Atuar juridicamente é sempre interpretar. Por isso, costumo dizer que os juízes são, muito antes de meros “aplicadores” da lei, intérpretes do direito. Obviamente, há interpretações e interpretações. Hoje, estão em voga aquelas “achadas na rua” e aquelas tomadas a partir de puros “entes de razão ideológica”.
Ambas não partem de dois dados bens concretos, isto é, a coisa em si a ser interpretada e o texto da lei dimensionado prudencialmente em seu sentido e alcance rumo ao justo concreto. No fundo, são manifestações ideológicas desta ou daquela cartilha chanceladas judicialmente.
Foi o que o STF fez ao aceitar a ADPF 442: a partir daquelas versões de interpretação em moda, nossa maior corte resolveu liderar, como locus não institucional, uma discussão sobre o direito de se matar vidas humanas inocentes. Deixou de ser zelador constitucional e virou ditador constitucional.
Sabemos que a maior parte da existência humana é voltada para uma certa práxis. Diariamente, estamos a exercitar a economia da deliberação. Escolhemos isso e não aquilo. Em suma, discriminamos a todo tempo e, algumas vezes, discriminamos injustamente.
O direito, com um saber prático, encerra toda uma atividade existencial que capta e conforma, por sua vez, umas exigências objetivas de justiça, determinando-as aqui e agora. Positivar o direito é estar disposto a conhecer uma verdade prática, inevitavelmente por se fazer, tomada a partir da interpretação da realidade que nos cerca.
O problema dessa tarefa interpretativa está em buscar as chaves de interpretação da realidade num direito “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”. Como uma espécie de tributo que o erro dessas chaves presta ao acerto, para que não pareçam terminar num beco sem saída, elas sempre passam a recorrer a artifícios semânticos, procedimentais ou consensuais para intentar a justificação de, sobretudo, realidades que não demandem aprioristicamente uma tutela jurídica ou que portem uma ilicitude moral manifesta.
No caso da ADPF 442, o artificio é o de que “seres humanos não nascidos não são pessoas, mas simples criaturas humanas intraútero”. A CF/88 garante não só a inviolabilidade do direito à vida “extrauterina”, mas do direito à vida intrauterina. Seu artigo 5º não faz diferenciação, porque, para o constituinte originário, todas as vidas importam. É uma cláusula pétrea e nem uma emenda poderia flexibilizá-la ou suprimi-la.
O Código Civil reforça a tutela da vida intrauterina ao estabelecer que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Se a vida é um direito inalienável e os direitos do nascituro são resguardados, à luz da atual ordem jurídica, a vida do feto é protegida por lei.
Menos para as cabeças cujos neurônios estão entupidos de um sociologismo ou de uma ideologia que decreta – tiranicamente – a pena de morte a uma pessoa. O feto é o “novo judeu” e essas cabeças lembram a de um “novo Hitler”: estão todo tempo a se ocupar da “solução final” para a “questão fetal”.
Qualquer alteração no status jurídico do nascituro deve ser feita pela sociedade por meio de seus representantes eleitos para criar e alterar as leis. Se o parlamento tem sido acusado de omissão em relação a alguns temas e a sociedade crê que o aborto seja um deles, cabe aos cidadãos exercer pressão para que aqueles representantes se posicionem sobre a questão: projeto de lei, iniciativa popular ou plebiscito. Como foi na Argentina.
A ADPF 442 deveria ter seu pedido negado de plano para que o tema de fundo fosse tratado pelo parlamento. Mas não foi. Agora, ingressamos no mundo da autocracia da inteligência formada pelas cabeças de um punhado de 11 togados letrados.
Uma Suprema Corte tem muitos papéis, mas rasga seu papel principal quando resolve ingressar no mais pedestre ativismo judicial e reescrever a realidade sem base no texto constitucional e na coisa em si, porque, ao cabo, deixa o cidadão “achado na rua”, abraçado, na própria sorte, aos “entes de razão ideológica”. E a democracia vai parar na sarjeta. Ou na lua. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 15/08/2018, Página A-2, Opinião.