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Lançamento do 5º vol. de "História das Idéias Políticas" (Eric Voegelin)

Filosofia | 19/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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É Realizações Editora lança Religião e a Ascensão da Modernidadede Eric Voegelin

Chega às livrarias o quinto volume da série História das Ideias Políticas.

Religião e a Ascensão da Modernidade é uma obra de suma importância, não apenas por seu tratamento a pensadores e doutrinas influentes no século XVI, mas também pelo exame pormenorizado dessas experiências que formaram o panorama moderno.

Ao examinar a emergência da modernidade no âmbito dos debates filosóficos e políticos do século XVI, Religião e a Ascensão da Modernidade, volume V de História das Ideias Políticas, retoma a análise da “grande confusão” apresentada no volume IV da mesma coleção. Trata-se de um período controverso e revolucionário, que abrange uma gama de acontecimentos desencadeados pelas Noventa e Cinco Teses de Lutero.

Dos pensadores mais conhecidos aos menos estudados, esse volume apresenta figuras como Calvino, Althusius, Hooker, Bracciolini, Savonarola, Copérnico, Tycho de Brahe e Giordano Bruno. O autor dedica atenção considerável a Jean Bodin, apresentando-o como profeta de uma nova religião, em meio a desordem civilizacional da era pós-cristã. O presente volume foca em temas tradicionais como a monarquia, a teoria da guerra justa e a filosofia do direito, mas também investiga questões da astrologia, cosmologia e matemática.

Apesar da complexidade da época, a análise luminosa de Voegelin esclarece sua importância e sugere linhas de mudanças que convergem num ponto no futuro: a compreensão cristã medieval, de um cosmos fechado, criado divinamente, estava sendo substituída por uma nova forma de consciência humana moderna, que pressupunha o homem como a origem inerente do sentido do universo.

Sobre o autor

Eric Voegelin (1901-1985) foi um dos filósofos mais originais e influentes de nosso tempo. Nascido em Colônia, Alemanha, estudou na Universidade de Viena, onde depois tornou-se professor de Ciência Política na Faculdade de Direito. Em 1938, ele e sua esposa, fugindo de Hitler, emigraram para os Estados Unidos. Tornaram-se cidadãos americanos em 1944. Voegelin passou a maior parte de sua carreira na Universidade do Estado da Louisiana, na Universidade de Munique e no Instituto Hoover, na Universidade Stanford. Publicou muitos livros e mais de cem artigos.

Título: Religião e a Ascensão da Modernidade – História das Ideias Políticas V

Autor: Eric Voegelin

Tradução: Elpídio Mário Dantas Fonseca

Editora: É Realizações Editora

Preço: R$ 79,90

Nº de páginas: 368

 Para adquirir clique aqui.

Fonte: imprensa@erealizacoes.com.br

A sacralização da política (por Cesar Ranquetat Júnior)

Política e Sociologia | 19/11/2015 | | IFE CAMPINAS

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maquiavel

Tradicionalmente a política foi concebida como um modo de ação que objetivava a organização da vida social. Era por meio da ação política que se buscava a articulação e a mobilização das vontades individuais tendo como fim último a realização do bem comum. Para os filósofos clássicos, Aristóteles e Platão, e medievais como Santo Tomás de Aquino, a política visava, sobretudo, a constituição de uma ordem social justa e relativamente harmônica.

A comunidade politicamente ordenada, por sua vez, deveria possibilitar o surgimento de uma atmosfera cultural e institucional que estimulasse o desenvolvimento e florescimento das virtudes morais e intelectuais. A política, para os antigos e medievais, tinha uma caráter intrinsecamente ético. O estadista, o legislador e o cidadão tinham a incumbência de se portar de maneira correta, honesta e virtuosa. Como lembra Eric Voegelin, eram homens maduros que atingiram a plena estatura humana.

Na perspectiva clássica a política, além de uma atividade prática, era vista,  como uma ciência, uma virtude e uma forma de arte. Uma ciência prática relacionada com as decisões e ações humanas na vida pública e social. A prudência era a virtude central da atividade política. Esta, fundamentalmente entendida como a reta razão no agir humano, como hábito de agir bem, de maneira equilibrada, realista, razoável e com bom senso. Como arte era vista como um modo de agir sobre as vontades individuais tendo em vista a realização de ideais e objetivos comuns e coletivos. Em suma, a política visava à realização da “boa vida”, da “boa sociedade”, ou seja, a ordenação da comunidade de acordo com normas, regras e princípios morais. Cabia à atividade política a proteção e a custódia do modo de vida de um povo, de suas tradições, de sua religião e de seus valores morais. A política deveria conservar o ethos de uma coletividade, seus costumes e hábitos.

Contudo, a partir do século XVI e XVII, a perspectiva clássica acerca da política perde força e vigor. Emerge a noção da atividade política divorciada de princípios morais, uma política amoral. Maquiavel e Hobbes são os grandes artífices da concepção moderna da política. Com o advento da modernidade a política torna-se mera técnica de poder. O ideal clássico da atividade política regida por homens maduros, sensatos e prudentes esboroa-se. Em seu lugar surge a imagem do “príncipe maquiavélico” capaz de manter-se ou alcançar o poder a todo custo. A vilania, a astúcia, o embuste e a dissimulação são armas usadas pelo governante para levar a cabo seu projeto de poder. A par da desvinculação da política de princípios morais, outro fenômeno que ocorre na modernidade é a absolutização da política

Se, para a perspectiva clássica, a política era concebida como uma das múltiplas dimensões da vida humana, na modernidade a política é sacralizada. De uma das várias esferas da vida social, ela é transformada no centro ordenador da vida humana que tudo abarca. De meio e instrumento para busca da ordem social, ela transmuta-se em um fim em si mesmo, tudo é politizado e colonizado por interesses de ordem política. A absolutização da política na modernidade tem, evidentemente, um caráter patológico. É ela a fonte de todos os utopismos, dogmatismos, totalitarismos e maniqueísmos que marcaram os últimos séculos da história humana.

