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Supremo ativismo

Opinião Pública | 15/08/2018 | | IFE CAMPINAS

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Atuar juridicamente é sempre interpretar. Por isso, costumo dizer que os juízes são, muito antes de meros “aplicadores” da lei, intérpretes do direito. Obviamente, há interpretações e interpretações. Hoje, estão em voga aquelas “achadas na rua” e aquelas tomadas a partir de puros “entes de razão ideológica”.

Ambas não partem de dois dados bens concretos, isto é, a coisa em si a ser interpretada e o texto da lei dimensionado prudencialmente em seu sentido e alcance rumo ao justo concreto. No fundo, são manifestações ideológicas desta ou daquela cartilha chanceladas judicialmente.

Foi o que o STF fez ao aceitar a ADPF 442: a partir daquelas versões de interpretação em moda, nossa maior corte resolveu liderar, como locus não institucional, uma discussão sobre o direito de se matar vidas humanas inocentes. Deixou de ser zelador constitucional e virou ditador constitucional.

Sabemos que a maior parte da existência humana é voltada para uma certa práxis. Diariamente, estamos a exercitar a economia da deliberação. Escolhemos isso e não aquilo. Em suma, discriminamos a todo tempo e, algumas vezes, discriminamos injustamente.

O direito, com um saber prático, encerra toda uma atividade existencial que capta e conforma, por sua vez, umas exigências objetivas de justiça, determinando-as aqui e agora. Positivar o direito é estar disposto a conhecer uma verdade prática, inevitavelmente por se fazer, tomada a partir da interpretação da realidade que nos cerca.

O problema dessa tarefa interpretativa está em buscar as chaves de interpretação da realidade num direito “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”. Como uma espécie de tributo que o erro dessas chaves presta ao acerto, para que não pareçam terminar num beco sem saída, elas sempre passam a recorrer a artifícios semânticos, procedimentais ou consensuais para intentar a justificação de, sobretudo, realidades que não demandem aprioristicamente uma tutela jurídica ou que portem uma ilicitude moral manifesta.

No caso da ADPF 442, o artificio é o de que “seres humanos não nascidos não são pessoas, mas simples criaturas humanas intraútero”. A CF/88 garante não só a inviolabilidade do direito à vida “extrauterina”, mas do direito à vida intrauterina. Seu artigo 5º não faz diferenciação, porque, para o constituinte originário, todas as vidas importam. É uma cláusula pétrea e nem uma emenda poderia flexibilizá-la ou suprimi-la.

O Código Civil reforça a tutela da vida intrauterina ao estabelecer que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Se a vida é um direito inalienável e os direitos do nascituro são resguardados, à luz da atual ordem jurídica, a vida do feto é protegida por lei.

Menos para as cabeças cujos neurônios estão entupidos de um sociologismo ou de uma ideologia que decreta – tiranicamente – a pena de morte a uma pessoa. O feto é o “novo judeu” e essas cabeças lembram a de um “novo Hitler”: estão todo tempo a se ocupar da “solução final” para a “questão fetal”.

Qualquer alteração no status jurídico do nascituro deve ser feita pela sociedade por meio de seus representantes eleitos para criar e alterar as leis. Se o parlamento tem sido acusado de omissão em relação a alguns temas e a sociedade crê que o aborto seja um deles, cabe aos cidadãos exercer pressão para que aqueles representantes se posicionem sobre a questão: projeto de lei, iniciativa popular ou plebiscito. Como foi na Argentina.

A ADPF 442 deveria ter seu pedido negado de plano para que o tema de fundo fosse tratado pelo parlamento. Mas não foi. Agora, ingressamos no mundo da autocracia da inteligência formada pelas cabeças de um punhado de 11 togados letrados.

Uma Suprema Corte tem muitos papéis, mas rasga seu papel principal quando resolve ingressar no mais pedestre ativismo judicial e reescrever a realidade sem base no texto constitucional e na coisa em si, porque, ao cabo, deixa o cidadão “achado na rua”, abraçado, na própria sorte, aos “entes de razão ideológica”. E a democracia vai parar na sarjeta. Ou na lua. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 15/08/2018, Página A-2, Opinião.

