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Campinas de ontem

Opinião Pública | 14/08/2019 | | IFE CAMPINAS

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Desde sua fundação, Campinas sempre contou com os braços fortes de centenas de escravos na sua construção; situação que repetia-se em sincronia orquestral pelo Brasil todo. Aqui havia um acento de crueldade no trato aos cativos apontado por diversos historiadores, tanto que ameaçá-los de venda a um senhor campineiro bastava para reprimir qualquer indisciplina.

Do mesmo modo que havia escravocratas, numa proporção ainda maior havia muita gente simples que não admitia os horrores da escravidão, embora também eles não tivessem uma sorte tão melhor. Junto dessa gente simples, Campinas produziu artistas, padres, médicos, professores e advogados que envidaram seus esforços pela abolição e que, justamente por isso, se esforçavam para dar a conhecer situações de sofrimento que desnudavam o grave problema da escravidão, chamando a população a um olhar literalmente “compassivo” em relação ao sofrimento dessas pessoas. Entre as várias histórias de dores, sofrimentos e mais raramente de algumas alegrias destes escravos anônimos que ajudaram a edificar a cidade, merece destaque uma que comoveu a população que viveu na segunda metade do século XIX.

Por volta de 1870, um escravo fugido, já alquebrado pelos anos de trabalho e cansado de perambular errante escondendo-se cada dia num lugar diferente, resolveu retornar a seu dono em Campinas e, para isso lançou mão de um recurso conhecido, forjado por um costume antigo nos domínios portugueses e que ficou como herança no Brasil: em caso de fuga, havendo desejo de retorno, a fim de não ser constrangido a punições físicas e morais, um escravo poderia buscar um “padrinho”. Este deveria ser livre e influente. Quanto maior sua influência local, tanto melhor.

Cansado, o pobre homem bateu à porta de um dos barões da Princesa D’Oeste, explicou-lhe sua situação, suplicou uma recomendação e indicou quem era seu dono. Num sorriso indissimuladamente sarcástico, o fazendeiro garantiu-lhe que com sua recomendação seria readmitido por seu dono sem mais problemas.

Desconfiado das intenções de seu fiador, o pobre escravo analfabeto titubeava entre voltar a seu dono e viver errante. Com passo recalcitrante adentrou a cidade que acabava na altura da atual Avenida da Abolição, próximo ao cemitério. Por ser o último bairro de Campinas era chamado de “Fundão”.

Sem suspeitar que portava nas mãos sua miserável sentença que ainda lhe reservava outros amargos sofrimentos, topou no caminho com um menino que voltava da escola carregado de seus livros e perguntou-lhe se sabia ler. Com o aceno positivo de seu pequeno interlocutor que inadvertidamente aceitou o pedido do escravo de ler o bilhete, sem o saber acabou se constituindo no terrível juiz que comunicaria a trágica sentença: o bilhete era uma troça. O fazendeiro não o recomendava, antes instava seu colega barão a dobrar a surra que daria em seu escravo. Traído, desgostoso, sem saber para onde ir e o que fazer sentou-se debaixo de uma goiabeira que existia ali e pouco tempo depois atou uma corda aos galhos mais robustos da árvore enforcando- se ali mesmo. Quando encontraram-no já sem vida, perto de seu corpo estava o dito bilhete. Ele não teve forças para acreditar que a bondade humana ainda era possível, pois não a encontrou quando a buscou. Os campineiros o sepultaram ali mesmo, abaixo da goiabeira e na frente de seu túmulo edificaram a Capela da Santa Cruz do Fundão. Em 1930 a antiga capela deu lugar a uma nova e passou a ter como orago Nossa Senhora da Penha, situa-se no local original em frente ao antigo Sanatório Santa Isabel na Avenida da Abolição, como um testemunho perene daquilo que Campinas foi no passado e do dever que temos de edificar um futuro capaz de fazer memória e se deixar transformar e conduzir pelos que nos precederam tendo como princípio a caridade e a compaixão.

Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 14 de Agosto de 2019, página A2 – Opinião.