A sacralização e absolutização da política acabam por instrumentalizar os variados campos da vida social. A educação, a ciência, a cultura, a arte e a religião tornam-se servas do poder político, perdendo sua autonomia e independência. Além disso, o “messianismo” político moderno – conforme definição do historiador Jacob Talmon – parte de esquemas doutrinários abstratos e apriorísticos, de uma visão dogmática, racionalista e uniformizante que violenta a complexidade multifacetada da realidade social: “Poderia ser chamado messianismo político, no sentido de que postula esquemas de realidades perfeitas, preordenadas e harmoniosas, até os quais os homens são levados irremisivelmente […] reconhece um só plano da existência: o político. Estende o campo da política até abarcar toda a existência humana.”

O messianismo político moderno anseia uma mutação radical da natureza humana e da vida social. Almeja obstinadamente a construção de uma sociedade ideal, perfeita, sem tensões e desequilíbrios. Enfim, ambiciona,  por meio de um amplo processo de planejamento e engenharia social,  a realização do paraíso na terra.

Conforme o teórico político Michael Oakeshott, trata-se da percepção moderna e progressista da “política de fé”, da crença nos poderes demiúrgicos e alquímicos da ação política. A fé na política, a transformação da política num modo de crença, como uma espécie de panacéia universal está intimamente relacionada com as ideologias políticas surgidas na modernidade. Mais ainda, é uma expressão categórica da mentalidade ideológica que pervade e alastra-se na cultura ocidental nos últimos quatro séculos.

De acordo com o filosofo  Juan Antonio Widow, a mentalidade ideológica dominante na modernidade caracteriza-se por um tipo particular de discurso que se caracteriza pela  promessa de uma realidade perfeita a realizar-se num futuro indeterminado. Por outro lado, este tipo de discurso ideológico lança uma série de ameaças e advertências de feições terríficas contra aqueles que não aceitam os ideais certos, infalíveis e dogmáticos defendidos com contumácia pelos “iniciados”, pela elite de iluminados portadores da doutrina política salvífica. Ainda, a linguagem ideológica é um modo de exortação dirigida a uma coletividade indeterminada, uma proclamação de ideais abstratos e, também, uma forma de imposição arbitrária e despótica, dirigida ao sentimento e a reação emocional.

A linguagem da ideologia visa engendrar padrões de comportamento e conduta, mobilizando as massas, as confortando e criando nelas um sentido de identidade grupal através dos encantos ilusórios de um mito político. As ideologias políticas modernas configuram-se, até certo ponto, como sucedâneos das religiões tradicionais.

O messianismo ideológico moderno contrasta formidavelmente com a perspectiva clássica da política, pois, com assevera Leo Strauss, esta é “[…] livre de todo fanatismo porque sabe que o mal não pode ser erradicado e, portanto, que as expectativas da política devem ser moderadas. O espírito que a anima pode ser descrito como serenidade ou sublime sobriedade”.

Enquanto que para os antigos e medievais o conjunto dos valores morais e religiosos tradicionais de uma coletividade precisavam ser custodiados pela política, no ativismo político moderno de caráter messiânico busca-se a total transmutação dos valores de uma sociedade com a finalidade de construir uma nova ordem social e um novo homem liberto de todas as peias e limitações impostas pelas tradições religiosas e morais de uma dada comunidade.

Diante do exposto, parece-me evidente que devemos nos precaver e estarmos atentos às esperanças infundadas de redenção por meio da atividade política, bem como através do ativismo e voluntarismo impensado e irracional das massas, muitas vezes insufladas pelos demagogos e tiranos de plantão, sedentos de poder.

 

Cesar Ranquetat Júnior é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor de Ciências Humanas na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)/Campus Itaqui

Publicado originalmente na Revista Vila Nova: http://revistavilanova.com/a-sacralizacao-da-politica/

Eric Voegelin e a coragem da filosofia – por Martim Vasques da Cunha

Filosofia | 12/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Eric Voegelin ainda é um filósofo pouco conhecido nas universidades brasileiras e também em nossa cultura, mas este panorama felizmente está mudando. Talvez, os mais velhos, reconheçam este nome pela coleção “amarelinha” da UnB dos anos 80-90, denominada Pensamento Político, e cujo volume 12 era a tradução de uma das obras importantes do filósofo, A Nova Ciência da Política (“The New Science of Politics”, 1953), que lhe rendeu uma reportagem na revista americana Time e fama no exterior. Mas também não é tarde para colocá-lo em pauta e, mais do que isso, em nossa mesa de estudo, pois há razões suficientes para isso, como se verá no texto que segue. Além disso, publicamos o texto de Martim Vasques da Cunha aqui porque já passou da hora do filósofo-germano americano ficar apenas nas prateleiras das livrarias brasileiras, uma vez que, graças a um esforço editorial notável, o Brasil já conta com uma lista de mais de dez títulos traduzidos dele ou sobre ele, que colocamos ao final, de modo que Voegelin agora está bem mais acessível ao público de língua portuguesa.

