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Afonso de Ligório

Opinião Pública | 05/08/2018 | | IFE CAMPINAS

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A História e seus personagens não são figuras estanques, presas a uma época e que não podem dialogar com aqueles que vêm depois na linha do tempo. A função clássica da História enquanto área do conhecimento humano está centrada justamente nessa tentativa de reconstruir cenários o mais fielmente possível e de tentar trazer para o presente as lições daquilo que já passou.

No dia 1º de agosto de 1787 morria em Ciorani dei Pagani, sob a vista do Vesúvio, aos noventa anos de idade, Santo Afonso Maria de Ligório. Para além da piedade que os católicos lhe devotam e que sua canonização oficializou, Afonso de Ligório, no dizer do grande historiador francês Jean Delumeau é do número daqueles poucos homens que “brilharam por seu saber, por seu caráter, pela sua bondade e pelo bom uso dos talentos que tinha”. Outro historiador dirá que ele foi “o mais napolitano dos santos e o mais santo dos napolitanos”, ou seja, era uma pessoa plenamente integrada ao seu tempo e à sua cultura, não um idealista descolado da realidade.

Nasceu em 1696, em Nápoles, filho de nobres. Foi o primogênito de sete irmãos e, naturalmente sobre ele recaíram as esperanças do pai para um futuro brilhante. Tinha uma inteligência ímpar, foi educado em casa pelos melhores professores. Aos doze anos conhecia perfeitamente o grego, o latim e outras línguas, conhecia literatura clássica, aprendeu desenho, pintura e música, tocava seis instrumentos diversos. Ainda adolescente ingressou na Universidade de Nápoles, na qual foi aluno de Giambatista Vico e onde formou-se em Direito Civil e Eclesiástico aos dezesseis anos. Advogou numa carreira brilhante por dez anos, nos quais não perdeu nenhuma causa. Findos esses dez anos foi contratado para advogar numa causa em que o juiz foi subornado e atropelou a defesa perfeita do jovem Ligório.

Descendo as escadas do tribunal napolitano repetiu de si para consigo: “adeus tribunais, não me vereis jamais”. Dirigiu-se à Igreja das Mercês e depositou sua espada de nobre aos pés da imagem da Virgem, ali renunciava não só as glórias que o esperavam, mas decidiu ser e agir diferente. Quis tornar-se padre e partir para a China, mas pouco tempo depois mudou de ideia ao notar que nas pequenas aldeias vizinhas, pastores de cabras sabiam tanto das coisas de Deus, quanto suas cabras. Sua “China” ficava ali ao lado. Fundou a Congregação do Santíssimo Redentor para evangelizar os mais pobres e ignorantes, foi eleito bispo, escreveu 111 livros, foi músico- a mais popular canção italiana de Natal “Tu scendi dalla stelle” é de sua autoria – foi pintor, arquiteto, matemático, homem de muitas qualidades. Sua obra mestra foi a Teologia Moral.

Afinal, o que este personagem tem a nos dizer ainda hoje? Certamente tem muito a nos dizer em tempos em que no Brasil assistimos um ativismo jurídico em que os magistrados que deveriam zelar pelo cumprimento da lei a torcem de acordo com suas preferências político-ideológicas. Afonso de Ligório, já no século XVIII abandonou os tribunais pela corrupção com a qual não podia tergiversar; fez do conhecimento um instrumento não para sua glorificação pessoal, mas como um serviço aos mais pobres. Justamente pelo fato de ser um homem cultíssimo, não podia tolerar que as pessoas desconhecessem as verdades mais elementares sobre sua vida, sua condição e sua fé. Foi um gigante do saber, mas já velho lhe perguntaram de qual obra mais se orgulhava ao que ele replicou que, se pudesse faria cópias de um seu pequeno opúsculo intitulado “O grande meio da oração” e distribuiria a cada ser humano, pois estava convicto de que do contato com Deus dependia a felicidade humana. Santo Afonso, por isso, repetiu em vários escritos seus a máxima: “Quem reza se salva, quem não reza se condena”. Em tempos de relativismo, uma pessoa que foi capaz de orientar sua vida a partir de princípios e valores sólidos e usar seu saber como um serviço aos outros também tem muito a nos dizer.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 01/08/2018, Página A-2, Opinião.