Assegurando as condições para uma autêntica ecologia humana – por Erika Bachiochi

Filosofia | 21/03/2017 | | IFE BRASIL

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Imagem: "Morning mist on Lake Mapourika, New Zealand", por Richard Palmer.

Imagem: “Morning mist on Lake Mapourika, New Zealand”, por Richard Palmer.

 

A ecologia humana, conceito desenvolvido por sociólogos no começo do século passado e apropriado pelo Papa João Paulo II em sua aclamada Centesimus Annus, fornece uma lente iluminadora através da qual se pode entender a multifacetada crise cultural na qual nos encontramos atualmente.

Utilizando o termo como uma analogia, no âmbito da cultura, a crescentes preocupações com a ecologia natural, João Paulo II escreveu em 1991:

Embora as pessoas tenham razão em estar preocupadas …. com a preservação de habitats naturais … esforço insuficiente é feito para assegurar as condições morais para uma autêntica “ecologia humana”. Não apenas Deus deu a Terra ao homem, que deve usá-la com respeito ao propósito original pelo qual foi dada a ele, mas o homem também é um presente de Deus ao próprio homem. A pessoa deve, portanto, respeitar as estruturas naturais e morais com as quais foi agraciada”.

Mais recentemente, na Laudato Si’, o Papa Francisco reiterou a preocupação ecológica amplamente abordada por João Paulo II, que havia sido transmitida, poderíamos dizer, através do Papa Bento. Francisco escreve:

“A ecologia humana também implica outra profunda realidade: a relação entre a vida humana e a lei moral, que é inscrita em nossa natureza e é necessária para a criação de um ambiente mais digno. O Papa Bento falou de uma ‛ecologia do homem’ baseada no fato de que ‛o homem também tem uma natureza que ele precisa respeitar e que não pode manipular à vontade’ ”.

Para estes papas recentes, “a ecologia do homem” parece se aproximar do que teria sido classicamente descrito como lei natural: a ideia de que a pessoa humana possui uma natureza que precisa ser compreendida e fomentada para seu completo florescimento (eudaimonia, para os gregos; beatitude, para os cristãos). Mas as conotações modernas tanto de natureza quanto de lei são, sem uma grande desconstrução, fixas ou estáticas demais para representar o dinamismo da pessoa humana de forma autêntica. Em consequência, o conceito de lei natural atualmente é muito mal compreendido. Para a maioria, é quase incompreensível.

A ecologia humana, em contraste, permite que se reflita com menos obstáculos intelectuais sobre o propósito e o dinamismo da pessoa humana e de sua experiência de vida. Isto é, a ecologia humana evoca mais prontamente a realidade de que a pessoa humana é criada e, ainda assim, por meio de suas escolhas, cria a si mesma; de que é profundamente influenciada por e, por sua vez, influencia os outros; de que é condicionada pelo ambiente no qual se encontra, mas é capaz de transcendê-lo. A analogia com a ecologia natural é útil no clima filosófico atual porque implica interdependência de influências e atores, complexidade de causas e efeitos, ao mesmo tempo em que exige validação empírica e científica. Assim como podemos medir toxinas em nossos rios, podemos usar as ciências sociais para corroborar empiricamente os destrutivos “efeitos downstream” da pílula, da pornografia e da ausência paterna em mulheres, homens e crianças reais. Ao contrário da visão libertária prevalecente, a analogia ecológica também revela que os supostamente “inofensivos” atos de indivíduos isolados, quando adotados por grande parte da população, podem ter efeitos profundamente lesivos.

Protegendo nosso ecossistema natural e social

Tanto nosso ecossistema natural quanto o social são frágeis: eles precisam de proteção e de cultivo para prosperar. Como disse o Papa Francisco em novembro de 2014:

A crise na família produziu uma crise ecológica, pois ambientes sociais, como os ambientes naturais, precisam de proteção. E, apesar de a raça humana ter começado a entender a necessidade de combater as condições que ameaçam nossos ambientais naturais, nós fomos mais lentos para reconhecer que nossos frágeis ambientes sociais também estão sob ameaça”.

Assim como na impressionante afirmação da Laudato Si’ de que os hábitos de consumo decadentes do primeiro mundo estão lesando de forma desproporcional os pobres do mundo, dados sociológicos confirmam claramente que são os mais vulneráveis, os mais frágeis seres humanos que são mais ameaçados por – e menos preparados para se proteger de – um ambiente moral em processo de deterioração. Pode-se ver isto de forma mais clara com o agudo declínio do casamento entre os pobres, lesionando de forma desproporcional exatamente aquelas comunidades que mais necessitam da miríade de benefícios pessoais, sociais e econômicos que casamentos estáveis propiciam.