 

Eric Voegelin e a coragem da filosofia**

Por Martim Vasques da Cunha

The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

W.B. Yeats, “The Second Coming

Conta-se que o filósofo grego Anaxágoras caminhava por uma estrada quando encontrou um homem agonizante. Este lamentou o fato de estar distante de sua pátria na hora da morte. Para tranqüilizá-lo, Anaxágoras disse-lhe: “Não se preocupe, meu caro. A descida ao inferno é a mesma de qualquer lugar”…

A historieta, dura – embora não tanto: lembremo-nos que o Hades grego não tem o mesmo peso que o inferno tem para nós, o de uma rejeição eterna e irrevogável do real -, alude à coragem que todos temos de ter se queremos conhecer a realidade.

Antes de mais nada, porém, o que é essa tal “realidade”? Não tenho a pretensão de responder aqui a esta pergunta, mas, para ir à raiz do problema, basta que nos perguntemos: O que entendemos por realidade? Como a compreendemos? Esse foi, em todos os tempos, um problema constante, que só pode encontrar alguma solução se o homem der ouvidos a esse fundo insubornável do ser de que fala Ortega y Gasset, ao mais íntimo dos seus pensamentos naquele momento em que enfrenta o seu reflexo no espelho e tenta reconhecer a própria face.

É daí que me dirijo a você, leitor. Não sou filósofo, e muito menos um condutor de homens. Sou, no máximo, um cidadão que, por uma comichão na consciência, tenta observar as coisas como são e por isso chegou a algumas conclusões perturbadoras. Por isso, gostaria de que me lesse, não como quem traz respostas para todos os problemas, mas apenas como alguém que reflete sobre o que todos sabem, mas talvez tenham medo de dizer. E aqui procurarei que essa voz não seja apenas minha; através dela, queria transmitir a de outra pessoa, a do homem que tentarei apresentar aqui: Eric Voegelin.

Um filósofo para uma seleta minoria

Voegelin nasceu em Colônia, na Alemanha, a 3 de janeiro de 1901, e faleceu em Stanford, na Califórnia, a 19 de janeiro de 1985. É um dos maiores filósofos do século XX, mas permanece ignorado em boa parte dos meios acadêmicos nacionais. Por quê? Bem, na verdade, não há mistério nisso: é um autor difícil por ser duro como poucos, rigoroso como um verdadeiro filósofo deve ser e, como se não bastasse, escreve com uma facilidade que desnorteia os que pensam que a filosofia deve ser transmitida como um código secreto para iniciados. Além disso, não brinca com as coisas sérias da vida.

Pelos locais de nascimento e morte, já percebemos que não morreu na terra natal. Em 1938, teve de fugir de Viena, onde tinha estudado e depois começado a carreira universitária, devido ao Anschluss, a anexação da Áustria pela Alemanha governada pelo Partido Nacional-Socialistas dos Trabalhadores. Nessa altura, era já persona non grata para os nazistas: em 1933, quando eles haviam chegado ao poder, publicara dois estudos que criticavam as raízes ideológicas do partido –Raça e Estado e O Estado autoritário.

Em Viena, tinha sido discípulo de Hans Kelsen, o filósofo do Direito positivista que, ironicamente – porque as suas teorias serviram para fundamentar doutrinalmente o sistema legal nazista – , também tivera de fugir por ser de ascendência judaica. Voegelin não era judeu nem socialista, e também não tinha a intenção de ser um opositor político do nazismo; era contrário a qualquer ideologia por motivos estritamente intelectuais e espirituais, pois num momento em que mais ninguém tinha coragem de admiti-lo, já sabia que era insustentável ser nazista para qualquer um que quisesse manter um mínimo de honestidade moral.

Depois de uma breve passagem pela Suíça, chegou aos Estados Unidos, onde recomeçou a carreira acadêmica como filósofo, fixando-se na Universidade de Louisiana, em Baton Rouge. Era um fim de mundo acadêmico, convenhamos, mas permitiu-lhe preparar-se durante vinte anos para o trabalho de toda a vida – desmascarar o mecanismo que permite às ideologias políticas corromper uma nação inteira.

Ali começou por escreveu um tratado de 3.200 páginas sobre a História das idéias políticas, que abandonou e que só viria a ser publicado postumamente. A seguir, dedicou-se a pesquisar os símbolos religiosos de Israel e da filosofia grega, e publicou parte dos resultados deste trabalho no livro A nova ciência da política, de 1953, que lhe valeu uma reportagem na Time e o transformou em um nome celebrado nas universidades americanas. Mesmo assim, Voegelin não se acomodou sobre os louros, mas começou a redação do grande tratado Ordem e História, iniciado em 1955 e só terminado no final da vida.

Contudo, em 1958, treze anos depois do fim da Segunda Guerra, suas atividades acadêmicas nos Estados Unidos foram interrompidas quando a Ludwig-Maximilian Universität de Munique o convidou a assumir a cátedra de ciências políticas, que tinha sido a de Max Weber e estava vaga havia vinte anos. Ali, Voegelin acrescentou um trabalho administrativo às responsabilidades acadêmicas, fundando o Instituto de Ciência Política. Por fim, em 1969, voltou para os Estados Unidos, desta vez para trabalhar em Stanford, onde permaneceria até a morte.

“Dominar” o passado?

Voegelin aceitou o desafio de voltar para a Alemanha – apesar da posição de destaque no meio acadêmico conquistada a duras penas –
por um motivo simples: era a oportunidade de, vinte anos depois, acertar as contas com os fantasmas do nazismo.

Quando chegou, o país estava em pleno processo de “desnazificação”. Oficialmente, tratava-se uma “condenação do passado nazista” feita pelo povo e pelo governo de Konrad Adenauer, que girava em torno da noção de culpacoletiva. O termo soava bem num país ocupado por quatro potências ocidentais e dividido por um muro, mas realmente “desnazificava” o país? Essa “revisão” do passado assegurava uma mudança real para o presente e o futuro?

