última análise, é dádiva de Deus: graça pura, gratuidade pura.

 

6. O afeto ontológico

O que contemplam os olhos dos sábios? Que a história, diante da física impassível e imutável nos seus ciclos, é um Nada, o destino comum que cabe a todos. O tempo engole o fruto das mãos e da alma, que tem o mesmo destino da matéria bruta: “Os vivos sabem ao menos que morrerão; os mortos, porém, não sabem de nada” (9,5). É o Sheol para onde todos irão e onde “não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento, nem sabedoria” (9,10) [2].

Diante de uma tal ontologia, o medo –
temperado pela coragem, aqui na sua vertente mais propriamente moral, que já mencionamos – é o afeto mais espontâneo e, em última análise, mais verdadeiro. Mas há um alívio para esse medo ontológico, alívio que é ao mesmo tempo uma educação para a coragem: o cotidiano ordenado, que prepara a inteligência para a percepção de que caminhamos tanto sobre a misericórdia como sobre o vazio. Não à toa esta passagem é das mais citadas:

 

Para tudo há um tempo,

para cada coisa

há um momento debaixo dos céus:

tempo para nascer, e tempo para morrer;

tempo para plantar,

e tempo para arrancar o que foi plantado;

tempo para matar, e tempo para sarar;

tempo para demolir, e tempo para construir;

tempo para chorar, e tempo para rir;

tempo para gemer, e tempo para dançar;

tempo para atirar pedras,

e tempo para ajuntá-las;

tempo para dar abraços,

e tempo para apartar-se;

tempo para procurar, e tempo para perder;

tempo para guardar, e tempo para jogar fora;

tempo para rasgar, e tempo para costurar;

tempo para calar, e tempo para falar;

tempo para amar, e tempo para odiar;

tempo para a guerra,

e tempo para a paz (3,1-8)

 

7. A fisiologia humana

A vida humana dá-se, pois, em ritmos; não há como escapar. Esses ritmos anulam qualquer especulação para além de si mesmos: sempre mataremos, beberemos e amaremos, saberemos mais do que devemos e menos do que precisamos, sem que tenhamos controle sobre essa realidade, nem em nós nem fora de nós: “Ele pôs no coração [do homem] a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo a outro” (3,11).

Ao mesmo tempo, a cadeia ordenada da ação humana é a melhor “física” possível para o nosso cotidiano, pois obedece aos limites nos quais opera a nossa fisiologia. Assim passa a ser possível vencer o horror cosmológico, a sensação de “folha lançada na tormenta”, pois o medo se torna reverência e dá passagem a uma segurança que não se apóia em qualidades pessoais nem em um pretenso “controle da situação”.

É inevitável pensar aqui na clássica definição de Agostinho de Hipona, que dizia que “a paz é a tranqüilidade na ordem”. A vida humana, diz o Eclesiastes, é uma gota em uma imensidão ordenada, o que descreve naturalmente a atitude que Deus espera do homem: temor diante da sua grandeza. “A felicidade é para os que temem a Deus, os que sua presença enche de respeito” (8,11).

Conclui o sábio: tal como o ser, também gozar a vida é uma graça de Deus, e não fruto de uma prática autojustificada, resultado do “controle sobre os processos da realidade”. Esse ritmo que torna as diferenças indiferentes no tempo e no espaço manifesta a vontade de Deus: “Todas as coisas que Deus fez são boas a seu tempo. […]. Assim eu concluí que nada é melhor para o homem do que alegrar-se […], e que comer, beber e gozar do fruto de seu trabalho é um dom de Deus” (3,11-13).

O simples respirar já é alegria, precisamente porque “o homem não é senhor de seu sopro de vida, nem é capaz de o conservar” (8,8). Embora a alegria tenha caráter contingente, por ser dádiva e portanto depender exclusivamente da vontade do doador, ela se instala graças ao ordenamento da vida.

Essa “cosmologia da graça” desarticula a relação entre o ato e o seu efeito: a inteligência não garante o sucesso; nem a velocidade, o prêmio; nem a coragem, a vitória; nem o amor, o amor; nem a prudência, a riqueza. Não se deduz das tarefas o seu sucesso. Segundo o sábio, o tempo e o acaso parecem julgar e distribuir os efeitos, e ambos são por igual manifestações da vontade divina: “os justos, os sábios e seus atos estão na mão de Deus” (9,1).

 

8. A forma de homem

O trabalho e a riqueza têm valores diferentes, mas sua diferença não está na dignidade intrínseca do trabalho – que não se autojustifica, como vimos -, e sim no fato de Deus dar o dom da alegria a quem não é preguiçoso durante o dia: “Doce é o sono do trabalhador, tenha ele pouco ou muito para comer; mas a abundância do rico o impede de dormir” (5,11). É significativo observar o absoluto empirismo com que esse dom é descrito como um “sono tranqüilo”.

O moderno puritanismo da objetividade e da ética do sucesso fazem o fim da vida, a forma final de Mensch, depender do conhecimento e do poder que este propiciaria sobre a realidade. Identificam por isso a “justiça” – a perfeição, a forma final -, com o triunfo pessoal, o domínio do eu sobre os outros. No entanto, diante do cenário da cosmologia geral da Graça e da Sombra que o Eclesiastes traça, desdobrado entre os pólos de Deus e do Nada, semelhante perspectiva acaba apenas reforçando a idéia da ontologia negativa: como o homem não sabe e não pode saber a medida de todas as coisas, não consegue ser justo o bastante sequer aos seus próprios olhos.

Daí a tensão insana que invade toda a vida moderna, entre o querer ser justo aos próprios olhos e o negar-se a reconhecer que isso é impossível. Essa tensão resolve-se com muita freqüência no seu contrário: em depressões, desajustes, revoltas e ressentimentos surdos. Daí também o esforço tenso por saber sempre mais, estudar sempre mais, garantir mais plenamente o controle do racional sobre o real – a “hiper-reflexão” neurótica de que fala também Viktor Frankl. Em qualquer caso, essa falsa crença, a falsa identificação da “forma”, deforma.

