Uma droga de argumento

Opinião Pública | 22/03/2017 | | IFE CAMPINAS

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O STF está em vias de decidir sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. É uma ideia, com o perdão do trocadilho, bem opiácea, por produzir, nas mentes, uma expectativa de efeito narcótico, em regra, tranquilizante, já que seria a óbvia solução diante dos problemas sociais envolvidos no consumo de narcóticos, como a violência gerada pelo tráfico, a redução de danos para a sociedade e o enfrentamento do problema como uma questão de saúde pública.

Há dois argumentos-chave, um filosófico e outro pragmático. Hoje, ficaremos no primeiro: o Direito Penal não deve ser ativado nos casos em que uma conduta pessoal não interfira nos direitos alheios. É uma espécie de progressão da mentalidade reflexiva. Primeiro, o impensável torna-se pensável e, subitamente, deixa a heterodoxia e se transforma em ortodoxia, cuja verdade surge tão elementar que, a partir de então, ninguém mais se lembra que já se pensou de forma diferente.

O desejo humano de tomar substâncias que alteram a mente é tão velho quanto a própria sociedade, à semelhança das tentativas de regulação de seu consumo. Mas nenhuma época humana teve de lidar com um duplo dilema: a disponibilidade de inúmeras drogas diferentes e a demanda crescente de um conjunto de cidadãos desejosos do exercício de seu “direito” de gozar de seus próprios prazeres à sua maneira.

Numa sociedade livre, a lei deveria permitir que os indivíduos pudessem fazer o que lhes conviessem, incluídos desejos e apetites, contanto que assumissem as consequências de suas próprias escolhas e não causassem danos diretos aos outros. A ideia, que remonta a Mill, é muito atraente na teoria.

Na prática, a teoria, como dizia Goethe, é cinza e, verde, a árvore da vida: é muito difícil garantir que assumamos todas as consequências de nossos atos, ainda mais quando o consumo de drogas tem o efeito imediato de reduzir a liberdade individual e, como resultado, mitigar o senso de responsabilidade.

Essa ótica libertária impede a sociedade de conceber qualquer código moral. No limite, seria como se não tivéssemos nada em comum, mas nosso “contrato social” de não interferência mútua permaneceria, enquanto buscássemos nossos prazeres privados. Você acende seu cigarro aí e eu me injeto aqui.

Em minha experiência profissional, a demanda recreativa de drogas atinge não apenas o usuário. Sempre leva junto o cônjuge, filhos, colegas de trabalho, amigos e parentes. Ninguém, exceto um eremita, é uma ilha. Estou saturado de mandar internar judicialmente drogadictos – que começaram como inocentes usuários – a pedido, justamente, daquelas pessoas que, segundo os defensores da descriminalização, estariam imunes à conduta daqueles.

Por isso, a aplicação do princípio de Mill às ações humanas em geral beira à inutilidade, quanto mais para justificar a descriminalização do porte de drogas para uso privado. Eis o erro de nosso filósofo utilitarista: os assuntos humanos – sobretudo no campo penal – não podem ser decididos por um apelo a uma regra infalível, expressa em poucas palavras, cuja mera aplicação possa decidir corretamente todos os casos. Fundamentalismo filosófico não é preferível à sua variante religiosa.

Todos valorizamos a liberdade, mas também a ordem; às vezes, sacrificamos a liberdade em favor da ordem e, outras vezes, a ordem em prol da liberdade. Uma vez retirado o véu, nesse caso, da proibição das drogas, será difícil de restaurá-lo, mesmo quando a liberdade recém descoberta revelar-se ter sido socialmente desastrosa.

Mill, anos após, viu as limitações de seu próprio princípio na ação social, quando negou que todos os prazeres tinham igual significado para a existência humana: era melhor, disse ele, ser um Sócrates descontente a um tolo satisfeito. Assim, nosso pensador inglês concluiu que nem todas as liberdades são valorativamente iguais e nem todas as limitações são impeditivas de seu exercício.

Com a palavra os demais ministros que ainda não apresentaram seus votos. Espero que se recordem que caprichos pessoais não são fontes do direito e que o homem mais livre não é aquele que obedece servilmente a seus apetites, porque a premissa da descriminalização defende o contrário, o que a torna, em outro trocadilho, uma droga de argumento.

E, caso se esqueçam, lembrem-se que chancelarão outro parasitismo social. Já descemos ladeira abaixo nesse tema da descriminalização. Mas não precisamos chegar ao fim da rua, ainda mais quando essa rua parece nos levar para um beco sem saída. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/03/2017, Página A-2, Opinião.