Extraordinariamente comum

Opinião Pública | 03/07/2019 | | IFE CAMPINAS

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De tempos em tempos a humanidade cria e se apega a determinadas teorias, visões de mundo e modismos que parecem conferir ao homem uma distinção que os faz melhores que seus antepassados. Isso não é novo, mas a partir do Iluminismo, no século XVIII (ele mesmo um modismo filosófico, com muitos defeitos, mas também com qualidades interessantíssimas, é preciso dizer) esse processo se acentuou e se normalizou.

Assim, os homens “ilustrados” do “Século das Luzes”, imaginando-se melhores e mais evoluídos que seus antepassados cunharam preconceitos grotescos contra praticamente tudo o que a humanidade havia produzido de conhecimento e de civilização até aquele momento, ignorando por completo o próprio processo de produção do saber que é algo gradativo e construído a várias mãos durante muito tempo. Os iluministas supunham que ao acaso suas conclusões eram fruto de suas mentes, mais elevadas porque iluminadas pela luz da razão, como se antes a razão tivesse sido desprezada por completo. A Idade Média, período em que floresceu a arquitetura gótica e as universidades, desenvolveu-se o método científico dedutivo, criou-se o primeiro sistema bancário, intensificou-se um intercâmbio cultural e comercial com o Oriente, ampliado largamente pela ação das Cruzadas, tempo em que os grandes autores clássicos, como Aristóteles foram redescobertos e traduzidos para o latim, enfim, um período riquíssimo sob vários aspectos, passou a ser identificado no Iluminismo pela pecha de “Idade das Trevas”, sob o pretexto de que a Igreja aprisionava as pessoas na ignorância por ser a detentora dos meios de educação, ou seja, das escolas, universidades e das maiores bibliotecas. Quando afirmavam isso, os iluministas ignoravam solenemente e, propositalmente, as célebres “quaestinoes disputate”, sistema de debate público e livre de ideias no âmbito das universidades e sob o olhar da Igreja.

Como antes, também hoje há uma busca muito grande por novidades e modismos que desfiguram a realidade e criam impressões ou simulacros dela que são tomados como se fossem ela mesma. Os antigos filósofos gregos conseguiam compreender o mundo à sua volta e buscar explicações racionais justamente porque tinham um afiado senso de realidade e dela partiam para construir suas análises. Falhando nos pressupostos, não se pode acertar nas conclusões. Esse é o maior problema de muitos que pretendem analisar qualquer coisa, desde sua própria vida até a situação política do país, pois só a investigação rigorosa da realidade é a via de acesso à verdade. Pensando no caso da masculinidade, para citar apenas um exemplo hodierno, vemos um fenômeno interessante que criou uma espécie de código de conduta em que o indivíduo para se afirmar como tal necessita de um combo composto por: tatuagens, barba, crossfit, bacon, esportes radicais, falas politicamente corretas… Isso para citar apenas alguns lugares comuns nessa visão do que seriam práticas desejáveis para um homem. Nada contra ninguém, nem nada disso, mas isso é apenas uma caricatura do que é ou deve ser um homem. Os verdadeiros homens os encontramos nas situações mais ordinárias, como os muitos pais de família que saem cedo para trabalhar, pegam ônibus lotados, enfrentam dificuldades financeiras, tem de se equilibrar entre as relações familiares e de trabalho, precisam fazer sacrifícios diários e constantes para que sua família, em especial seus filhos pequenos, se os tiver, possam ter uma vida minimamente digna. Ser uma pessoa comum, com desejos e pretensões comuns levadas à cabo pelo esforço, pela dedicação e pelo trabalho, aceitando sacrifícios e vencendo obstáculos, isso é a realidade que faz um homem de verdade, o resto é modismo pré-fabricado ideológica ou plasticamente. A conexão da pessoa com a realidade é a única força capaz de produzir coisas extraordinárias porque partem das coisas comuns e ordinárias e não o contrário.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, Edição de 03 de julho de 2019, Página A2 – Opinião.

Pra quê serve um professor?