Direito, democracia e relativismo

Opinião Pública | 13/12/2017 | | IFE CAMPINAS

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Toda sociedade necessita estabelecer um rol de direitos e deveres que possibilitem o convívio social, o que já foi batizado por alguns juristas e filósofos de “mínimo ético”, demarcando a fronteira entre moral e direito. O problema surge no momento de se obter os critérios prudenciais para resolver se um determinado problema, por sua relevância pública, deve ser regulado pelo direito.

Hoje, busca-se imputar, sem qualquer debate, soluções ideológicas, que se apresentam como neutras, em vários campos sociais. Se, por um lado não cabe impor as próprias convicções aos demais, de outro, que pretensão é essa de almejar que os outros “pensem” por nós?

Visto sob outro ângulo, o jurídico, talvez o panorama fique menos embaçado. Se fosse imaginável uma sociedade em que cada qual pudesse comportar-se segundo um entendimento comum, seria necessário o direito?

O direito existe precisamente para que os cidadãos se comportem de determinado modo, em que pese seu escasso convencimento a respeito. Para quem está certo de que a defesa de seus heroicos ideais políticos justifica valas de cadáveres, o direito tentará dissuadi-lo com as sanções e as contramedidas oportunas.

A democracia, na qual se insere o direito, não é relativista e isso é perfeitamente compatível com o reconhecimento do pluralismo como “valor supremo de uma sociedade fraterna e sem preconceitos”, segundo dispõe o preâmbulo da Lei Maior. O direito apresenta-se sempre como um mínimo ético, o que exclui, de início, que os demais devam compartilhar de nossas mais apreciadas máximas.

Contudo, mesmo esse mínimo ético deverá balizar-se por meio de procedimentos que não convertam o cidadão em um mero destinatário passivo de mandatos heterônomos. A criação do direito deverá estar sempre alimentada pela existência de uma opinião pública livre, o que converte determinadas liberdades públicas, sobretudo as de informação e expressão, em algo mais que simples direitos fundamentais: serão também garantias institucionais do próprio sistema político.

Isso não implica em relativismo algum. A democracia não deriva do convencimento de que nada é verdade nem mentira, ideia que, para alguns, deveria impor-se aos demais. A democracia apresenta-se como a fórmula de governo mais verdadeiramente adequada à dignidade humana em nossa concretude existencial e, em consequência, recorrerá, se necessário for, ao direito para manter na linha os comportamentos daqueles que não se mostrem demasiado convencidos disso.

A democracia não deriva sequer da constatação de que o acesso à verdade resulta, principalmente em questões históricas e contingentes, num labor notavelmente problemático. Ela se apoia num dado empírico: a dignidade humana exclui que se possa prescindir-se da livre participação do cidadão em tão relevante jornada.

Quando se identifica democracia com relativismo, qualquer um que insinue, ainda que remotamente, que algo possa ser mais verdadeiro que o do outro, logo será visto como um inimigo. O mais curioso da questão reside no fato de que, ao arrepio do princípio da não-contradição, o relativismo será convertido num valor absoluto subtraído de toda espécie de crítica.

Para aqueles que apresentam dificuldade em fazer compatível democracia e verdade, Churchill dizia que a democracia é o pior de todos os regimes, excetuados todos os outros. A sabedoria de tal afirmação está no fato de que a política democrática não é a resposta última para os fins últimos do homem.

Entretanto, ela é muito superior às outras formas de política, porque possibilita o respeito à dignidade humana, a proteção dos direitos do homem, a promoção de um ethos de paz, o controle e a substituição dos governantes e o zelo pela justiça social. Além disso, a democracia está aberta ao futuro e oferece um grande espaço para o exercício da responsabilidade pessoal e a busca do bem comum.

De fato, são tantos bens que a democracia proporciona, que resulta difícil ter algum pendor pelos outros regimes, embora haja muitos que estão apenas esperando a democracia enfraquecer para mostrar sua verdadeira máscara autoritária.

Porque sabem que uma democracia, tal como hoje é vista, fundada apenas no procedimentalismo e no primado do princípio da maioria, é uma democracia incapaz de sustentar os pressupostos morais e valorativos sobre os quais a mesma democracia busca erguer-se e, principalmente, sustentar-se. Nessa tarefa e nesse desafio, o direito não pode dar uma de avestruz. Deve dar respostas que nos afastem da barbárie relativista. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 13/12/2017, Página A-2, Opinião.