O Quohelet, pelo contrário, afirma que a justiça está mais perto do esforço físico continuado do que dos esforços teóricos: “Mais vale o fim de uma coisa que seu começo. Um espírito paciente vale mais que um espírito orgulhoso” (7,1). É impossível chegar a uma harmonia plena por meio do saber e do seu acúmulo, e o mesmo se aplica à busca da atitude justa através do mero esforço humano: “Não sejas justo excessivamente, nem sábio além da medida, porque te tornarias estúpido” (7,16).

Por isso, “quem observa o vento – quem reflete em excesso, sempre à espera das condições ideais – jamais semeará, e quem fica olhando as nuvens jamais ceifará” (11,4). O que pertence à ordem prática não se atinge por meios conceituais, mas pela ação confiada:

 

Semeia a tua semente desde a manhã,

e não deixes tuas mãos ociosas

até a noite,

porque não sabes o que terá bom êxito,

se isto ou aquilo, ou se ambas

as coisas são igualmente úteis (11,1-6)

O Eclesiastes é prático: a “forma” para se transformar em um homem conquista-se no silêncio laborioso da coragem cotidiana, não na verborragia intelectual. Fale pouco, diz o estóico bíblico, pois assim como o conhecimento em excesso, as palavras em demasia confundem a alma: “Não te apresses em abrir a boca; que teu coração não se apresse em proferir palavras diante de Deus, porque Deus está no céu, e tu na terra; que tuas palavras sejam, portanto, pouco numerosas. Porque as muitas ocupações [desordenadas] geram sonhos, e a torrente de palavras faz nascer resoluções insensatas” (5,1-2).

A forma da verdade e do bem permanecem, para nós, na esfera do incognoscível: é vão aquele que se acha a forma, é vão quem pensa ter fixado intelectualmente a forma. “Desfruta da vida com a mulher que amas, durante todos os dias da fugitiva e vã existência que Deus te concede debaixo do sol” (9,9) – a atitude saudável está em desfrutar da mulher que se ama, porque seu sorriso é a forma da graça – da dádiva – no âmbito da dinâmica do desejo; mas sem esquecer o aviso que ressoa como um perpétuo memento mori: também não se pretenda erigir o amor humano em forma nem se espere dele a liberdade, pois para o homem a mulher “é um laço, e seu coração é uma rede, e suas mãos, cadeias” (7,26). E as mulheres poderiam dizer outro tanto dos homens…

E por fim, a imagem fulgurante e divertida, pois também o humor é sempre concreto: observemos a força das moscas, diz, uma só das quais basta para “infectar e corromper o azeite perfumado” (10,1). Sem agitar-se, sem tensões – pois que já está morta… -, produz uma ação devastadora.

 

9. A física de Deus

Em última análise, portanto, a justiça, assim como a verdade, não nascem do esforço do homem, mas do mesmo lugar de onde vem o mar que não cessa de receber o rio: da “física” – da dynamis, da ação – de Deus.

Essa ação divina que traz a justiça está envolta em mistério, o qual, como vimos, não é um problema conceitual, mas pertence à ordem do oculto tecer-se da vida na barriga da mulher grávida: “Do mesmo modo que não sabes qual é o caminho do sopro da vida, e como se formam os ossos no seio de uma mãe, assim também ignoras a obra de Deus que faz todas as coisas” (11,5).

A moderação contente é o máximo que se pode alcançar, diz o sábio, mas… com vinho: “Come alegremente teu pão e bebe con-
tente teu vinho, porque Deus já apreciou teus trabalhos” (9,7). A criatura deve às vezes esquecer-se da próxima hora de sua vida, ainda que jamais deva esquecer-se da graça que sustenta todas as horas de sua vida.

 

10. O hábito do abismo

 Em resumo, a profundidade das coisas estendidas entre o Nada e Deus, o seu mistério insondável, é vivida sensorial e intelectualmente como “abismo”. Ao longo da indiferença do tempo, a contingência – vontade de Deus -, decide da relação entre os atos e as conseqüências. O falso cosmos, a realidade vã, é organizada em ritmos pela dinâmica de Deus, que suaviza e torna suportável o medo ontológico. Inevitavelmente, porém, o homem caminha nas trevas e sua principal virtude consiste em reconhecer-se habitante do abismo.

Mas é desse abismo que surgem a verdadeira face do homem e a Beleza de Deus. Instalados na pessoa como aquisições permanentes – como “hábitos” -, essas três realidades (o abismo, a face de Deus e a do homem, análogos da contingência, da verdade e da virtude) circunscrevem os limites da verdade filosófica sobre a nossa condição.

 

Um trabalho sem fim

Voltemos a Herzog para resumir sob outro ângulo o que acabamos de ver. O scholar tinha perdido no seu racionalismo a capacidade de desfrutar do concreto da vida, pois estava preso no seu conhecimento como um condenado cercado por uma muralha. Assim, em um momento em que desfruta de uma intensa e inesperada alegria, estremece:

 

“Eu não tinha a força de caráter necessária para suportar tamanha alegria. Nada havia de engraçado nisso. Quando o peito de um homem se sente como a gaiola de onde todos os pássaros negros escaparam, ele está livre, está leve. Mas anseia por ter os seus abutres de volta: sente falta das suas lutas habituais, dos seus trabalhos vazios e sem nome, do seu ódio, das suas dores e dos seus pecados”.

 

Preso nesta cela interior, resiste quanto pode ao pensamento de que “o Senhor da Vida é a Morte”, que lhe vem insistentemente à memória toda vez que se lembra da agonia da mãe, morrendo lentamente de câncer enquanto ele lia na mesa da cozinha um exemplar de O declínio do Ocidente, de Spengler. Bellow mostra que essa descida de Herzog aos infernos é a única forma de quebrar as muralhas da sua cela e de transformar-se, de um “intelectual” (podemos dizer), em um filósofo.

Nelson Rodrigues, em uma crônica famosa incluída na antologia A cabra vadia, a um jovem repórter que lhe perguntava a razão da sua insistência em escrever sobre política nos anos 60 respondeu: o seu motivo era que não passava de um “ex-covarde”, e não queria colaborar com o “aviltamento pessoal e coletivo” a que a classe intelectual submetia os brasileiros. E continuou:

 

“O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens […]. O medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a ‘Razão da Idade’. Somos autores de impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total”.