Voegelin responderá decididamente que não. Em 1964, deu uma série de palestras sob o título de Hitler e os alemães que foram um enorme sucesso de público.[1] Conforme o filósofo tinha pretendido, esse público estava composto na sua maioria por estudantes, que eram o seu alvo preferencial por já correrem o risco de perder a noção do que fora viver nos tempos de Hitler. E as perguntas que lhes fez não diziam respeito a pretensas culpas coletivas, mas atingiam aquele fundo insubornável do ser individual: como fora possível que semelhante corrupção espiritual tivesse atingido todos os níveis da sociedade, da política à intelectualidade, do mundo dos negócios à moral? E essa corrupção não continuaria a atuar na mente da jovem geração, mesmo vinte anos depois do desaparecimento do nazismo?

De acordo com a retórica da culpa coletiva, todos os alemães seriam culpados pelo nazismo. Que sentido fazia isso? Os membros do partido teriam a mesma responsabilidade que os que tinham votado em Hitler por acharem que seria o salvador do mundo? E os que não queriam saber de política e desejavam apenas escapar ao pesadelo da ruína econômica após a Primeira Guerra Mundial? Tudo isso não passava de uma paródia de expiação, que mascarava algo muito mais importante: a responsabilidade individual.

De fato, a “desnazificação” não atingia os altos escalões do poder público. Membros importantes da antiga burocracia nazista – simples “funcionários” ou “burocratas”, dizia-se, sem responsabilidade pelas decisões criminosas e por isso mesmo incapazes de perturbar alguém – permaneciam em cargos-chave do novo governo. Um caso clamoroso era o de Hans Globke, que despertou as mais ferozes indignações de Voegelin e da filósofa Hannah Arendt.

Em 1958, Globke era o braço direito de Adenauer, ocupando o cargo de “subsecretário de Estado e chefe da divisão pessoal da Chancelaria da Alemanha Ocidental”. Vinte e seis anos antes, fora um dos funcionários mais respeitados do Ministério do Interior do Terceiro Reich. Quando surgiu o escândalo em torno do seu passado, Globke apressou-se a afirmar que apenas procurara tomar “medidas mitigadoras”. Curiosas medidas, aliás… Em primeiro lugar, fora o autor da lei segundo a qual todo judeu deveria ter como segundo nome “Israel” e usar uma estrela de Davi amarela a fim de mostrar que não tinha “ascendência ariana”; e isso foi em 1932, quando “a subida de Hitler não era uma certeza, mas apenas uma forte possibilidade”. Mais tarde, já no ministério, criara a lei que obrigava moças tchecas que pretendessem casar com soldados alemães a exibir fotos em que apareciam vestidas de maiô, para comprovar os dados antropométricos arianos (talvez fosse mesmo uma mitigação, pois antes se exigiam fotos em que apareciam nuas…).

Isso já fora denunciado por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, o livro-reportagem publicado em 1962 que narrava o julgamento de Adolf Eichmann, acusado pelo governo de Israel de ser o “arquiteto da Solução Final”. Arendt se perguntava se Eichmann, um burocrata arrivista, seria o monstro de que tanto se falava. E chega à conclusão de que não: tratava-se de um “homem-massa”, sem vida interior, sem convicções pessoais, imbuído apenas do intuito de seguir o rebanho – mesmo que este praticasse assassinato em quantidades industriais. De quem era a responsabilidade? Dos alemães? Dos judeus? Do Ocidente? Talvez de todos, desde que isso não mascarasse o fato de que, antes de mais nada, o verdadeiro responsável por suas ações era o próprio Eichmann.

A conclusão que se impunha era que o verdadeiro processo de “desnazificação” não se podia obter por meio de um processo legal ou político; era necessária umareviravolta da consciência, uma revolução do espírito – uma conversão pessoal que tinha de começar com uma “descida aos infernos”. E essa foi a tarefa que Voegelin se impôs ao chegar à Alemanha em 1958: fazer a sua terra natal compreender que, para “dominar” o passado, tinha antes de mais nada de “dominar” o presente.

A descida ao inferno

Para isso, Voegelin recupera e propõe no conjunto da sua obra duas noções praticamente esquecidas no ambiente acadêmico: a do homem maduro e a doprincípio antropológico.

O “homem maduro” corresponde ao spoudaios de Aristóteles, a pessoa que desenvolveu ao máximo as suas potencialidades e, em conseqüência, aprendeu que governar e comandar os outros é antes de mais nada governar e comandar-se a si mesmo, especialmente no domínio das paixões e dos sentimentos. Conhece a profundidade da sua alma e da dos seus semelhantes porque desceu ao inferno do conhecimento próprio e de lá voltou. Neste sentido, não é apenas alguém que manda, mas alguém que representa os anseios mais íntimos dos homens de carne e osso que compõem a sociedade; não é um chefe político ou institucional, mas um líder autêntico, com liderança existencial, pois chega a ser o reflexo da sociedade que governa. Tudo isso pode ser resumido na seguinte sentença: a sociedade é a alma do homem escrita por extenso. Voegelin recuperará essa noção de Platão e a chamará de princípio antropológico.