Diretas já?

Direito| Opinião Pública | 31/05/2017 | | IFE CAMPINAS

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Crise (econômica, política, ética) é a palavra que vem definindo o Brasil de alguns anos pra cá. Os irmãos Joesley e Wesley Batista, que antes tivessem feito fama como dupla sertaneja, são a cereja da vez deste bolo chamado crise, na medida em que suas delações comprometem seriamente Michel Temer. Milhões de pessoas e diversas instituições importantes, em todo o Brasil, voltaram a pedir o mesmo de pouco tempo atrás, a renúncia do presidente ou seu afastamento compulsório, via impeachment.

É no meio deste cenário turbulento que um estranho clamor começa a surgir, pedindo eleições diretas já. O clamor é estranho, pois nossa Constituição, de 1988, traz dois dispositivos, os artigos 80 e 81, os quais expressamente estabelecem que, se a vacância dos cargos de presidente e vice-presidente ocorrer nos últimos dois anos do período presidencial (que é o caso), a eleição para ambos será realizada pelo Congresso Nacional.

Em termos práticos, isso quer dizer que caso Temer renuncie ou sofra o impeachment, o presidente da Câmara dos Deputados, cargo atualmente preenchido por Rodrigo Maia, assumirá o exercício da presidência temporariamente para que, em trinta dias, realize eleições indiretas, cujos eleitores votantes serão unicamente os membros do Congresso.

A primeira consideração que se faz diante do atual pedido de eleições diretas é a mais óbvia, de que é flagrantemente inconstitucional. Caso esse clamor fosse ouvido e de fato os brasileiros fossem convocados para votarem diretamente, antes do período eleitoral de 2018, não haveria dúvidas de que se estaria diante de um autêntico golpe.

Por mais que soe democrático o grito pelas diretas já, a verdade é que não há nada de democrático em defender que se viole a Constituição. Alegar que eleições diretas seriam o melhor para o país neste momento, além de seriamente duvidoso, tendo em vista a ausência de candidatos minimamente razoáveis no atual cenário, não pode ser argumento para que se passe por cima do texto constitucional.

A saída mais coerente para os defensores das diretas já encontra suporte em dois mecanismos. O primeiro seria utilizar o texto do parágrafo único, do artigo primeiro da Constituição, que diz que “todo poder emana do povo”, como fundamento principiológico da tese de que, se o povo quiser, pode-se, então, realizar as eleições diretas. O segundo mecanismo é via emenda constitucional, ou seja, se a Constituição diz que não pode, basta mudá-la para que diga que possa.

O primeiro expediente é, data vênia, absurdo. Utilizar do texto constitucional pra violar completamente o texto constitucional é, no mínimo, contraditório. Ademais, a expressão “todo poder emana do povo” não está isolada na Constituição, pois seu complemento esclarece que esse poder é exercido “por meio de seus representantes eleitos”. A eleição indireta prevista no artigo 81 é o perfeito exemplo desse poder do povo sendo exercido por seus representantes, seja isso o melhor ou não. Aliás, e apenas a título de argumentação, é através da interpretação desmedida de um argumento como “todo poder emana do povo”, que se poderia aprovar, mesmo sem previsão constitucional para tanto, por exemplo, a pena de morte, o uso de torturas, a discriminação de pessoas…

O segundo mecanismo transformaria o pedido de diretas já em formalmente válido e possível, mas seriamente dúbio e discutível se bem refletido, além de oportunista. Afinal, alcançar-se-ia a mudança de um dispositivo da Constituição (artigo 81) que foi propositalmente alterado na primeira oportunidade em que teria sua efetiva aplicação, tendo em vista que nunca ocorreram eleições indiretas, desde a Constituição de 1988. E pior, teria que ser alterado pelo mesmo Congresso em crise de legitimidade que realizaria as eleições indiretas. Essa troca de seis por meia dúzia evidencia como o argumento das diretas já é falacioso quando utilizado como salvação para a superação dos entraves políticos e institucionais que os brasileiros estão passando.

Quer solução para os dilemas e crises atuais? Então que se comece por respeitar e preservar a Constituição. Qualquer caminho ou atalho que fuja disso é democraticamente suspeito. Continua defendendo as diretas já? Paciência! Espere 2018. Esse é o ônus de quando se observa as regras do jogo democrático. Afinal, já se dizia que “a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas” (Winston Churchill).