 

A transformação do “pulha” em “ex-covarde” exige a virtude da coragem, tal como a comentamos. “Não trapaceio comigo – diz ainda Nelson Rodrigues -, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito”.

Mas sofrer muito não significa deliciar-se na desgraça, regozijar-se, sentir-se especial, armadilha em que cai o personagem de Bellow. No fim, a única possibilidade de encontrar o realismo essencial é retornar à pergunta que estabeleci no início deste texto: O que quer Deus dizer-me com esse texto? Deixemos a resposta ao Quohelet, que a formula com enorme densidade poética e suave bom humor:

 

Lembra-te do teu Criador

nos dias da mocidade,

antes que venham

os dias da desgraça

e cheguem os anos dos quais dirás:

“Não tenho mais prazer”.

Antes que se escureçam o sol e a luz,

a lua e as estrelas,

e que voltem as nuvens

depois da chuva;

no dia em que os guardas da casa tremem

e os homens fortes se curvam

[os braços e pernas],

em que as que moem

[os dentes molares],

pouco numerosas, param,

em que as que olham pela janela

[os olhos] perdem seu brilho.

Quando se fecha a porta da rua

e o barulho do moinho diminui

[a pessoa ensurdece],

quando se acorda com o canto do pássaro

e todas as canções emudecem;

quando se temem as subidas

e se levam sustos pelo caminho,

quando a amendoeira está em flor

[os cabelos ficam brancos]

e o gafanhoto engorda

e a alcaparra perde sua eficácia,

é porque o homem

já está a caminho

de sua morada eterna,

e os que choram sua morte

começam a rondar pela rua.

Antes que o fio de prata se afrouxe

e a taça de ouro se parta,

antes que o jarro se quebre na fonte

e a roldana rebente no poço,

antes que o pó volte à terra

de onde veio

e o sopro volte a Deus

que o concedeu” (12,1-8)

Esse bom humor e essa paz perante a perspectiva da velhice e da morte são privilégio dos corajosos. Quer se trate de nós, os suffering jokers que tentam ser “ex-covardes”, quer dos Herzogs aprisionados nas suas gaiolas de conhecimento “objetivo”, quer de um Nelson Rodrigues que encontrou a sua coragem depois de tanto sofrer, todos estamos sujeitos ao que acontece debaixo do sol. E é no empirismo árduo das coisas contingentes que temos de descobrir a face do abismo, de nós mesmos… e de Deus.

 

Luiz Felipe Pondé, Doutor em Filosofia Moderna pela USP, é professor de Ciências da Religião na PUC-SP e titular de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado. Já publicou os livros Conhecimento na Desgraça (Edusp), Crítica e Profecia (Editora 34), Contra um mundo melhor: Ensaios do Afeto (2010), Guia Politicamente Incorreto da Filosofia (2012), A era do ressentimento: uma agenda para o contemporâneo (2014), entre outros. Escreve para a Folha de S. Paulo.

 

Colaboraram Martim Vasques da Cunha e Henrique Elfes.

 

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, ed. 1, Junho de 2008.

 


NOTAS:

[1] Rio de Janeiro: Editora Best-seller, 1989; título original The Closing of the American Mind, New York: Simon and Schuster, 1988.

[2] A religião de Israel, ao tempo da redação do Eclesiastes, não concebia uma vida após a morte nem a ressurreição dos mortos. Assim se entendem muitas passagens como esta: “Por isso louvei a alegria, porque não há nada de melhor para o homem, debaixo do sol, do que comer, beber e se divertir; possa isto acompanhá-lo no seu trabalho, ao longo dos dias que Deus lhe outorgar debaixo do sol” (8,15), que poderia ser interpretada no sentido do carpe diem se não se equilibrasse com outras passagens deste tipo: “Em conclusão: tudo bem entendido, teme a Deus e observa seus preceitos: é este o dever de todo homem” (12,13). Na verdade, a doutrina do Sheol, como observa C.S. Lewis, exigia do israelita uma retidão e honestidade praticamente sem paralelos na história, pois não esperava uma recompensa transcendente.

 

Entrevista do IFE São Paulo com Anthony Daniels (Theodore Dalrymple)

Filosofia | 30/11/2016 | | IFE SÃO PAULO

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dalrymple-copyO IFE São Paulo entrevistou Anthony Daniels – também conhecido como Theodore Dalrymple – em sua recente passagem pelo Brasil, promovida pela Editora É Realizações. Em nossa conversa com o médico psiquiatra inglês, autor de livros como A Vida Na Sarjeta, Em Defesa do Preconceito e Nossa Cultura…ou o que restou dela, foram tratados diversos temas sobre sua vida e obra:

Em seus livros você costuma fazer análises baseadas em sua experiência pessoal. Por que a opção por esta abordagem ao invés de um estilo mais formal, teórico ou acadêmico?

Em primeiro lugar, não sou qualificado para escrever academicamente.  Depois, a maioria dos acadêmicos escreve muito mal (risos). Além disso, a vantagem de escrever dessa maneira é que as pessoas podem ver que não se trata apenas de teoria, mas de uma espécie de experiência vivida. É uma dialética entre experiência pessoal e considerações mais amplas. Não acredito que a experiência pessoal seja um guia completo para a vida ou a resposta para perguntas difíceis, mas ela deve estar em uma espécie de diálogo com fontes de conhecimento mais amplas. O problema com os acadêmicos é que eles não acreditam que a experiência pessoal seja importante, e, assim, fazem violência até mesmo à sua própria experiência pessoal, o que pode levá-los a acreditar em qualquer tipo de disparate.

Mas é claro que a experiência pessoal não é a única guia. Deve haver um tipo de diálogo entre a experiência pessoal e considerações mais amplas. Assim, por exemplo, vamos supor que você seja vítima de um crime. Há crime em todas as sociedades, e o fato de ser vítima de um delito não o torna especialista neste assunto. Mas usando a sua experiência do medo do delito que aconteceu com você ou com seus amigos, você pode começar a pensar sobre crime e, em seguida, olhar estatísticas e assim por diante.