Opinião Pública | 12/06/2019 | | IFE CAMPINAS

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Perto do ano 2000 muito se falava que nós professores estávamos com os dias contados, pois a tecnologia substituiria nosso trabalho. Embora a tecnologia possa em algum momento ser mais atrativa do que nossas aulas e é inegável que nem sempre é fácil competir com essas ferramentas que, se bem empregadas, podem ser um auxílio precioso, o problema real está na corrupção pela qual o próprio conceito de educação passou e ainda está passando, a começar pelas instituições e pelo próprio sistema de ensino brasileiro que é falho já em seus pressupostos.

A existência de cursinhos pré-vestibulares, por exemplo, comprova que o sistema de ensino é ineficaz, daí a necessidade de que existam para preencher essa lacuna. Atualmente uma visão de mercado suplantou a visão de educação, ou seja, o que realmente importa para muitos pais é a tentativa de retirar seu filho do convívio com supostas más companhias em instituições públicas – como se estas não existissem em igual ou maior proporção no ensino privado – e preservá-los do contato com drogas ou outras situações de risco e, supostamente, para oferecer-lhes uma “educação de qualidade”, conceito este que é construído muito mais na fama de que gozam algumas instituições de ensino do que no conhecimento das metodologias e informações que seus filhos recebem de fato. Os pais são e parecem querer ser enganados, tranquilizando suas consciências sem medir de fato o que estão oferecendo a seus filhos.

Por outro lado, essa situação é aproveitada por instituições de ensino que exploram esse mercado oferecendo o que o pai deseja e fazendo o que pode para manter a máxima quantidade de alunos, sem a mínima preocupação em educá-los e formá-los, antes cuidando para que se sintam felizes e realizados de acordo com sua medida pessoal sem forçá-los, como é próprio da verdadeira educação, a se elevarem a níveis sempre mais altos e melhores em vista de uma excelência acadêmica. Há um tempo atuei em uma instituição de grande porte em que percebi certa desorganização do pensamento dos alunos na compreensão da História, não por culpa própria, mas por terem se moldado ao que lhes era oferecido. No intuito de ampliar os horizontes, melhorar sua compreensão e ensiná-los a interpretar a História de forma linear e orgânica passei a adotar alguns princípios simples: aulas expositivas, solução de dúvidas, análise de imagens e mapas, rigorosa anotação de resumos e quadros sinóticos, exercícios e muitas perguntas elaboradas para inquiri-lhes diariamente sobre o conteúdo aprendido. Em pouco tempo consegui obter um bom resultado: cadernos organizados, ideias organizadas, memória mais afiada, discursos com coesão e coerência e a reclamação de algumas famílias de que a matéria era passada em demasia e que os filhos, no caso, adolescentes, não tinham tempo para mais nada. As reclamações, mesmo vindo de meia dúzia de pais renderam muita dor de cabeça e minha demissão.

Pra quê serve então um professor? A desvalorização dos docentes não é privilégio apenas da ausência de políticas públicas ou de um maior reconhecimento estatal, mas antes está entranhada no modo de agir e pensar daqueles que veêm nela algo meramente instrumental e não como algo mais profundo. Santo Agostinho afirmava que a verdadeira educação “não é um processo imediato e sim um prolongado e fatigoso processo de purificação moral e de exercício intelectual que conduz gradualmente o aluno até a identificação com a sabedoria, a beleza e a felicidade supremas, que se identificam com Deus”. Sem essa visão não formamos pessoas e sim autômatos e não edificamos casas do saber e sim empresas, más empresas, que oferecem educação e entregam o aluno aos seus próprios instintos na sanha de mantê-lo satisfeito e garantidamente mal formado para a vida real que o espera, pois o importante é o hoje e não aqueles valores perenes que farão toda diferença durante a vida desse aluno.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, Edição de 12 de junho de 2019, Página A2 – Opinião.

A cultura ocidental morrerá?

