Leonardo Padura. “ O Homem que amava os cachorros”. Editora Boitempo. 2013. 600 pgs.
(“El hombre que amaba a los perros”. Maxi Tusquets Ed. Barcelona 2014. 765 pgs.)
Tinham-me recomendado o livro; várias vezes, e de fontes confiáveis. Mas o formato digital da obra do premiado escritor cubano, não acabava de me convencer. Menos ainda por tratar-se da versão portuguesa. Quando consigo ler os livros na língua original -o que muitas vezes não é possível para quem não é poliglota- declino as traduções. Anotei entre as pendências e na primeira ocasião que tive, entrei num sebo em Madrid. “Os livros de Padura duram pouco aqui. Vendem-se mal entram”. O comentário do livreiro bastou para me dirigir diretamente à Casa do Livro, pois o tinha localizado previamente no catálogo. Não o encontrei entre os autores de língua espanhola e perguntei ao atendente. Ele certificou-se de que efetivamente estava na relação e foi descobri-lo numa prateleira dedicada às “Narrativas Negras”, enquanto eu me perguntava o motivo de tal classificação. Uma ficção “noir”? Eu tinha entendido que se tratava de um episódio histórico. Curiosidade que demorei pouco em satisfazer.
No final do livro, enquanto o autor prepara os agradecimentos, adverte que se trata de uma novela, apesar da agoniante presença da História em cada uma das suas páginas. E de fato, este livro singular e admirável, é um romance histórico com fundamento absoluto na realidade. Uma história que Ivan, o aprendiz de escritor, relata a partir dos encontros com uma personagem que, do momento em que o encontrou, batizou-o como o homem que amava os cachorros. Uma narrativa que oscila entre os três personagens principais que conduzem a sinfonia histórica romanceada. Mas, repito, um romance que te congela: não apenas pelo frio soviético, mas pela verossimilitude dos fatos e do peso histórico, que o romance, povoado de inúmeros personagens coadjuvantes, torna-o ainda mais estarrecedor.
De um lado, Leon Trotsky, o intelectual da revolução russa, companheiro de Lenin, e depois dissidente dos rumos que a revolução tomou, comandada por Stalin. Aquele Trotsky peregrino nos diversos exílios, até ir parar no México. Um homem em quem “unicamente seu orgulho, seu otimismo histórico e sua responsabilidade lhe faziam persistir nas suas ideias: depois de trinta anos de luta revolucionária era evidente que aquele homem tinha ficado sozinho, vendo como à sua volta o mundo quebrava-se sob o peso da reação, dos totalitarismos, da mentira e da ameaça de uma guerra devastadora”.
Desfilam personagens da revolução russa caídos em desgraça, aqueles que se exilaram e os que não tiveram coragem de fazê-lo. E os que sendo militantes exemplares, como Maiakovski, tiveram de se suicidar para voltar a ser poetas. E no centro de todo este expurgo de dissidentes, a figura triste e cruel de Stalin, que move os fios do destino de uns e outros. Uma personagem de quem, sem entrar diretamente em cena, se faz uma descrição que produz calafrios: “Stalin tinha demostrado ser um verdadeiro gênio do conchavo: a diligente eliminação de qualquer oposição dentro do Partido converteu-se na sua arma política mais eficaz para esfumar a democracia e, depois, instalar o terror e levar a cabo as purgas que lhe davam o poder absoluto (…) Entendi que a crueldade de Stalin não obedecia somente à necessidade política ou ao desejo do poder: também se devia ao seu ódio aos homens; ou pior, ao seu ódio à memória dos homens que o tinham ajudado a criar suas mentiras, a prostituir e reescrever a história (…) Quantos mataria Stalin? Enquanto ficasse um bolchevique com memória do passado, os verdugos teriam trabalho. A guerra a morte não era contra a oposição, mas contra a história”.
Ramón Mercader é o segundo protagonista deste romance histórico. O comunista espanhol, que militou junto das forças republicanas na guerra civil espanhola, e foi sendo preparado para o golpe final: a eliminação de Trotsky, como parte da purificação da história soviética. A descrição da personagem, e dos coadjuvantes satélites da figura de Ramón, é magnífica e tremenda. Com destaque para Caridad, a mãe de Ramón, uma aristocrata convertida ao comunismo, que lhe faz entender -não como mãe, mas como voz de comando- que o ódio é uma doença imparável, incutindo-lhe a sólida convicção de que a impiedade é necessária para alcançar a vitória. E que a vida de um, dez, cem, mil homens podem e devem ser devoradas se a transformação social assim o reclama para alcançar seus fins. O sacrifício individual é muitas vezes a lenha que se queima na fogueira da Revolução.