Ora bem, nas suas palestras sobre “Hitler e os alemães” Voegelin começa apresentando uma carta escrita por um jovem acadêmico à famosa revista Der Spiegel:

“Quando lemos que Hitler foi um amador, ‘abaixo da média dos homens’, perguntamo-nos automaticamente como então ele foi capaz de modelar uma época. Reconheço que ele era um ‘jogador’, mas um jogador que ofuscou os outros. […] E o seu único crime foi o de ser um jogador que perdeu, e que levou consigo todo um povo, de maneira que afundou com ele. Entretanto, toda a política é um jogo e os ganhos aumentam quando as apostas são altas. Hoje já não podemos e não queremos jogar; portanto, também nos é impossível ganhar – a não ser o tão cotado padrão de vida. Mas talvez estejamos perdendo mais, mesmo sem Hitler”.

Aqui estão prefigurados muitos dos clichês que, inquietantemente, voltamos há pouco a ouvir repetidos na imprensa e na academia: o de que Hitler, no fim das contas, era um grande líder, o de que a política é um jogo, e o de que sua única culpa foi perder. Nem se menciona que o nazismo e o seu líder tinham um projeto de eliminação sistemática de toda uma raça e, nas palavras de Churchill, de toda a civilização.

Voegelin apresenta outro exemplo, extraído de um acadêmico que faz a seguinte descrição física e psicológica de Hitler:

“Hitler fascinava as pessoas com seus olhos azuis profundos, ligeiramente esgazeados, quase radiantes. Muitos que se encontravam com ele eram incapazes de resistir a seu olhar”.

 E, com palavras mais reveladoras:

“É quase impossível comunicar aos que nunca o conheceram o impacto pessoal de Hitler […]. Havia, no entanto, muitas pessoas sobre quem isso não tinha absolutamente nenhum efeito. Certa vez um coronel me descreveu que, quando estava conversando com Hitler, sentiu uma aversão crescente ao homem enquanto este o fitava de perto (vale notar que Hitler dispensou esse coronel e outros muitos rapidamente). A reação reversa foi provocada numa requintada proprietária da Pomerânia de ascendência aristocrática e convicções cristãs, que detestava Hitler. Encontrou-o por acaso no passeio de madeira de uma praia do Mar Báltico, foi atingida por um breve momento pelo olhar dele e declarou, como fulminada por um raio, que embora ainda não gostasse dele, sentia que ele era um grande homem. Aqueles a quem Hitler tolerava perto dele eram, é claro, mais do que tocados pelo seu olhar, e eram transformados em seus satélites voluntários”.

Nestes parágrafos quase hagiográficos, o Führer aparece como um “enigma”, como se tivesse uma “aura” incomum que o transformasse em um homem situado “além do bem e do mal”. É verdade que o seu autor, Percy Schramm, tinha feito parte do Supremo Comando das Tropas de Guerra; mas já agora, devidamente munido do seu “certificado de desnazificação”, era um acadêmico de renome e ganhador da Ordem do Mérito – a maior honra que, na Alemanha pós-guerra, se podia conferir a um civil.

Esse tipo de mitificação, diz Voegelin, mascara um fato relevante para qualquer análise política decente: o da representação social. Se as pessoas viam essa “aura” em Hitler, por mais que antipatizassem com a sua causa, as suas idéias ou mesmo a sua pessoa, era porque desejavam participar dela, ver essa “aura” refletida nelas mesmas. O jornalista Konrad Heiden descreveu isso com precisão já em 1933, quando ainda ninguém previa as dimensões que o nazismo viria a assumir:

“Com uma confiança ímpar, Hitler expressou o pânico sem palavras das massas confrontadas por um inimigo invisível e deu um nome ao espectro sem nome. Ele era um fragmento puro da própria alma da massa moderna […]. Alguém se perguntará quais foram as artes pelas quais ele conquistou as massas; na verdade, ele não as conquistou, apenas as retratou e as representou“.

Essa intuição brilhante, que Heiden captou no calor da hora, mostra o fundo da “aura” e do “enigma” de Hitler. Não havia ali nada da liderança do “homem maduro”, mas apenas um homem-massa imbuído de um intenso complexo de inferioridade e da intensidade que conferem a angústia e o ódio. O próprio estilo repleto de clichês dos “hagiógrafos” manifesta esta realidade, pois a primeira manifestação da corrupção social está na corrupção da linguagem, que se torna uma “língua de madeira”, rígida, repetitiva e vazia de sentido real, como a que caracterizou igualmente o governo totalitário soviético.

Manipulação, não liderança

Schramm acrescenta, ainda no tema do “enigma de Hitler” e baseado em testemunhos dos que cercavam o Führer, que este só contava aos que lhe estavam próximos o estritamente necessário, mesmo nos momentos decisivos da Segunda Guerra. Essa atitude enigmática é às vezes mencionada, mesmo hoje, como uma “técnica de liderança”. Voegelin, pelo contrário, chega a uma conclusão muito mais banal e concreta:

“O problema obviamente escapou a Schramm, pois esse sonegar informações, mesmo aos membros do Estado Maior e do Almirantado, tinha uma razão institucional. Nos últimos anos, Hitler não contou com nenhum Estado Maior para conduzir a guerra, mas tomou as rédeas do exército em suas próprias mãos, pois temia ser posto sob pressão se tivesse de enfrentar um grupo de seis ou sete generais e almirantes com visão de jogo. Assim, lidava com eles apenas individual e pessoalmente, e esse contato isolador, em que nenhuma pessoa sabia qual era o plano todo, era uma tática deliberada e um instrumento de estabelecimento da ditadura“.

Com efeito, esse reservar para si a informação de conjunto é uma das técnicas clássicas de manipulação do poder. Novamente, não há aí nenhum tipo de liderança, mas apenas uma imposição da ambição pessoal.