Marcos José Iorio de Moraes é bacharel em Direito pela PUC-Campinas, bacharel em História pela Unicamp e membro do IFE Campinas. (marcos.jimoraes@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 31/05/2017, Página A-2, Opinião.

Laicidade, religião e democracia (por Cesar Alberto Ranquetat Júnior)

Política e Sociologia | 01/07/2016 | | IFE CAMPINAS

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Imagem: reprodução da publicação no site da revista-livro Dicta & Contradcita.

Imagem: reprodução da publicação no site da revista-livro Dicta & Contradcita.

 

Quando tratamos sobre a laicidade estamos lidando com a espinhosa e disputada questão acerca das relações entre Estado e religião, assim como a respeito do lugar e do papel da religião em uma sociedade.

Uma primeira observação a ser feita é a seguinte: não há um único modelo e padrão nas relações entre Estado e religião na atualidade. Múltiplos e variados são os arranjos entre Estado e organizações religiosas. Há, grosso modo, o conhecido modelo francês da laïcité caracterizado pela rígida separação entre Estado e religião, o modelo de religiões oficiais e estabelecidas presente em boa parte dos países da Europa protestante e ortodoxa e o modelo de separação formal entre o poder público e a religião existente nos países de tradição católica. Podemos, ainda, acrescentar dois outros arranjos; o modelo de Estado teocrático, cujas principais características são o controle do aparelho estatal por uma elite sacerdotal e a confecção de normas jurídicas e legais baseadas em uma específica tradição religiosa, como, sob determinado aspecto, ocorre na República Islâmica do Irã. E o modelo que foi implantado em países comunistas, como por exemplo, na antiga URSS, de Estados oficialmente ateus e, desta forma, antirreligiosos.

Uma segunda observação diz respeito a um mais apropriado entendimento do princípio da laicidade estatal. Neste ponto a ampla literatura sociológica, antropológica, historiográfica, politológica afirma que o Estado laico não é um Estado hostil ao fenômeno religioso. Não se trata de um Estado completamente imune à influência da religião, mas apenas não  vinculado a uma confissão religiosa em particular. É um Estado não clerical, não confessional, que busca tratar com isonomia todos os grupos religiosos, garantindo a liberdade de consciência, a liberdade de crença e a liberdade de expressão da crença religiosa. Deste modo, o Estado laico não é um Estado ateu ou indiferente ao religioso. É uma forma de organização estatal, política e jurídica que, embora, não relacionada diretamente a uma confissão religiosa, reconhece a dimensão pública da religião. Este modo de “separação flexível”, que vigora em boa parte dos países europeus, não reduz o religioso à mera intimidade das consciências, fazendo da religião assunto privado, mas entende que as religiões, todas elas, podem se beneficiar, simbólica e financeiramente, do apoio do poder público, conforme afirma o cientista político Philippe Portier. Sintetizando, laicidade não significa a exclusão total da religião do espaço público. Em contraste com a laicidade temos o laicismo, uma forma agressiva e anti-religiosa de organização estatal e social. O laicismo é uma forma de religião política, que objetiva substituir os valores, símbolos e ritos religiosos por uma nova simbologia cívica e secular.

A terceira observação a ser feita refere-se ao equivocado argumento defendido por certos atores secularistas de que a religião torna-se um fator perturbador e problemático quando adentra o espaço público; ou seja, quando participa ativamente e influencia nos debates políticos, jurídicos e morais. Para os secularistas, a religião deveria restringir-se, em uma sociedade democrática e completamente laicizada, unicamente à esfera privada. Ocorre que, ao contrário do que argumentam estes atores, a religião não é em si mesma problemática para a democracia. De acordo com o sociólogo José Casanova, um dos mais prestigiados estudiosos da temática aqui tratada, tomar como pressuposto que a democracia deva ser secular é que é problemático, é este tipo de afirmação que tende a fazer da religião um problema. A existência de uma organização societal e de um aparato jurídico e político fortemente secularizado, não é uma condição necessária e suficiente para a democracia. De acordo com Casanova, às vezes encontramos regimes democráticos em sociedades não seculares onde a influência e a vitalidade da religião nas diversas esferas sociais são significativas, como é o caso dos Estados Unidos. Além disso, existem democracias com Estados vinculados formalmente a uma religião, como é o caso do anglicanismo na Inglaterra e do protestantismo luterano nos países nórdicos.  Por outro lado, muito frequentemente presencia-se sociedades amplamente secularizadas, com Estados laicistas, mas sem regimes democráticos, como foi o caso dos países comunistas no leste europeu e da Turquia de Mustafa Kemal Atatürk na década de 1920.