A ecologia humana, então, implicitamente pressupõe a existência da lei natural, mas pode ter uma melhor habilidade de captar as influências sociais dinâmicas que sustentam ou enfraquecem o respeito por esta lei – e é suscetível a medição empírica de uma forma que a lei natural em absoluto não é, o que a torna útil. Da Centesimus Annus:

O homem recebe de Deus sua dignidade essencial e com ela a capacidade de transcender toda a ordem social de modo a buscar a verdade e a bondade. Mas ele é também condicionado à estrutura social em que vive, pela educação que recebeu e por seu ambiente. Estes elementos podem tanto ajudar quanto impedir que ele viva de acordo com a verdade”.

Neste documento fundamental da Doutrina Social da Igreja Católica, então, João Paulo II estava exortando a criação de um ambiente social mais digno, de uma ecologia social merecedora da dignidade da pessoa humana.

Ecologia Social:

Quando João Paulo II usou o termo “ecologia humana” na Centesimus Annus, ele estava entrando em uma robusta conversação que já estava ocorrendo entre pensadores sociais. Desde o começo do último século, cientistas sociais estavam fazendo uso do termo para descrever a ideia da sociedade como um complexo organismo e para estudar os diversos modos pelos quais as circunstâncias influenciam a pessoa humana. O psicólogo russo-americano Urie Bronfenbrenner notavelmente escreveu em 1977 sobre uma “ecologia do desenvolvimento humano” na qual se busca entender o sujeito humano a partir de seu aninhado, variado e constantemente mutável arranjo de estruturas ambientais. Uma abordagem ecológica é, por natureza, interdisciplinar, buscando integrar perspectivas diversas para alcançar uma visão mais ampla.

Já nos anos 90, teóricos sociais de todo o espectro político estavam pensando ecologicamente sobre as interações dinâmicas entre as influências familiares, políticas, econômicas e sociais; e sobre como estes “sistemas mutuamente condicionantes” afetavam crianças, famílias e comunidades nos Estados Unidos. A analogia ecológica ajudou um grupo diverso de pensadores a diagnosticar (mesmo não concordando quanto às causas) a crescente deterioração das antes estáveis famílias e comunidades, o impacto deletério que isso estava tendo nas crianças e nos pobres da nação, e as consequências dessa desintegração cultural – ou ecológica – das instituições americanas. Em particular, comunitaristas como Mary Ann Glendon, Michael Sandel e Amitai Etzioni demonstraram preocupação com o fato de que as célebres e livres instituições políticas e econômicas americanas sofriam grande risco de minar suas próprias fundações em razão de uma erosão da “ecologia moral” – ou, conforme o termo de Robert Putnam, “capital social” – de que estas instituições livres precisavam para prosperar.

Naquele tempo, poucos negariam que os sistemas americanos de livre-mercado capitalista e a democracia constitucional se mostraram os melhores do mundo para garantir a liberdade individual, criando riqueza e oportunidades, e fornecendo o espaço necessário para a completa prosperidade humana. É por isso que João Paulo II, pela primeira vez na história da Igreja Católica, expressamente endossou estes sistemas na Centesimus Annus – ao menos quando são devidamente restringidos por uma robusta cultura moral. Nossa economia e nossas instituições políticas livres, afinal, não dizem nada sobre como devemos usar nossa liberdade e riqueza, ou como devemos transmitir os hábitos da mente e do coração que são necessários para a nossa autonomia e para uma economia justa e humana.

Assim, como a Centesimus Annus proclamou de forma firme, a busca capitalista por ganho material, sem ser compensada com valores que ensinam indivíduos a usar sua liberdade e sua riqueza para o bem comum, vai influenciar e, em última instância, deteriorar a cultura, dando origem ao hedonismo, ao individualismo e ao consumismo. De forma similar, sem um forte edifício cultural promovendo a verdade, o bem e a beleza, a tendência da nossa democracia liberal de dar voz igual a todas as ideias corroerá a cultura, levando à relativização de todos os estilos de vida, à tirania da opinião popular, a uma igualdade que demanda a eliminação de todas as diferenças (incluindo as biológicas), e a ao solapamento da religião, a força mais vital na cultura.

Quão próximo da realidade tudo isso soa para nós hoje.

Liberdade, virtude e dependência humana:

Instituições livres fornecem uma importante pré-condição para um ambiente moral ou uma ecologia social robustos: a liberdade. Mas a liberdade – seja a política, econômica, pessoal ou até mesmo religiosa – nunca pode ser seu próprio fim. Sem desconsiderar a importância da liberdade para a ecologia humana, é preciso dizer que a liberdade é meramente instrumental. A liberdade está a serviço da ecologia humana e da prosperidade humana. Mas este instrumento, este servo – a liberdade – também tem suas próprias pré-condições, as quais não pode prover para si. O fim verdadeiro e a pré-condição necessária para a liberdade são os mesmos: a virtude.