Sempre achei que uma das maiores causas do crime é a criminologia. Criminologistas no meu país, diante do aumento fenomenal da criminalidade, negaram que o medo que as pessoas sentem em relação aos delitos se baseava em qualquer tipo de realidade. As pessoas comuns foram mais precisas em sua compreensão do que os criminologistas, que se esforçaram para negar o aumento da criminalidade. Então eles consideram que o medo do crime é o problema, e não o crime em si. Qualquer um que vive em um alojamento público na Inglaterra saberá que o medo do crime não é irracional. Minha mãe, uma senhora muito idosa, não podia sair à noite. Os criminosos impuseram um toque de recolher a pessoas comuns. Aqui no Brasil ocorre a mesma coisa: disseram-me que não devo sair depois das 22 horas. Isto é um toque de recolher, e é imposto por criminosos. Suponhamos que eu saia às 22 horas. Provavelmente em nove entre dez vezes nada vai acontecer. Mas a vez em que algo ocorre é mais importante do que as nove vezes em que nada aconteceu. Então tento evitar em meus livros esse tipo de negação da experiência comum a que se inclinam muitos acadêmicos quando escrevem apenas academicamente.

Em seu livro Admirable Evasions (ainda não traduzido para o português) você afirma que correntes psicológicas não conseguem fornecer boas respostas sobre a natureza humana e questões importantes para a vida, apenas reconhecendo conquistas para problemas pontuais. Você vê alguma corrente ou escola psicológicas atuais que forneça boas bases para a compreensão da pessoa humana?

Não, porque não acredito que poderia haver uma escola assim. Acho que é impossível por razões metafísicas. Os problemas da existência humana são permanentes e acho que de certa forma insolúveis. Se voltarmos mil anos, não acredito que os seres humanos entenderiam mais a vida do que nós, assim como não entendemos mais sobre a vida do que Shakespeare ou os gregos e assim por diante.

Vem a minha mente a obra de Viktor Frankl e sua logoterapia. Qual é a sua opinião sobre isto?

Depende do que você quer chamar de terapia. Acho que para Frankl é algo mais como um diálogo socrático. Não o chamo de médico; seu ponto de vista é mais filosófico.

Claro que existem exceções, mas as exceções não fazem a regra. Como eu disse no meu livro: você não pode tratar a vida como se fosse um caso de aracnofobia. A aracnofobia pode ser tratada psicologicamente – isso eu aceito. Mas você não pode tratar os problemas da existência como se fossem aracnofobia. É isso que nego neste livro: que a psicologia será capaz de nos dizer algo importante sobre a vida como um todo. Pode ser que auxilie em alguns problemas específicos. Tomemos as fobias como exemplo: quanto mais específica a fobia, mais a psicologia pode ajudá-la. Mas isso também significa que a psicologia é menos importante em relação ao todo.

Então ela pode abordar certas questões específicas. Mas não fornece …

A resposta sobre a vida.

Em seu livro Qualquer Coisa Serve você afirma acreditar, embora não seja religioso, que devemos viver a vida como se certas coisas fossem sagradas. Qual seria a fonte ou o fundamento dessa sacralidade?

Eu diria que a necessidade, porque se não nos sentirmos assim, qualquer coisa vai servir. Não consigo fornecer uma justificativa metafísica completa para isso. É uma espécie de intuição. Não posso dar-lhe um princípio indubitável a partir do qual você pode deduzir que o que digo é verdade. Mas se não temos essa atitude, então qualquer outra coisa realmente serve. Não conseguiriamos dizer o que há, por exemplo, de errado com o genocídio.

Então é uma abordagem consequencialista?

Sim, mas não sou um consequencialista por completo. Se considerarmos, por exemplo, a justiça, não acho ela que possa ter uma explicação consequencialista. Não sou filósofo, então talvez tenha perdido algo. Mas se adotássemos uma visão completamente consequencialista da justiça seria perfeitamente correto punir pessoas inocentes caso as consequências de fazê-lo fossem desejáveis. Nós não o faríamos porque seria injusto, portanto a questão da justiça não pode ser observada apenas consequentemente.

Você escreve artigos para o City Journal. Você acha que a Política das Janelas Quebradas poderia dar boas respostas para problemas criminais em países diversos dos Estados Unidos?

A teoria é intuitivamente plausível. Pensei nas pessoas na Grã-Bretanha, por exemplo, que têm jogado muito lixo na rua. Quando o lixo torna-se geral, adicionar mais não faz qualquer diferença, porque não se pode dizer como o lixo estava antes de receber mais lixo. Então acho que é verdade, e não vejo razão para não ser verdade no Brasil também.

O problema na Grã-Bretanha é que realmente não percebemos os pequenos atos de desordem. Sei disso por causa do meu trabalho com prisioneiros, que muitas vezes começaram com crimes menores, e progrediram no seu repertório criminoso. Há naturalmente muitos que nunca cometem um grande crime, é verdade. Mas não há nenhum grande criminoso que não cometa crimes pequenos. Não creio que seja diferente com os brasileiros.

Relacionado a este assunto, qual a sua opinião sobre a questão da legalização das drogas? E quais seriam as consequências da legalização?

Primeiro é preciso esclarecer o que se entende por legalização, e a maioria das pessoas não é clara em relação a isto. Quando se fala em legalização das drogas, quer-se dizer que você poderia entrar em uma loja e comprar seu crack, sua cocaína, sua anfetamina, sua fenciclidina, sua cetamina, sua heroína, da mesma forma que poderia comprar seu café ou seu pão? Isso parece intuitivamente absurdo. Não me parece ser um cenário plausível em qualquer lugar no mundo. Esse é o primeiro ponto.

No mais, alega-se que todas as consequências ruins do consumo de drogas surgem da ilegalidade e não das drogas em si. Sabemos que isso não é verdade. Por exemplo, nos Estados Unidos há hoje 24.000 pessoas morrendo de overdose de opiáceos prescritos, drogas quimicamente semelhantes ao ópio, como a heroína, que são legais. Elas são prescritas por medicos – e acho que muito mal prescritas. Os médicos são completamente irresponsáveis, mas o entorpecente é legal, e 24.000 pessoas morrem por ano nos Estados Unidos por causa dele. Assim, podemos ver que os problemas decorrentes dessas drogas não são puramente a consequência da ilegalidade. Há mais pessoas morrendo em decorrência destas drogas do que em razão de entorpecentes ilegais. Então é falsa a ideia de que se tudo é legal, tudo está bem. A legalização do crack não significaria que não ocorreriam as consequências que, de fato, se verificam nos usuários.

