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Diretas já?

Direito| Opinião Pública | 31/05/2017 | | IFE CAMPINAS

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Crise (econômica, política, ética) é a palavra que vem definindo o Brasil de alguns anos pra cá. Os irmãos Joesley e Wesley Batista, que antes tivessem feito fama como dupla sertaneja, são a cereja da vez deste bolo chamado crise, na medida em que suas delações comprometem seriamente Michel Temer. Milhões de pessoas e diversas instituições importantes, em todo o Brasil, voltaram a pedir o mesmo de pouco tempo atrás, a renúncia do presidente ou seu afastamento compulsório, via impeachment.

É no meio deste cenário turbulento que um estranho clamor começa a surgir, pedindo eleições diretas já. O clamor é estranho, pois nossa Constituição, de 1988, traz dois dispositivos, os artigos 80 e 81, os quais expressamente estabelecem que, se a vacância dos cargos de presidente e vice-presidente ocorrer nos últimos dois anos do período presidencial (que é o caso), a eleição para ambos será realizada pelo Congresso Nacional.

Em termos práticos, isso quer dizer que caso Temer renuncie ou sofra o impeachment, o presidente da Câmara dos Deputados, cargo atualmente preenchido por Rodrigo Maia, assumirá o exercício da presidência temporariamente para que, em trinta dias, realize eleições indiretas, cujos eleitores votantes serão unicamente os membros do Congresso.

A primeira consideração que se faz diante do atual pedido de eleições diretas é a mais óbvia, de que é flagrantemente inconstitucional. Caso esse clamor fosse ouvido e de fato os brasileiros fossem convocados para votarem diretamente, antes do período eleitoral de 2018, não haveria dúvidas de que se estaria diante de um autêntico golpe.

Por mais que soe democrático o grito pelas diretas já, a verdade é que não há nada de democrático em defender que se viole a Constituição. Alegar que eleições diretas seriam o melhor para o país neste momento, além de seriamente duvidoso, tendo em vista a ausência de candidatos minimamente razoáveis no atual cenário, não pode ser argumento para que se passe por cima do texto constitucional.

A saída mais coerente para os defensores das diretas já encontra suporte em dois mecanismos. O primeiro seria utilizar o texto do parágrafo único, do artigo primeiro da Constituição, que diz que “todo poder emana do povo”, como fundamento principiológico da tese de que, se o povo quiser, pode-se, então, realizar as eleições diretas. O segundo mecanismo é via emenda constitucional, ou seja, se a Constituição diz que não pode, basta mudá-la para que diga que possa.

O primeiro expediente é, data vênia, absurdo. Utilizar do texto constitucional pra violar completamente o texto constitucional é, no mínimo, contraditório. Ademais, a expressão “todo poder emana do povo” não está isolada na Constituição, pois seu complemento esclarece que esse poder é exercido “por meio de seus representantes eleitos”. A eleição indireta prevista no artigo 81 é o perfeito exemplo desse poder do povo sendo exercido por seus representantes, seja isso o melhor ou não. Aliás, e apenas a título de argumentação, é através da interpretação desmedida de um argumento como “todo poder emana do povo”, que se poderia aprovar, mesmo sem previsão constitucional para tanto, por exemplo, a pena de morte, o uso de torturas, a discriminação de pessoas…

O segundo mecanismo transformaria o pedido de diretas já em formalmente válido e possível, mas seriamente dúbio e discutível se bem refletido, além de oportunista. Afinal, alcançar-se-ia a mudança de um dispositivo da Constituição (artigo 81) que foi propositalmente alterado na primeira oportunidade em que teria sua efetiva aplicação, tendo em vista que nunca ocorreram eleições indiretas, desde a Constituição de 1988. E pior, teria que ser alterado pelo mesmo Congresso em crise de legitimidade que realizaria as eleições indiretas. Essa troca de seis por meia dúzia evidencia como o argumento das diretas já é falacioso quando utilizado como salvação para a superação dos entraves políticos e institucionais que os brasileiros estão passando.

Quer solução para os dilemas e crises atuais? Então que se comece por respeitar e preservar a Constituição. Qualquer caminho ou atalho que fuja disso é democraticamente suspeito. Continua defendendo as diretas já? Paciência! Espere 2018. Esse é o ônus de quando se observa as regras do jogo democrático. Afinal, já se dizia que “a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas” (Winston Churchill).