Uma segunda amostra dessa manipulação surge da análise do relacionamento doFührer com a sua “comitiva”. Para Schramm, como para outros, a “culpa de tudo” não estaria em Hitler, mas sim naqueles que o cercavam. Ele, homem imbuído de um sonho grandioso, teria sido influenciado por asseclas criminosos e incompetentes; se tivesse podido traduzir na prática os seus ideais, o nazismo teria tido outro destino histórico.

Ora, é mais do que sabido que a ordem decisiva para a última fase da “Solução Final” –
a do extermínio em massa dos judeus – veio do próprio Hitler. O que nos leva à teoria oposta, também apresentada com certa freqüência: a “culpa de tudo” teria sido exclusivamente do Führer, não do partido nem do governo nem do povo. Sabemos aonde conduz esse raciocínio: à afirmação de que “o nazismo foi desvirtuado por Hitler; sem ele, seria outra coisa, muito mais bonita” (É interessante notar que se usa o mesmo procedimento para o comunismo, apenas trocando “Hitler” por “Stálin”).

As duas teorias são nitidamente insuficientes. Se aplicarmos o princípio antropológico, o de que o líder representa os anseios dos seus adeptos, veremos que Hitler se cercava de uma comitiva incompetente porque ele próprio era incompetente. Por ser o representante do homem-massa inferiorizado, as suas palavras só encontravam eco em uma “pseudo-elite” intelectual e militar que, no fim, não passava de uma “massa inferiorizada”,
de uma “ralé”.

Voegelin apresenta seis parâmetros para analisar o “caso de amor” de Hitler com sua comitiva:

“(1) Hitler estava a par da inadequação de seu círculo. (2) Hitler era, no entanto, obcecado com a ‘camaradagem’ e a ‘lealdade’. Desaprovava veementemente as mudanças que Mussolini fazia em sua guarda, as trocas de ministros. (3) Ele era conservador em seus hábitos de vida e dificilmente rompia relações com pessoas com quem crescia. (4) Teria ocorrido uma mudança, no entanto, se tivesse sido capaz de ver os seus homens como eram realmente, de discernir quem dentre eles era incompetente ou tinha sérias deficiências de caráter. Eis a contradição: por um lado, ele tinha consciência da inadequação desse círculo; por outro, não era capaz de detectar-lhes a incompetência, as deficiências de caráter. (5) Portanto, não tinha precisamente aquilo pelo que muitas vezes foi louvado: o conhecimento da natureza humana. (6) Hitler conseguia suprimir um julgamento inteiramente correto, mas que não lhe era conveniente, a fim de justificar pessoas que lhe pareciam úteis e devotadas”.

É especialmente importante aqui a expressão “como eram realmente“. A incompetência de Hitler e de sua comitiva devem-se simplesmente a que não foram capazes de ver a realidade. Por isso, não formaram uma “elite”, uma minoria seleta que sabe que primeiro a realidade tem de ser estudada com amor para só depois se tornar dócil; formaram uma “ralé” que acreditava que a realidade estivesse aos seus pés apenas por serem eles quem eram. E se as coisas davam errado, limitavam-se a negar toda a responsabilidade, lançando as culpas, conforme o caso, ora no Führer, ora na sua comitiva. Mas quem se recusa a ver as conseqüências do real, não merece outro nome que o de estúpido.

Pneumopatologia da estupidez

Antes de mais nada, devo dar um esclarecimento. O leitor talvez se tenha surpreendido com as palavras “ralé” e “estúpido”, e pense que são insultos vulgares. Não são. Na verdade, são termos técnicos e rigorosos, que classificam um determinado comportamento diante do real. Além de que um insulto preciso às vezes pode ser um excelente diagnóstico.

Comecemos com o termo “estupidez”. Voegelin faz um resumo delicioso de como essa palavra é usada desde o início dos tempos, da Bíblia até a mais recente literatura moderna, passando pela filosofia grega. Os israelenses chamam o homem que cria desordem na sociedade de “tolo”, nabal, pois não é um “crente”, não aceita a revelação de Deus; Platão usa outro termo, amathes, o homem irracional, que não se curva à razão e, portanto, tem uma imagem defeituosa da realidade. Para São Tomás de Aquino, o “tolo” é o stultus, o estulto, que não compreende nem a revelação, nem a razão, e mesmo assim tenta mudar a realidade, tendo como resultado óbvio produzir o caos. Por fim, na literatura moderna Voegelin encontra no escritor austríaco Robert Musil as expressões “estúpido”, “idiota” e “néscio”, que retratam o mesmo tipo humano.

Qualquer um de nós já sentiu o momento em que se depara com a estupidez do próximo como um dos tormentos mais angustiantes de sua vida. Ortega y Gasset define certeiramente a distinção entre o tonto e o “perspicaz”: o segundo sempre se surpreende a dois passos de se tornar um tonto (e aí está o início da inteligência), ao passo que o primeiro jamais suspeita de si mesmo, sempre se considera “discreto” e se instala na sua torpeza e tranqüilidade de “néscio”. Não há como tirar o tonto da sua tontice; aliás, como bem diz Ortega, a diferença entre um “néscio” e um homem “mau” é que o mau descansa às vezes, o néscio nunca.