Os mentores que vão formatando Ramón no seu ódio, são personagens que gritam com realismo fanático. “Os burgueses utilizam muito bem o medo, e nós tivemos que aprender a exercitá-lo: sem medo não se pode governar nem empurrar um pais para o futuro (…) Isso permite ser ímpios, desfazer-nos de toda compaixão. É melhor que nem tu nem eu tenhamos um nome verdadeiro, e esquecer que alguma vez tivemos um. Nomina odiosa sunt. Importa o sonho, não o homem, e ainda menos o nome (..) A verdade e a mentira são muito relativas, e neste trabalho que fazemos não há fronteiras entre uma e outra. Esta é uma guerra escura e a única verdade que importa é cumprir as ordens. É igual se para chegar a esse momento temos de subir numa montanha de mentiras ou de verdades”.
São os mesmos que, passados os anos, tornam a gritar de novo, mas agora com um realismo que tem como nota predominante a decepção completa e o medo. “Nesses anos atravessou-se a ponte que ia do entusiasmo até a decepção de comprovar que o grande sonho estava com uma doença mortal e que em seu nome tinham se cometido genocídios. Essa foi a perspectiva que fez entrever aquilo que, durante anos, tinha ficado na penumbra, e agora surgia com perfil definitivo. Foram os tempos em que veio à luz o grande desencanto(..) assim tinha se pervertido a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance das suas mãos, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um castigo divino do que obra de homens bêbados de poder, ânsias de controle, e pretensões de transcendência histórica (..) O sonho teórico e atrativo da igualdade possível tinha se trocado no maior pesadelo autoritário da história(..) As promessas que tinham nos alimentado na nossa juventude e nos encheram de fé, romanticismo participativo e espírito de sacrifício fizeram-se água e sal enquanto nos rodeava a pobreza, o cansaço, as decepções, os fracassos, as fugas e os desgarros. Os que decidiam por nós, decidiram que um pouco de democracia estava bem, mas não demais…E no final, esqueceram até desse pouco que nos correspondia, e toda aquela coisa bonita converteu-se numa delegacia de polícia dedicada a proteger o poder.”
A esse lamento que se arrasta pelas páginas do livro como pano de fundo, soma-se a voz do terceiro protagonista, Ivan, o escritor desencantado, um cubano -o próprio Padura? – que funciona como âncora do romance, dando entrada, ora a Trotsky e sua entourage, ora a Ramon y seus compinchas. Ivan, que também ama cachorros, como Trotsky, como Mercader, como o próprio homem misterioso que passeia pela praia com dois galgos russos, e lhe confia seu segredo. O escritor aponta nos estertores do livro que esta história “não é história de Ivan, mas que também é, como é a nossa, e a de tantas pessoas que não pediram para estar nela, mas não conseguiram de ela escapar, e irão ao utópico lugar onde talvez saibam o que fazer com a verdade, com a confiança e com a compaixão. ”
Enquanto lia este magnífico livro, lembrei-me de um comentário que meu avô -espanhol que sofreu a guerra civil- costumava fazer. “Hitler nunca estudou história, esse foi o seu erro. Cometeu a mesma falta estratégica que Napoleão: dividiu as frentes, quis atacar os russos no seu terreno e se deu mal”. Depois eu pensei que nem estudou história, nem leu Guerra e Paz, onde está tudo contado. E lembrei do meu avô, porque quando hoje abrimos os jornais e nos encontramos com essa enxurrada de contínuas decepções -das utopias militantes que prometem o paraíso na terra através da revolução e se revelam descaradas farsas- seria bom lembrar que esse filme já foi visto e revisto. E também escrito, como nesta obra marcante de Padura, que torna diáfana a condição humana, e a ganância que se disfarça de solidariedade, sendo apenas egoísmo espúrio dos próprios interesses. Talvez precisamos de menos redes sociais com milhares de informações pipocando, e mais leitura para entender o mundo. Leituras boas, substanciais. Por exemplo, esta que nos ocupa.
Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).
Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/08/27/leonardo-padura-o-homem-que-amava-os-cachorros/#more-2692