Talvez pudéssemos fazer uma distinção entre legalização e descriminalização?

A descriminalização também não resolverá o problema. Não acho que resolveu o problema em Portugal. O índice de criminalidade não caiu em Portugal como resultado. Não subiu, mas também não caiu. Na verdade, em nossas sociedades, o consumo de drogas já foi descriminalizado, porque, pelo menos na Grã-Bretanha, as pessoas não são presas por usar drogas. Traficar drogas ainda é crime. Os descriminalizadores não estão dizendo que deveríamos descriminalizar o tráfico de drogas, que ainda é ilegal em Portugal. É ilegal produzir essas drogas, é ilegal distribuí-las, é ilegal vendê-las, mas de fato temos a descriminalização de qualquer maneira. Creio que ninguém esteja na prisão na Inglaterra ou nos Estados Unidos meramente por fumar maconha. E os descriminalizadores não sugerem descriminalizar o fornecimento, então nada muda na prática.

Subjacente à descriminalização está a idéia de John Stuart Mill do princípio do dano. O problema é que é muito difícil, na sociedade moderna, isolar o dano que um indivíduo faz a si mesmo do mal que faz a outras pessoas, e também fazê-lo pagar por isso. Creio que seria impossível e desumano conceber uma sociedade que não tentaria ressuscitar alguém que consumiu heroína e teve uma overdose simplesmente porque aquela foi a decisão da pessoa. Não deixaríamos de levar alguém ao hospital caso o problema fosse uma overdose. Não diríamos “Nesse caso podemos deixá-lo morrer”. Ninguém iria querer viver nesse tipo de sociedade.

Já que você mencionou John Stuart Mill, estou certo em dizer que você é cético em relação ao libertarianismo?

Sim, precisamente porque o libertarianismo é uma espécie de utopia – e não acredito em utopias. Como eu disse, existe um grande problema: a ideia de que todos, na condição de indivíduos, podem fazer o que quiserem, contanto que não afetem os outros. São muito poucos atos que não afetam ninguém. Além disso, há algumas passagens de John Stuart Mill muito citadas, mas as pessoas não o citam quando ele diz: “Se um pai não sustenta o seu filho, ele pode legitimamente ser colocado para trabalhar à força a fim de sustentá-lo”. Se ele não quer trabalhar para prover ao filho, então podemos, de fato, escravizá-lo. E isso mostra o lado perigoso do libertarianismo, fazer as pessoas absolutamente responsáveis por si mesmas tem a consequência de que qualquer dano que fazem deve ser reprimido. Como disse Dostoiévski: “Partindo do princípio da liberdade absoluta, chegamos à tirania absoluta”.

O que há de correto nos libertários é que eles percebem que no mundo moderno estamos cada vez mais sendo geridos e deixamos cada vez menos espaço para o julgamento individual e para a confiança nas pessoas. Por exemplo, os professores – e acho que provavelmente acontece o mesmo no Brasil – têm uma enorme quantidade de obrigações burocráticas que torna difícil que deem o seu melhor. Acho que seria muito mais desejável dar liberdade aos professores para que pudessem fazer o seu melhor.

Acho que o libertarianismo é a tentativa de produzir um mundo perfeito em que tudo vai de acordo com uma doutrina.

Então, neste sentido, promete uma utopia como o socialismo, mas uma utopia diferente?

Sim, é uma utopia diferente. Como todas as utopias, não é muito realista e ninguém iria querer viver nela. Há muitas coisas que aceitamos, presumimos, mas que são produtos de regulação. Por exemplo, assumimos que a água é limpa. Não queremos ter de testar nossa água todas as vezes que a tomamos. E o fato de isto ser regulamentado nos liberta. Claro que os libertários diriam: “Na sociedade libertária, aqueles que fornecem água a testariam”, mas sabemos que não é realmente esse o caso. Se as pessoas tiverem oportunidade de vender água contaminada, elas o farão. Na verdade, elas o fazem em lugares como a Índia.

Aprendemos a partir da experiência prática, não da especulação…

Exatamente. É experiência prática.

Em seu livro Podres de Mimados você destaca o sistema educacional como uma causa da diminuição da alfabetização, da promoção da violência entre os jovens e de diversos problemas que o Ocidente começou a viver. Atualmente, o governo federal brasileiro está tentando implementar reformas no sistema educacional brasileiro. Estudantes, porém, estão rejeitando as reformas e ocupando escolas. Como resolver este círculo vicioso no qual estudantes que são o produto deste sistema educacional problemático se recusam aceitar reformas?

Qual é a idade destes estudantes que estão ocupando? E deveríamos chamá-los de pupilos, não de estudantes. Isso é parte do problema. A palavra “pupilo” quase desapareceu. Um estudante é alguém que, em parte, dirige seus próprios estudos. Ele escolhe o que estudar. Um pupilo é uma pessoa mais jovem a quem é dito o que vai aprender. E o ponto em que um pupilo se torna um estudante não é perceptível. Tradicionalmente é quando ele deixa a escola e vai para a universidade. Mas o problema é que agora a autoridade passou da pessoa mais velha para a pessoa mais jovem. A criança se torna uma autoridade. Vejo isso em coisas pequenas, como os pais na Inglaterra (eu não sei sobre a situação no Brasil) que perguntam aos filhos o que eles querem comer. Isto é errado. Você não pergunta à criança o que ela quer comer. Você dá à criança algo e diz: “Isso é o que você vai comer.” Exceto, talvez, em alguma ocasião especial. Há uma consequência enorme para a criança. Entre outras coisas, uma das razões para a existência de tanta obesidade é o fato de as pessoas comerem como crianças pelo resto de suas vidas. Elas puderam escolher desde muito cedo, na verdade, antes que tivessem qualquer base para fazer essa escolha.