Além disso, cabe observar que os mais terríveis e sangrentos conflitos do século XX foram produtos de ideologias políticas seculares nascidas na modernidade, como o nazismo alemão, o comunismo soviético, o maoísmo chinês, o republicanismo na Espanha na década de 1930, para ficarmos somente em alguns exemplos. Sendo assim, há também uma intolerância e violência secularista. O secularismo e a laicidade não são garantias de sociedades democráticas, pacíficas e liberais. Por sua vez, a participação e atuação de atores e discursos religiosos no espaço público, bem como a relação de proximidade entre Estado e grupos religiosos não significa, necessariamente, autoritarismo, anacronismo e passionalidade irracional. As tradições religiões não detêm o monopólio da violência e não são intrinsecamente intolerantes e repressivas, pelo contrário.

No que tange especificamente ao caso brasileiro sublinho que do ponto de vista estritamente jurídico e constitucional, o modelo de laicidade adotado pelo Estado brasileiro é de uma laicidade positiva ou de reconhecimento, que não exclui por completo o religioso da esfera pública, reconhecendo na dimensão religiosa um aspecto importante na formação do cidadão. Apesar da Carta Magna de 1988 estabelecer a separação entre Estado e religião e a consequente liberdade de crença, há outros dispositivos constitucionais e leis federais que asseguram a presença da religião no espaço público, como aquele que diz respeito ao ensino religioso nas escolas públicas. Acrescenta-se a isto a invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 e a possibilidade de assistência religiosa nas organizações civis e militares de internação coletiva. Desse modo, o religioso não é tratado com indiferença ou hostilidade, mas, pelo contrário, é concebido como um valor positivo. Nosso modelo de laicidade não apresenta um conteúdo contrário e de oposição às crenças religiosas, pois não impede a colaboração com as confissões religiosas para o interesse público (CF, art. 19, I). Além disso, acolhe expressamente medidas de ação conjunta dos Poderes Públicos com organizações religiosas, reconhecendo como oficiais determinados atos praticados no âmbito dos cultos religiosos, como, por exemplo, o caso da extensão de efeitos civis do casamento religioso.

Como conclusão deste artigo é indispensável algumas reflexões sobre o lamentável episódio ocorrido em 27 de julho no Rio de Janeiro, em plena realização do multitudinário evento católico da Jornada Mundial da Juventude, quando alguns integrantes da chamada “Marcha das Vadias”, em um infeliz momento de vandalismo ensandecido, escarneceram, ultrajaram e injuriaram símbolos cristãos.  Este episódio é ilustrativo, pois evidencia a faceta radical e intolerante de certos setores secularistas. Na verdade estes atos de iconoclastia e hagiofobia anticristã revelam que, em muitos casos, a defesa contumaz e agressiva  de um Estado laicista, não se cinge unicamente na instauração de uma ordem política e jurídica neutral em matéria religiosa. Mas, na verdade, tenciona uma profunda mutação dos valores culturais de uma determinada sociedade. O laicismo antirreligioso e anticristão ancora-se num projeto metapolítico abrangente, numa determinada visão do homem e do mundo. Sendo assim, não visa apenas distinguir e separar os assuntos religiosos dos assuntos temporais, mas procura de maneira tenaz e calculada eliminar, extirpar e derruir por completo qualquer presença de símbolos e valores religiosos existentes em dada sociedade. Como já alertava o renomado filósofo Norberto Bobbio: “[…] o laicismo que  necessita armar-se e organizar-se corre o risco de converter-se numa igreja enfrentado as demais igrejas”.

Cesar Alberto Ranquetat Júnior é Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Ciências Humanas na Universidade Federal do Pampa – Campus Itaqui.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação (IFE), Dicta & Contradicta, link: http://www.dicta.com.br/laicidade-religiao-e-democracia, em 28 de Junho de 2016.