Como tem defendido Mary Ann Glendon, professora de Direito de Harvard, ao longo de seu trabalho influente e extremamente preciso, os fundadores dos Estados Unidos elaboraram um extraordinário sistema de instituições livres, mas não asseguraram as condições para essa liberdade. Isto é, apesar de terem se protegido contra interesses pessoais desenfreados através de um sistema de freios e contrapesos, e de compreenderem que um governo autônomo exige homens particularmente virtuosos para sustentá-lo, Glendon sugere que eles pareciam presumir que os americanos continuariam a ser formados nos tipos de ambientes sociais que iriam produzir estas virtudes – ambientes como as profundamente religiosas, firmemente coesas, autogovernáveis colônias que estavam no pano de fundo, e forneceram parte do ímpeto, da Convenção Constitucional. Glendon escreve:

Se a história nos ensina algo, é que uma democracia liberal não é apenas um presente; que parecem haver condições que são mais ou menos favoráveis para sua manutenção e que estas condições envolvem consideravelmente caráter … Caráter, por sua vez, também tem condições – residindo em grau relevante em criação e educação. Assim, é difícil deixar de reconhecer a importância política da família”.

Sem uma cidadania virtuosa, memoravelmente nos recorda John Adams, a democracia sempre comete suicídio. Liberdade sem virtude parece inclinada à sua própria autodestruição, como estamos testemunhando em nosso país atualmente. Mas, é claro, a virtude não pode ser tomada como certa. Precisa ser ensinada, inculcada, praticada e estimada em todas as gerações, em todas as famílias e em todos os corações humanos. Esta é uma missão complicada– e uma luta real para qualquer um que a leve a sério – mas é este confronto interior que foi passado de geração em geração até recentemente.

De fato, ao longo das últimas décadas, nós testemunhamos a Suprema Corte, particularmente, utilizar argumentos fundados na autonomia pessoal (ou na liberdade mal compreendida como seu próprio fim) para enfraquecer exatamente aquelas instituições – maternidade, paternidade, casamento e outras estruturas mediadoras – mais aptas a sustentar a ecologia social, para formar as pessoas ao correto uso de sua liberdade. A longa tradição americana de autodeterminação se transformou ao longo dos anos em uma espécie de invenção pessoal constitucionalizada sem impedimentos, na liberdade de me definir como eu quiser, livre de qualquer alegação contrária ou restrição sobre mim.

E aqui reside o problema, talvez evidenciado de forma mais clara pelas lentes da ecologia. O indivíduo autodefinidor, autossuficiente e radicalmente autônomo localizado no centro deste paradigma moderno simplesmente não existe. Desde o momento em que cada um surge, somos encarnados, frágeis e integrados em relações, aninhados em nosso ambiente social. Nós somos animais sociais, ou políticos como afirma Aristóteles. E como tais, nossa liberdade é limitada pela nossa dependência em relação a outros e, conforme nos tornamos maduros, pela dependência de outros a nós. A vulnerabilidade e a dependência humanas são os mais básicos e duradouros fatos da existência humana, da identidade humana, antes mesmo do pecado. Nós seres humanos prosperamos ou falhamos dentro do contexto dessa interdependência, nunca de forma isolada. Como nos lembra o filósofo Alasdair MacIntrye, a independência responsável adulta pela qual nós justamente lutamos requer cuidado prévio e sacrifício de outros, de mães e pais, de famílias, de comunidades; nós não obtemos as virtudes necessárias para a independência, para o bom uso de nossa liberdade, para prosperar por conta própria. Nós dependemos que outros nos ensinem essas virtudes – e que as moldem para nós.

E, assim, se buscamos assegurar (ou, atualmente, deveríamos dizer recriar) as condições morais para uma autêntica ecologia humana, uma cultura merecedora da dignidade do ser humano, uma que encoraje em vez de desencorajar os deveres que temos perante Deus e uns aos outros, devemos levar muito mais a sério – muito mais a sério – o cuidado, a criação e a cultivação dos jovens na virtude, e também dos organismos sociais que apoiam essa cultivação. Devemos focar, como João Paulo II nos diz na Centesimus Annus, naquela “primeira e fundamental estrutura para a ‘ecologia humana’, a família” e em tudo aquilo que apoia sua crítica função.

No próximo artigo, eu oferecerei três sugestões de pontos de partida.

 

Erika Bachiochi – Visiting Fellow no Ethics & Public Policy Center do Witherspoon Institute (Princenton).

Artigo originalmente publicado no site Public Discourse: Ethics, Law and the Common Good (www.thepublicdiscourse.com). Tradução e publicação autorizadas. Março de 2017.