Não sei qual é a situação no Brasil. Eu me pergunto se os pupilos que estão ocupando as escolas sabem o que estão fazendo e até onde estão sendo manipulados pelos professores em sindicatos. Não sei exatamente qual é a situação. Mas enfrentamos o mesmo problema na Inglaterra, onde por décadas os professores foram mal intruídos em métodos para ensinar as crianças a ler. Estabeleceu-se que qualquer criança, praticamente qualquer criança, pode aprender a ler bem, mesmo que venha de um lar desfavorável, mesmo que viva em circunstâncias muito ruins. E, no entanto, nossos professores não fizeram isso por décadas. Mas está começando a mudar.

Agora, imagino que o mesmo aconteceu no Brasil. E, possivelmente, de maneira pior, porque aqui é ainda mais ideológico. Então acho que o problema está, provavelmente, nos professores e não nos pupilos. E é claro que é um círculo vicioso. É muito difícil mudar um sistema altamente burocrático. O governo central pode dizer o que quiser, mas as pessoas que vão realmente determinar o que acontece estão muito abaixo na escala burocrática. Uma das possíveis soluções poderia ser abrir o sistema educativo à concorrência. Há um livro muito interessante escrito por James Tully sobre o estabelecimento de escolas particulares pequenas e baratas em Lagos, Bombai e outros lugares muito pobres, onde as pessoas em situação de pobreza estão dispostas a pagar algo para ter seus filhos educados. O problema com o sistema burocrático é que as pessoas mais vulneráveis às suas imbecilidades são, naturalmente, os pobres. Porque se você pertence à classe média, ou não vai aceitar essa situação ou vai tomar uma ação alternativa. Portanto, são os pobres que ficam vulneráveis. Dito isto, desde que cheguei ao Brasil conheci vários professores que estão trabalhando no sistema público, e pareciam ser pessoas muito boas. Estavam realmente tentando fazer o seu melhor, mas disseram que tudo está contra. Os professores estão contra, o ministro da educação é contra. Então, é um problema muito difícil.

Ainda sobre seu livro Podres de Mimados, nesta obra você descreve aspectos do sentimentalismo e destaca que, se algo ocorre apenas do âmbito privado da vida de alguém, é como se não tivesse ocorrido, a menos que essa pessoa o demonstre em público. Você acredita que o surgimento das redes sociais é consequência ou causa deste fenômeno?

É uma relação dialética, sem dúvida. Uma relação na qual a possibilidade se torna necessidade. Não sei exatamente, pois não uso redes sociais. Mas parece haver um pacto entre certas pessoas: eu finjo estar interessado na sua futilidade se você fingir que se interessa pela minha. Colocar o que acontece com você em um espaço no qual milhões de pessoas podem ver de alguma forma confere a estes acontecimentos uma importância maior. Ouvi dizer que diversas pessoas publicam coisas como: “Estou em uma loja” ou “Estou aqui, tomando café”. Por que alguém se interessaria por isto? É muito estranho para mim. De qualquer forma, eu diria que existem meios sensatos de usar estas mídias, mas muito delas é futilidade e somente tem por consequência aumentar a presunção e uma espécie de individualismo sem individualidade.

Sobre seu livro A Nova Síndrome de Vichy, você escreveu esta obra antes do Brexit, certo? Qual a sua opinião sobre a saída da União Europeia?

Em primeiro lugar, em muitos casos representou um protesto contra a classe política. Se o Sr. Cameron não tivesse dito nada é possível que o voto tivesse sido no sentido contrário. Se os políticos não tivessem dito nada, especialmente aqueles que eram favoráveis à permanência, é possível que o voto tivesse sido no sentido contrário.

E, na minha visão, a União Europeia está construindo a próxima Iugoslávia. Eu não sei se você já ouviu alguém dizer no que consiste o Projeto Europeu. Eles costumam falar do Projeto Europeu, mas você nunca ouve ninguém dizendo o que ele é. E somente pode significar uma coisa: a construção de um estado unitário. E é extremamente perigoso impor políticas a países do tamanho da Espanha ou da Itália sem que haja nenhum sentimento real de união entre eles. É algo extremamente perigoso e terminará em conflito.

E os alemães estão em uma situação complicada…

Os alemães estão em uma posição muito complicada porque eles são poderosos, mas não todo-poderosos. Então, por exemplo, se a França, a Espanha e a Itália fizerem uma coalisão contra a Alemanha – porque o interesse dos países são diametricamente opostos -, algo será imposto à Alemanha. E isto não é bom. Na verdade, não poderia haver melhor forma de fazer crescer o nacionalismo alemão. Ainda assim, eles me parecem preparados para continuar nesta rota, o que é muito perigoso.

Agora, em relação ao Reino Unido, é existencialmente importante para a União Europeia que o Brexit seja um desastre econômico, porque se não o for, se não houver deterioração, ainda que ocorra apenas estagnação, as pessoas na Europa vão dizer: “Qual é o ponto da União Europeia se sair dela não faz nenhuma diferença, não leva ao desastre?”. Então é necessário para eles que o desastre seja produzido.

Entendo que o Reino Unido tem salvado a Europa desde as Guerras Napoleônicas. Você acredita que é isto que vai acontecer novamente?

A questão é que nós temos diversos problemas no Reino Unido e não podemos pensar que eles decorrem da União Europeia. Isto não é verdade. Nossos problemas não têm por origem fundamentalmente a União Europeia. Mas se o Brexit levar à quebra da UE, então terá salvado a Europa de novo, sim, porque o futuro da Europa é o desastre, a menos que mudem de rota.

Se eu tivesse que resumir seu livro em uma frase, esta seria: a Europa está perdida. Estou correto?

Eu não acho que seja inevitável. Depende do que você quer dizer por perdida. Continentes não se perdem simplesmente. Mesmo depois da queda do Império Romano continuou havendo vida, e provavelmente não era tão ruim como costumamos imaginar. Então, nesse sentido não está perdida. E eu não quero dizer que a vida na Europa é um inferno, porque obviamente não o é. Mas estamos trilhando um caminho que vai levar ao desastre, provavelmente não no meu tempo de vida, pois não vou viver tanto tempo, mas eu acho que você verá desastre na Europa, caso continue se movendo nesta direção. Mas eles podem mudar de caminho por outras razões.