Governo, partido e nariz

Opinião Pública | 23/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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Numa roda de conversa entre amigos, um deles, cujas ideias políticas o alçam à condição muito peculiar de um dos últimos representantes ativos das experiências totalitárias passadas, disse que a democracia brasileira, de tão corrompida por todos os partidos, deveria ser liquidada pelo impedimento da atual presidente e, depois, nas próximas eleições, pela força massiva do voto em branco. A democracia está em crise então?

Aqui, paira uma confusão bem típica dos tempos modernos: confundir o mecanismo com a essência. Quando o sujeito fala de democracia, muitas vezes, fala de, implicitamente, igualdade, justiça, liberdade, solidariedade, bem comum, moralidade e outros valores tão caros para as sociedades ocidentais. Sem dúvida, estes bens morais asseguram a perenidade de uma democracia e, por assim dizer, quando fomentados num ambiente democrático, reforçam-na, numa espécie de círculo virtuoso.

Quando tais bens morais escasseiam, o principal mecanismo democrático – o princípio majoritário, segundo a regra “uma cabeça, um voto” – é capaz de, democraticamente, conduzir uma democracia à liquidação de si mesma, como na Alemanha de Weimar.

Se o problema, para esse meu amigo com pendores nostálgicos totalitários, é a corrupção endêmica nas estruturas governamentais e nos poderes Executivo e Legislativo, logo, não é a democracia que precisa ser revista, mas a qualidade dos valores que hoje a sustentam, algo que demanda algum tempo, sem prejuízo, num primeiro momento, da defenestração dos ocupantes dos cargos políticos que são coniventes com esse quadro moral pouco animador, o que pode e deve ser feito em prol do bem comum de nossa sociedade.

Aliás, essa capacidade de expulsar, da arena legislativa ou executiva, os políticos e os partidos que confundem o público com o privado ou o governamental com o partidário é um dos mais grandiosos atributos da mecânica processual democrática: punem-se os maus políticos e premiam-se os bons, sem a necessidade de qualquer recurso às revoluções “gloriosas”, medidas autoritárias, golpes sanguinários ou comitês de salvação nacional. Nem tampouco ao banho de sangue que costuma se seguir às ações dos espíritos iluminados pelos precedentes de Danton, Robespierre e Guillotin.

Por isso, convém sempre manter um estado constante de crítica à classe política e, para o caso de políticos que desfilem com muita desenvoltura na passarela dos tipos penais ou de improbidade administrativa, uma certa desconfiança generalizada, mormente se, mesmo condenados judicialmente, seu partido sequer cogitou de expulsá-los da sigla ou, não raro, com eles se solidarizaram.

Mas voltemos ao problema da corrupção endêmica, que produz o pior efeito que pode acontecer para uma sociedade democrática: a “coisa pública” deixa de ser pública para pertencer ao domínio de uns tantos poucos, sejam empreiteiros, carreiristas de cargos públicos ou companheiros de partido. A máxima de Lord Acton – o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente – é muito repetida e com razão.

A busca da perfectibilidade moral na órbita democrática moderna tende a ser uma tarefa possível, se comparada com uma órbita totalitária, que já é a corrupção em si mesma. Mas não é fácil, pois o jogo democrático trabalha com duas cartas, a do poder político e a do poder econômico que, como toda carta, tem duas faces: a face nominal e a face real. Quando a face real está corrompida em ambas as cartas, o jogo democrático leva um truco da corrupção endêmica.

Um bom começo de saída desse quadro desolador está em abrir os olhos para os limites e os reducionismos do relativismo moral, o mal de fundo dessa corrupção endêmica que, no frigir dos ovos, confunde os limites da retidão no trato da coisa pública e proporciona, como efeito, o cinismo mais impune: basta abrir os jornais dos últimos tempos.

E, antes de abrir os olhos, no processo de impedimento que se descortina, pressionar seu representante legislativo, demitindo, sem contestação, novos ou os mesmos projetos políticos que pretendem fazer do governo do povo, pelo povo e para o povo num governo do partido, para o partido e pelo partido. Qualquer que seja o partido. Afinal, nessa situação, como já lembrava Orwell, é preciso uma luta constante para ver o que existe bem na frente de nosso nariz. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 23/3/2016, página A-2, Opinião.