Voegelin toma de Musil os conceitos de “estupidez simples” e “estupidez inteligente”. O “estúpido simples” é alguém que erra por ignorar o que acontece, por mera desinformação; já o “estúpido inteligente” é alguém que insiste no erro por acreditar que sempre tem razão. Do resumo histórico que o filósofo faz, ressalta uma constante que caracteriza o “estúpido inteligente”: a negação deliberada da razão, que lança o ser humano na bestialidade, mesmo que esta assuma as formas aparentemente sofisticadas da técnica ou da ideologia. O estúpido não quer conhecer, prefere permanecer na negação da realidade. No fim das contas, pensa com o poeta alemão Novalis (muito admirado pelos nazistas): “o mundo será como eu quero que ele seja”. Por não respeitar a realidade como ela é, violenta-a de uma forma ou de outra; mas, como ela é “insubornável”, cedo ou tarde ela se vingará, pregando-lhe uma peça. E como resultado o estúpido assume uma atitude de revolta contra tudo e contra todos.

Ao binômio de Musil, Voegelin acrescenta mais um termo para descrever “Hitler e os alemães”: o de “estupidez criminosa”. Se o estúpido inteligente insiste no erro, o criminoso está disposto a fazê-lo custe o que custar. A sua vontade racional é substituída por um desejo de poder alucinado, que acaba encontrando satisfação somente na destruição do seu semelhante; as aparentes “razões” que invoca para fazê-lo – de raça, de credo, de cor ou de sexo -, não passam de pretextos.

Hitler foi exatamente isso: um estúpido criminoso, o exato oposto do spoudaios, do homem maduro defendido por Aristóteles. Contudo, permaneceu um ser humano: não é possível perder a razão ou o próprio espírito só porque queremos: eles continuam a fazer parte da constituição humana. Como diria Voegelin: “Foi de uma humanidade em forma absolutamente humana, porém a humanidade mais notavelmente desordenada e doente: uma humanidade pneumopatológica“. O estúpido, e mais ainda o estúpido criminoso, não é um “psicopata”, mas algo mais profundo: sofre de uma doença do espírito, de uma pneumopatologia, que nasce da vontade humana mas acaba por enraizar-se em todo o ser da pessoa.

Musil criou também a distinção entre “primeira realidade” e “segunda realidade”. A primeira é a realidade captada pela apreensão concreta das coisas, entendida pela razão e refletida no bom senso, em que todos vivem e se comunicam; a segunda é a pseudo-realidade criada como alternativa pelo espírito doente, em que ele tentará viver e expressar-se independentemente dos desejos dos seus semelhantes. Quando ocorre o choque inevitável entre as duas, nasce a mentira erigida num sistema em que todos os dados incompreensíveis da “primeira realidade” têm de encontrar uma explicação exata na “segunda realidade”. E nesse momento ocorre uma desumanização: o ser humano, esse algo concreto e inesgotável, feito de carne e espírito, é transformado em um mero conceito, uma simples abstração – uma “estatística”. Daí para o genocídio é apenas um passo.

Este foi o caso da Alemanha na época em que foi representada política e existencialmente por Adolf Hitler. Não houve nenhuma “aura”, nenhum “enigma”, muito menos uma “personalidade demoníaca”: tratava-se somente de uma nação de estúpidos governada por um estúpido criminoso. No choque entre a primeira realidade e a segunda, a “elite” da nação abdicou do espírito e decidiu deixar-se escravizar pelo desejo de poder, tornando-se “ralé” submetida à “autoridade da ignorância”. Essa “ralé” só estava aberta à vontade do Führer, e isso porque também ela estava imersa na mesma doença espiritual.

Para mostrar com clareza o que caracteriza a “ralé”, Voegelin usa um episódio doDom Quixote. Como todos sabem, o cavaleiro espanhol é a personificação do homem que vive na “segunda realidade”, confundindo moinhos com monstros e camponesas com nobres donzelas. A certa altura do romance, o Quixote é libertado de uma gaiola de madeira pelo cônego, que o acompanha até a sua casa e procura convencê-lo de que suas aventuras não passam de rematada loucura. O cavaleiro responde-lhe que suas aventuras são tão reais como as que compõem os livros de cavalaria da época; o verdadeiro louco, diz, seria o cônego, que não acredita nesses livros “apesar de terem sido publicados com a licença do rei”. Aqui temos o raciocínio característico da “autoridade da ignorância”: aceita-se incondicionalmente a mentira porque “a autoridade” (que pode ser do rei, doFührer ou da “maioria”, tanto faz) a aprova.

A resistência dolorida

Uma “ralé” comandada por um “estúpido”, intoxicada por uma doença erigida em sistema legal: essa estupidez institucionalizada gera uma situação de sonâmbulos conduzidos por outros sonâmbulos. Houve, entretanto, alguns que se ergueram contra essa “opção preferencial pelo desastre” e cumpriram a famosa frase do filósofo inglês Richard Hooker: ao menos “a posteridade saberá que não deixamos, pelo silêncio negligente, que as coisas se passassem como um sonho”.

O mito de que não houve resistência ao nazismo mostra-se cada vez mais infundado. Já mencionamos as obras do próprio Voegelin ou o de Robert Musil, que, ainda em 1937, deu uma conferência pública chamada “Da estupidez”. Mas existiram vários tipos de resistência, como o dos prelados Faulhaber ou Von Galen (que os nazistas não ousaram prender), de católicos como Fritz Gehrlich e Alfred Delp (executados), dos pastores Dietrich Bonhöffer (preso e executado) e Martin Niemöller (a princípio fascinado pelo nazismo, mas que percebeu a armadilha e foi preso), de intelectuais como Hermann Broch e Thomas Mann (exilados nos EUA) – e, é claro, dos irmãos Hans e Sophie Scholl.