Já que estamos falando da Europa, não podemos deixar de mencionar o Islamismo. E me parece que você é mais otimista em relação ao Islã na Europa do que a maioria dos analistas, pois entende que, ainda que o Islã influencie a Europa, a cultura secular também influencia o Islamismo. Você, então, não enxerga o Islã como uma ameaça real?

Às vezes penso que sim, às vezes penso que não. A questão é que o Islã é intelectualmente muito fraco. E o Islamismo é a resposta a esta fraqueza extrema do Islã. O fato é que o Islã não tem nada a dizer ao mundo moderno, não pode cooperar com ele. E, ao mesmo tempo, pessoas que são muçulmanas percebem o que acontece com as religiões quando há total liberdade de inquirição, criticismo e assim por diante.

Assim como com o cristianismo…

O cristianismo desmoronou, ao menos na Europa. Talvez não no Brasil, mas provavelmente irá ocorrer aqui também. Veja a França, por exemplo. Eu estava lendo uma edição de Flaubert voltada para crianças de 16 anos nas escolas e neste livro os editores entenderam que precisavam explicar a doutrina da trindade. Eles entenderam que não era possível ter expectativas de que as crianças soubessem o que era a doutrina da trindade ou a confissão, e assim por diante. E esse é o país que é chamado de “a filha mais velha da Igreja”. Se os editores deste livro estão certos, e eu acredito que devem estar, significa que ocorreu uma destruição praticamente completa do cristianismo na França. E o mesmo é verdade na Inglaterra.

Então se eu fosse um muçulmano e quisesse manter o Islã, eu iria pensar que a única forma de fazê-lo é o extremismo. É a única solução para o Islã. A menos que seja mantido pela força, irá se tornar apenas mais uma crença pessoal – não mais do que a crença nos chakras da terra ou nos poderes curadores dos cristais. E, claro, sempre houve em si um elemento de força: na doutrina aceita na Sunnah – e não estou certo sobre o islamismo xiita – da pena de morte para apostasia. Para mim, soa um pouco como a Máfia (risos).

Como eu disse, eles entendem que, a menos que seja mantido pela força, o Islã irá desmoronar. De certa forma esta violência representa um entendimento implícito de quão frágil é o Islã. Isto significa que ocorrerão incômodos terríveis nos anos que estão por vir. Mas não é uma ameaça existencial real, pois irá desmoronar.

Você acredita que movimentos da extrema direita europeia, como o Front National na França, podem usar essa ameaça do Islamismo como meio para ganharem poder?

Sim, é claro. Se eu fosse um líder de extrema direita eu iria me aproveitar de todo exemplo de conduta islâmica que nós não gostamos. Por exemplo, existem ruas em Paris que são bloqueadas por pessoas rezando. Eu também não gosto disto. Eu acho que essas pessoas deveriam ser retiradas. Deveria ser dito a elas “Não faça isso, pois se o fizer será preso por criar obstruções”. O fato de que ninguém toma essa atitude obviamente dá força ao Front National. Mas você disse que é uma organização de direita. Em certos aspectos, porém, é claro que é também de esquerda, pois evidentemente não é economicamente liberal. Muitas de suas prescrições econômicas são exatamente aquelas desejadas pela esquerda ou, ao menos, por parte da esquerda.

Ao final do livro você menciona os Estados Unidos e se este país poderia ou não seguir o mesmo caminho que a Europa adotou. Roger Scruton deu uma palestra na Heritage Foundation e mencionou o livro A Decadência do Ocidente de Oswald Spengler. De acordo com Scruton, o que Spengler não previu foi a emergência dos Estados Unidos e a ajuda dada pelos EUA à Europa após a Segunda Guerra. Parece-me que no século XXI os Estados Unidos estão mais fracos do que antes. Qual seria o papel dos EUA no mundo neste século?

Em certo sentido, esta perda de poder é inevitável, assim como o foi a perda de poder britânico. Disraeli disse que “o continente europeu não permitiria que o Reino Unido fosse a oficina do mundo para sempre”. Em outras palavras, você não pode manter sua dominação econômica para sempre, e isto já está acontecendo com os Estados Unidos. Eu sequer acredito que, estritamente falando, continue sendo o poder militar dominante que era. Eu não acredito que os Estados Unidos iriam à guerra contra a China, por exemplo. Se a China invadisse Taiwan eu não acredito que os EUA iriam protegê-la. Isto significa que não é mais o superpoder único que o foi. Os EUA sequer iriam atacar a Rússia caso ela invadisse áreas como a Geórgia, a Criméia ou os Países Bálticos. Os Estados Unidos viriam ajudar os Países Bálticos? Faria muito barulho, imporia sanções econômicas, passaria resoluções, mas não iria para a guerra, e é por isso que o povo nestes países está nervoso.

Mas eu não culpo os Estados Unidos, pois isso é uma consequência da situação. Não acho que pudessem fazer muito melhor. Contudo, muito do orgulho dos Estados Unidos consiste exatamente em ser este grande poder e, quando este poder está evidentemente perdido, a moral do país pode deteriorar.

Você tende a ser cético quanto à ideia de excepcionalismo americano, certo?

Ah, sim. Eu não acredito em excepcionalismo americano. Quero dizer, todo país é excepcional, pois todo país é único. O Brasil é diferente de todos os outros países. A América é um pouco diferente porque ao contrário da maioria dos países é um país ideológico. É fundado em uma ideia, ao menos em teoria, fato que não ocorre com a maioria dos países. A França, de forma similar, é um país ideológico. E o sentimento de excepcionalismo é perigoso. O orgulho vem antes da destruição, um espírito arrogante antes da queda, como diz a Bíblia.

Um tema recorrente de sua obra é o dos intelectuais e sua influência na sociedade. Muitos problemas da sociedade ocidental parecem ser resultado de certas ideias promovidas por intelectuais. Você entende que estes intelectuais eram moralmente corruptos ou estavam buscando a verdade e foram incapaz de o fazê-lo?

Acredito que uma mistura dos dois, assim como provavelmente a maioria dos seres humanos. Inclusive, eu mesmo. Eu não quero atribuir más ideias de pessoas ao fato de elas serem más ou corruptas, apesar de ser possível traçar a origem das suas ideias em fatores pessoais, como ocorre com qualquer um.