Marcos José Iorio de Moraes é bacharel em Direito pela PUC-Campinas, bacharel em História pela Unicamp e membro do IFE Campinas. (marcos.jimoraes@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 31/05/2017, Página A-2, Opinião.

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Opinião Pública | 07/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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Na sessão final do processo de impedimento da ex-presidente, malgrado sua aprovação, pudemos notar que, em termos circenses, o Senado Federal não ficou muito atrás da inesquecível sessão que fez culminar a primeira parte do mesmo processo, dado no plenário da Câmara do Deputados. No afã de se reconhecer as lambanças criminais da ex-presidente, outras exóticas lambanças foram cometidas nas duas sedes de nosso sistema bicameral.

Na Câmara, fomos brindados pelas mais curiosas invocações disso e daquilo no momento da votação final, a demonstrar o baixo nível vocacional e moral de nossos deputados. Antes fosse só isso. Agora, no Senado, um rol de personagens da vida política, dado a desfilar na passarela do código penal, aproveitou a ocasião para nos oferecer um gran finale típico das repúblicas bananeiras. Com o beneplácito judicial, para meu assombro, porque, ao final, servirá para se perpetuar a impunidade que caracteriza nosso sistema político. Resta saber se, comparativamente, o tamanho de cada uma das lambanças conta.

Ao prever que, no julgamento pelo crime de responsabilidade de um presidente, a condenação “somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, limitando-se à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”, a Constituição, nesse artigo, atribui ao Senado a missão de julgar o réu por um quórum qualificado e, ao mesmo tempo, retira-lhe a capacidade de dispor sobre as consequências do julgamento, tidas como efeito necessário no caso de condenação.

Salvo se o sentido semântico da preposição “com” ganhou significado oposto àquele que está na cabeça de todo ser alfabetizado na língua portuguesa, não dá para concluir outra inferência, na interpretação deste artigo, senão que a inabilitação para o exercício de função pública acompanha, necessariamente, a perda do cargo de presidente. Mas aquele rol de personagens resolveu inovar e “fatiou” a votação final em dois quesitos. A racionalidade jurídica também restou fatiada: eu vi uma “emenda constitucional” (rectius: processo informal de mutação constitucional) sendo “elaborada” por um “acordão” autorizado pelos presidentes do Senado e do STF. Para desespero do Direito Constitucional.

Para Popper, o mecanismo do impedimento, nas democracias ocidentais, é um problema eminentemente prático: ele procura remover os maus governantes sem derramamento de sangue. Por aqui, creio que nosso filósofo diria que o impedimento também é um problema eminentemente semântico: com a carta constitucional reescrita por um bando de ilustrados manetas na língua portuguesa, o resultado da ópera – bufa e trágica – havida no Senado poderia ser assemelhado a alguém que foi demitido por justa causa, mas que poderá sacar o FGTS e receber o seguro-desemprego.

O episódio da votação final expõe a inesgotável capacidade da classe política nacional de trair a confiança dos cidadãos brasileiros e corrigir uma lambança com outra é apenas uma forma de perpetuar nossa perplexidade diante desse cenário político em que vivemos. Ao cabo, quem disse que o tamanho não conta, não estava a pensar no Brasil: gigante pela própria natureza e pelas próprias lambanças morais de seus políticos.

Nessas turvas sendas, notamos que suas entrelinhas servem para retratar a desfaçatez dos políticos de Pindorama por seus habitantes. Aqui, tamanho também não conta, sobretudo quando a conta do castigo pelo crime – a inabilitação – vira um tamanho “pindura”, já que, afinal, “não é possível se viver com uma aposentadoria de cinco mil reais”, “não podemos ser desumanos” e, ainda, “corre-se o risco de sequer se assumir um cargo de merendeira de escola pública”.

Respondo à minha indagação. O tamanho das pedaladas ficou ofuscado pelo tamanho do caradurismo do golpe final. Aliás, de fato, tudo não passou de um golpe, cujo tamanho também não conta. Um golpe de mestre contra a Constituição Federal (agora, Constituição Fatiada), porque foi perdido o cargo público, mas não o direito de se permanecer público num outro cargo. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 07/09/2016, Página A-2, Opinião.