Opinião Pública | 27/02/2019 | | IFE CAMPINAS

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O cenário que se nos apresenta no Brasil atual é caótico sob vários aspectos: político, econômico, jurídico, religioso, filosófico… Mas nosso tempo não pode requisitar para si o título de pior tempo, embora muitos assim o vejam. O fato é que muitos costumes, valores e tradições parecem ruir diante de novidades que se apresentam a todo tempo. O fato de um período degringolar e desfazer-se já ocorreu centenas de vezes no passado e seguirá ocorrendo no futuro, como agora ocorre e isto não é necessariamente algo ruim. Muitas vezes o que está ruindo precisa cair para que surja algo novo.

O grande Império Romano, com seu exército extremamente disciplinado, com seu cerimonial pomposo, com as belezas da língua latina, com a fineza de sua arquitetura, com arguteza de seus filósofos e oradores, num dado momento deixou-se levar por novidades corriqueiras, permitiu que seus valores se corrompessem, favoreceu a adoção de práticas estranhas à sua clássica cultura e começou a ruir. Altivos, muitos romanos reputavam seu império como invencível e descansaram naquilo que imaginavam ser o império e não naquilo que de fato ele estava sendo: uma instituição obsoleta e carcomida em suas bases.

As mulheres e homens romanos se entregaram a todo tipo de prazeres torpes. A desordem sexual, o concubinato, as relações ilícitas se tornaram comuns, e assim, centenas de mulheres e homens que desejavam o prazer sexual sem a responsabilidade das novas vidas que dessas relações podiam ser geradas passaram às práticas abortivas que então se conheciam. A população começou a diminuir e com ela também o exército encolheu enquanto os povos bárbaros seguiam tendo muitos filhos, equipando seus exércitos e preservando sua cultura e costumes, muito menos interessantes e belos do que a cultura romana, é bem verdade, mas muito mais respeitados. Roma caiu e os bárbaros triunfaram.

O grande objetivo da História é “conhecer o passado para entender o presente e modificar o futuro”, mas nem sempre isso se efetiva na prática. Basta pensar na Europa que no fim da Antiguidade tornou-se cristã e hoje vira as costas para suas raízes. Veja-se o caso dos mais de mil e trezentos ataques a igrejas francesas nos últimos três meses ou a um cemitério judeu profanado com suásticas pichadas sobre suas lápides. Enquanto os europeus se fecham à vida com taxas de natalidade cada vez mais baixas, negam suas raízes históricas, ignoram o sofrimento dos judeus num passado recente e criam uma subcultura onde o que conta é o prazer, estamos assistindo a uma repetição da mesma degradação pela qual Roma passou e do mesmo modo que os bárbaros no passado, também hoje as ondas migratórias, sobretudo de refugiados muçulmanos promovem o mesmo ocupando espaços, levando sua cultura e sua religião para dentro de um ambiente que já se deixou corroer por ideologias variadas.

A islamização é apenas um sintoma da ruína da sociedade europeia que não percebe que se esse processo continuar, em breve as liberdades que tanto estimam podem ser substituídas por costumes e práticas estranhas à sua índole. O individualismo, o abandono do cristianismo a negação dos direitos da Igreja que edificou a sociedade ocidental, enfim, tudo pode parecer catastrófico, mas na realidade é justamente na ruína que reside o gérmen de renascimento dessa sociedade e isso já está ocorrendo através de tantas iniciativas no campo da cultura, da religião, do direito… O renascimento da cultura ocidental que agora agoniza virá por duas vias: Cristo e o acesso à alta cultura. Chesterton, iminente poeta inglês afirmava que “cada época é salva por um punhado de homens que não tiveram medo de não serem atuais”, justamente porque defendem valores que não passam. A verdade quando é conhecida atrai para si, portanto, sigamos o conselho dado por Cristo: “Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará!” E a Verdade não é tanto um conceito, mas sim uma Pessoa: o próprio Cristo. “Ego sum via, veritas et vita” (Jo 14,6).

L. Raphael Tonon é professor e gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 27 de fevereiro de 2018, Página A2 – Opinião.