Em fevereiro de 1943, os Scholl – que tinham formado com mais três amigos um grupo clandestino chamado “Rosa Branca” – distribuíram nos corredores da universidade de Munique milhares de panfletos em que denunciavam a loucura da guerra e a existência de campos de concentração. A Gestapo, com eficiência alemã, caçou-os e prendeu-os quase que imediatamente. Depois de uma farsa de julgamento, os Scholl foram condenados à morte e levados à guilhotina; Sophie tinha 21 anos e Hans, 25 anos. A evocação dos dois não é casual: o próprio Voegelin batizou o Instituto de Ciência Política de Munique, que fundou e onde deu as suas palestras sobre “Hitler e os alemães”, de Geschwister-Scholl-Institut(Instituto Irmãos Scholl); para o filósofo de Colônia, uma política autêntica tem de estar sob a égide da coragem.

A conclusão de Voegelin é um chamado à responsabilidade individual e a uma qualidade completamente insuspeitada neste contexto: a humildade. Porque a humildade é exatamente aquilo que afirmamos no início deste artigo: confiar na realidade. A coragem de confiar no real é a única garantia que permite superar a estupidez institucionalizada, tornar-se um homem maduro e encontrar essa realidade que fundamenta o encontro com todas as outras realidades: a vida do espírito. São necessários anos e anos de dedicação, e é necessária também umareviravolta interior para perceber as coisas por esse novo olhar. Mas o começo de tudo está em perceber que estamos sempre a dois passos de nos tornarmos estúpidos.

Enfrentar-se com essa clareza é uma espécie de descida aos infernos; mas não esqueçamos que o estúpido também desce, e de maneira muito pior: no caso de Hitler, basta ler os últimos relatos de sua vida no fétido bunker onde escolheu morrer. Uma frase publicitária da época, profundamente irônica, afirmava: “Hitler no bunker – esse, sim, é o verdadeiro Hitler!” E o que era? Segundo Joachim Fest, um homem consumido pelo ódio à humanidade, cristalizado nos seus padrões de pensamento, dominado por uma força irracional orientada somente para a destruição. É interessante confrontar esta atitude com a de Winston Churchill, a “nêmesis de Hitler”, que descreve assim os seus “anos de ostracismo” na década de 30:

“Todo profeta deve provir da civilização, mas todo profeta tem de ir para o deserto. Deve ter uma impressão profunda de uma sociedade complexa e de tudo o que ela tem para dar, e depois atravessar períodos de isolamento e meditação. É mediante esse processo que a dinamite psíquica é feita”.

O spoudaios, o homem que “desceu ao inferno” do autoconhecimento e de lá voltou, é precisamente esta “dinamite psíquica”. Esta é a lição que Eric Voegelin deixou para todas as jovens gerações: a de que a tarefa da filosofia é cultivar a coragem e confiar no real, sempre de acordo com o aviso do profeta Ezequiel: “Filho do homem, te pus como sentinela para a casa de Israel. Assim, quando ouvires uma palavra da minha boca, hás de avisá-los da minha parte. Quando eu disser ao ímpio: ‘Ímpio, certamente hás de morrer’ e tu não o desviares do seu caminho ímpio, o ímpio morrerá por causa da sua iniqüidade, mas eu requererei o seu sangue de ti. Por outra parte, se procurares desviar o ímpio do seu caminho, para que se converta, e ele não se converter do seu caminho, ele morrerá por sua iniqüidade, mas tu terás salvo tua vida” (Ez 33:7-9).

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista e doutorando pela Universidade de São Paulo (USP).


NOTAS:

[1] Hitler e os alemães foi publicado no Brasil em 2008 pela editora É Realizações, que também lançou Reflexões autobiográficas, igualmente de autoria de Eric Voegelin.


**Texto publicado na revista-livro Dicta&Contradicta, edição nº 2, Dez/2008, principal meio impresso do Instituto de Formação e Educação (IFE). A imagem de Eric Voegelin foi extraída deste link.


ADENDO:

LISTA DE LIVROS TRADUZIDOS PARA O PORTUGUÊS DE ERIC VOEGELIN:

  • 1979 A nova ciência da política. Brasília: UnB.
  • 2008 Reflexões Autobiográficas. São Paulo: É Realizações.
  • 2008 Hitler e os Alemães. São Paulo: É Realizações.
  • 2009 Anamnese – Da teoria da história e da política. São Paulo: É Realizações.
  • 2009 Ordem e História, vol. I: Israel e a Revelação. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2009 Ordem e História, vol. II: O Mundo da Pólis. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2009 Ordem e História, vol. III: Platão e Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2010 Ordem e História, vol. IV: A Era Ecumênica. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2010 Ordem e História, vol. V: Em Busca da Ordem. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2012 História das Ideias Políticas – Vol. I: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. São Paulo: É Realizações.
  • 2012 História das Ideias Políticas – Vol. II: Idade Média até Tomás de Aquino. São Paulo: É Realizações.
  • 2013 História das Ideias Políticas – Vol III: Idade Média Tardia. São Paulo: É Realizações.
  • 2014 História das Ideias Políticas – Vol IV: Renascença e Reforma. São Paulo: É Realizações.

LISTA DE LIVROS TRADUZIDOS PARA O PORTUGUÊS SOBRE VOEGELIN:

  • HENRIQUES, Mendo Castro. Filosofia Política em Eric Voegelin – dos megalitos à era espacial (Livro + 3 DVDs). São Paulo: É Realizações, 2009.
  • HENRIQUES, Mendo Castro. A Filosofia Civil de Eric Voegelin. São Paulo: É Realizações, 2010.
  • SANDOZ, Ellis. A Revolução Voegeliniana. São Paulo: É Realizações, 2010.
  • FEDERICI, Michael P. Eric Voegelin – A Restauração da Ordem. São Paulo: É Realizações, 2011.