Se pegarmos Foucault, por exemplo, e isto é apenas uma teoria: o pai dele era um cirurgião e costumava acordar às 03 horas da manhã para salvar a vida de pessoas, e ele era de direita. Este era um tipo de humanidade prática que eu não acho que Foucault poderia ter igualado. Não acho que Foucault iria levantar alguma vez às 03 horas da manhã por causa de alguém. Esta é a minha teoria, pode ser absurda e não posso provar. Mas pode ser que isto tenha o levado a ver naquilo que aparentava ser uma atitude humanitária algo por baixo que é menos respeitável. Assim, o pai dele acordando às 03 horas da manhã para salvar alguém, na verdade, seria apenas um exercício de poder, com o fim de se fazer importante.

Qual a sua opinião sobre o livro Pensadores da Nova Esquerda, de Roger Scruton?

É eficaz, pois ele leva os pensadores a sério. Devo dizer que é admirável que ele tenha se dado ao trabalho de ler centenas de páginas de Habermas (risos). É algo que vai além do dever, é heroico. É absolutamente impressionante que ele tenha pinçado o pouco de sentido de milhares de páginas de verborragia. Eu não o faria. Meu amigo Myron Magnet costuma dizer que você não precisa comer um pacote inteiro de manteiga para saber que está rançosa, mas Scruton comeu todo o pacote, e ele ainda se esforçou para ser justo. Scruton passou por esta enorme pilha de verborragia e manteve sua sanidade. Isto é admirável.

Na sua obra Em Defesa do Preconceito você emprega ao termo “preconceito” um sentido diferente daquele usual, certo?

Imagine que você está andando por uma rua em uma noite escura e vê se aproximando um homem jovem, com determinado modo de andar. Você sente medo. Agora, você não sente se ver uma velha senhora caminhando em sua direção. Isto é preconceito. Você está pensando em estereótipos. Por óbvio, na maioria das vezes o jovem não fará nada com você. Mas, ainda assim, é muito mais provável que ele o ataque do que a idosa. Se não tivéssemos este tipo de ideias, estaríamos no mundo como bebês. Você não pode limpar sua mente destas preconcepções, é impossível fazê-lo. Qualquer um que alegue não ter preconceitos é um mentiroso. O importante é ser capaz de controlá-los e de adaptá-los em resposta às situações.

O problema em dizer “Eu não tenho nenhum preconceito” é que se está fazendo violência a algo que se sabe ser verdade. Eu poderia te dar diversos exemplos de preconceitos que tenho, mas que preciso mudar à luz da experiência. Tenho preconceito contra tatuagem. Mas não é possível que a tatuagem tenha hoje o mesmo significado que tinha quando eu era criança, ou até mesmo o de 20 ou 30 anos atrás, porque um terço da população agora é tatuada. Então, eu tenho que controlar o meu preconceito. Eu ainda o tenho, tenho plena consciência disto. Eu tenho uma oposição estética à tatuagem também, mas originalmente meu preconceito tem por base meu entendimento de que 99% dos criminosos britânicos brancos são tatuados, e não acredito que seja apenas coincidência.

Qual ambiente mais te influenciou? Sua escola, sua comunidade, a universidade?

O que mais me influenciou foi ser médico e também viajar fez uma grande diferença para mim. Existe um verso em Kipling, no qual ele diz: “what should he know of England, who only England know?” E isto é verdade, pois, como afirmou Dr. Johnson: todo julgamento é comparativo. É preciso comparar as coisas. E viajar foi uma forma de conseguir fazer comparações. Por exemplo, eu trabalhei na Tanzânia, que é um dos países mais pobres do mundo, e lá descobri que as pessoas eram extremamente educadas. Eu não tinha nenhuma espécie de medo delas. Eles não tinham nada, absolutamente nada, mas eram muito educados. Então isto me levou a pensar sobre os efeitos da pobreza e que ela não necessariamente torna as pessoas brutais e agressivas.

As pessoas costumam me perguntar também qual autor mais me influenciou. Mas tenho dificuldade para responder. Eu nunca fui discípulo de ninguém, talvez porque seja muito egoísta.

Mas você acredita ter sido mais influenciado pela literatura do que por intelectuais?

Acho que sim. Chequei a esta conclusão tarde, mas Skakespeare disse praticamente tudo que qualquer um poderia pensar. Não há quase nada que alguém tenha pensado que não esteja em Shakespeare. E o que é assombroso em sua obra é que não é apenas o exterior que ele revela, mas também do interior. Ele te faz sentir aquilo que os personagens estão realmente sentindo. Não conheço nada parecido com isso.

Pergunta final: em seu livro O Prazer de Pensar, pelo exemplo de um incêndio, você demonstra que a primeira edição de um livro vale mais do que as demais, apesar de possuir o mesmo conteúdo. De forma similar, se você tivesse que salvar apenas um livro da sua biblioteca em um incêndio, qual salvaria?

É uma escolha estranha, mas salvaria o livro Sozaboy, de um escritor nigeriano chamado Ken Saro-Wiwa. Eu costumava encontrá-lo na Nigéria e quando ele vinha a Londres. Sozaboy é uma narrativa feita através da visão de um soldado nigeriano semialfabetizado, que é recrutado para a guerra civil ocorrida na Nigéria nos anos 70. Ele é capturado e luta pelo outro lado, sem ter ideia do porquê todos estão lutando. É um livro maravilhoso, é uma grande obra contra guerras. Quando eu estava na Nigéria, Saro-Wiwa fez uma dedicatória para mim no livro. Ele era originário de uma pequena tribo na Nigéria, na qual se localiza boa parte do petróleo do país. E a política da Nigéria se resume a quem controla o petróleo, assim como na Venezuela. Então ele iniciou um movimento político e lembro-me de ter dito a ele para não se tornar político, pois ele era um bom escritor e a Nigéria precisava mais de escritores do que de políticos. Ele, porém, insistiu e me disse “eles vão me matar”. De fato, ele foi enforcado. Criaram história sobre ele e o executaram. Então, eu salvaria este livro.