Afonso de Ligório

Opinião Pública | 05/08/2018 | | IFE CAMPINAS

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A História e seus personagens não são figuras estanques, presas a uma época e que não podem dialogar com aqueles que vêm depois na linha do tempo. A função clássica da História enquanto área do conhecimento humano está centrada justamente nessa tentativa de reconstruir cenários o mais fielmente possível e de tentar trazer para o presente as lições daquilo que já passou.

No dia 1º de agosto de 1787 morria em Ciorani dei Pagani, sob a vista do Vesúvio, aos noventa anos de idade, Santo Afonso Maria de Ligório. Para além da piedade que os católicos lhe devotam e que sua canonização oficializou, Afonso de Ligório, no dizer do grande historiador francês Jean Delumeau é do número daqueles poucos homens que “brilharam por seu saber, por seu caráter, pela sua bondade e pelo bom uso dos talentos que tinha”. Outro historiador dirá que ele foi “o mais napolitano dos santos e o mais santo dos napolitanos”, ou seja, era uma pessoa plenamente integrada ao seu tempo e à sua cultura, não um idealista descolado da realidade.

Nasceu em 1696, em Nápoles, filho de nobres. Foi o primogênito de sete irmãos e, naturalmente sobre ele recaíram as esperanças do pai para um futuro brilhante. Tinha uma inteligência ímpar, foi educado em casa pelos melhores professores. Aos doze anos conhecia perfeitamente o grego, o latim e outras línguas, conhecia literatura clássica, aprendeu desenho, pintura e música, tocava seis instrumentos diversos. Ainda adolescente ingressou na Universidade de Nápoles, na qual foi aluno de Giambatista Vico e onde formou-se em Direito Civil e Eclesiástico aos dezesseis anos. Advogou numa carreira brilhante por dez anos, nos quais não perdeu nenhuma causa. Findos esses dez anos foi contratado para advogar numa causa em que o juiz foi subornado e atropelou a defesa perfeita do jovem Ligório.

Descendo as escadas do tribunal napolitano repetiu de si para consigo: “adeus tribunais, não me vereis jamais”. Dirigiu-se à Igreja das Mercês e depositou sua espada de nobre aos pés da imagem da Virgem, ali renunciava não só as glórias que o esperavam, mas decidiu ser e agir diferente. Quis tornar-se padre e partir para a China, mas pouco tempo depois mudou de ideia ao notar que nas pequenas aldeias vizinhas, pastores de cabras sabiam tanto das coisas de Deus, quanto suas cabras. Sua “China” ficava ali ao lado. Fundou a Congregação do Santíssimo Redentor para evangelizar os mais pobres e ignorantes, foi eleito bispo, escreveu 111 livros, foi músico- a mais popular canção italiana de Natal “Tu scendi dalla stelle” é de sua autoria – foi pintor, arquiteto, matemático, homem de muitas qualidades. Sua obra mestra foi a Teologia Moral.

Afinal, o que este personagem tem a nos dizer ainda hoje? Certamente tem muito a nos dizer em tempos em que no Brasil assistimos um ativismo jurídico em que os magistrados que deveriam zelar pelo cumprimento da lei a torcem de acordo com suas preferências político-ideológicas. Afonso de Ligório, já no século XVIII abandonou os tribunais pela corrupção com a qual não podia tergiversar; fez do conhecimento um instrumento não para sua glorificação pessoal, mas como um serviço aos mais pobres. Justamente pelo fato de ser um homem cultíssimo, não podia tolerar que as pessoas desconhecessem as verdades mais elementares sobre sua vida, sua condição e sua fé. Foi um gigante do saber, mas já velho lhe perguntaram de qual obra mais se orgulhava ao que ele replicou que, se pudesse faria cópias de um seu pequeno opúsculo intitulado “O grande meio da oração” e distribuiria a cada ser humano, pois estava convicto de que do contato com Deus dependia a felicidade humana. Santo Afonso, por isso, repetiu em vários escritos seus a máxima: “Quem reza se salva, quem não reza se condena”. Em tempos de relativismo, uma pessoa que foi capaz de orientar sua vida a partir de princípios e valores sólidos e usar seu saber como um serviço aos outros também tem muito a nos dizer.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 01/08/2018, Página A-2, Opinião.