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A mordaça de César

Opinião Pública | 06/12/2017 | | IFE CAMPINAS

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Conversava com um colega de profissão sobre a adoção da pena de morte como solução para a criminalidade de nossa pátria amada. Quando eu disse ser contra, ele respondeu: “Eu gostaria de ouvir uma solução racional. E não a religiosa.”. É uma posição que contrapõe fé e razão, uma falácia muito em voga e que parte do suposto de que o dado religioso merece a sarjeta no debate público.

Mirar retrospectivamente na história das ideias do mundo ocidental torna muito mais serena a valoração dos acontecimentos presentes. Desse modo, ao se colocar cada ideia em seu devido lugar – muitas delas bem velhas, mas sob nova vestimenta – preservamo-nos de cair numa atitude cética ou pessimista. É o caso do ressurgimento dos ventos do laicismo, atitude que está nas entrelinhas daquela resposta.

A onda laicista deve ser contemplada e valorada à luz de experiências históricas, a fim de se poder calibrar adequadamente tanto os eixos de suas raízes, como seus efeitos e consequências, mas, sobretudo, bem captar, com sentido de responsabilidade, o papel que cada um de nós deve assumir, com fortaleza e audácia intelectuais, diante dos novos desafios que o fenômeno laicista impõe-nos nessas circunstâncias históricas específicas.

A atuação governamental que tangencia um ateísmo prático em vários setores sociais, a verve legiferante anticlerical ou pautada numa liberdade de indiferença e mesmo o ativismo judicial alimentado por um certo banimento da religião na esfera pública demonstram um modo comum de pensar e agir, a ter cada vez mais eco na opinião pública e no ambiente cultural.

Esse modo comum consiste no mantra da exigência de neutralidade religiosa estatal como condição necessária para o exercício da liberdade do cidadão de escolher (ou não) e praticar a religião que lhe pareça oportuna e, como efeito disso, a partir de tais razões, concluir-se, falsamente, que a dita neutralidade equivale a uma opção proibitiva do dado religioso no espaço público.

Esse equívoco inescusável confunde a muitos e faz com que toda e qualquer expressão de religiosidade reste amotinada ao âmbito doméstico. Na realidade, essa falácia não só não favorece a liberdade religiosa do cidadão como, por outro lado, impede-o de exercer essa garantia constitucional concretamente.

Não nos esqueçamos de que o espaço público não corresponde ao âmbito estatal, mas à comunidade, formada por pessoas que têm essa ou aquela opção religiosa ou mesmo nenhuma, as quais esperam, do ente estatal, um campo aberto para dar cabo à sua livre expressão religiosa, sem que isso signifique em absoluto a imposição do próprio credo religioso àqueles que não o compartilhem.

Também ressaltamos que, nas entrelinhas desse espírito laicista, paira um dado fenomênico incontroverso: a “cristofobia”, uma tendência antirreligiosa com orientação precisa e exclusiva contra o cristianismo, em regra, disfarçada de paródia do sagrado como uma espécie de liberdade pública.

A religião não é inimiga do homem e nem de sua liberdade. Nietzsche e Sartre – o primeiro debruçado sobre a questão dos valores e, o segundo, sobre a essência humana – proclamaram, cada qual de seu modo, que a ausência do divino priva a moral de todo sustento. Mas não é só.

Resta saber, nessa quadra histórica em que vivemos, se as ideias basilares de nossa cultura – liberdade, igualdade, responsabilidade, dever, valor, justiça, alteridade, dignidade, pessoa humana, entre tantas outras – podem seguir sendo como tais, sem as crenças substantivas de matriz cristã em que descansam seu alcance e sentido, mesmo porque a tradução ou a apropriação filosófica de tais conceitos, na lição de Habermas, nunca dissolve, por completo, o elemento religioso original e fundante daquele sentido e alcance.

O laicismo não é só um ataque à religião. É pior: um ataque à liberdade de expressão. Aliás, isso nos diferencia do resto, a começar pelo Islã. Ao invés da punição pelo desvio à fé oficial, o Ocidente, depois muito conflito intelectual e muito sangue derramado, entendeu as vantagens de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Se persistimos na destruição desse patrimônio civilizacional, em nome de “soluções racionais”, nem um milagre do Altíssimo nos salvará da intolerância e da decadência.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 06/12/2017, Página A-2, Opinião.

Laicidade, religião e democracia (por Cesar Alberto Ranquetat Júnior)

Política e Sociologia | 01/07/2016 | | IFE CAMPINAS

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Imagem: reprodução da publicação no site da revista-livro Dicta & Contradcita.

Imagem: reprodução da publicação no site da revista-livro Dicta & Contradcita.

 

Quando tratamos sobre a laicidade estamos lidando com a espinhosa e disputada questão acerca das relações entre Estado e religião, assim como a respeito do lugar e do papel da religião em uma sociedade.

Uma primeira observação a ser feita é a seguinte: não há um único modelo e padrão nas relações entre Estado e religião na atualidade. Múltiplos e variados são os arranjos entre Estado e organizações religiosas. Há, grosso modo, o conhecido modelo francês da laïcité caracterizado pela rígida separação entre Estado e religião, o modelo de religiões oficiais e estabelecidas presente em boa parte dos países da Europa protestante e ortodoxa e o modelo de separação formal entre o poder público e a religião existente nos países de tradição católica. Podemos, ainda, acrescentar dois outros arranjos; o modelo de Estado teocrático, cujas principais características são o controle do aparelho estatal por uma elite sacerdotal e a confecção de normas jurídicas e legais baseadas em uma específica tradição religiosa, como, sob determinado aspecto, ocorre na República Islâmica do Irã. E o modelo que foi implantado em países comunistas, como por exemplo, na antiga URSS, de Estados oficialmente ateus e, desta forma, antirreligiosos.

Uma segunda observação diz respeito a um mais apropriado entendimento do princípio da laicidade estatal. Neste ponto a ampla literatura sociológica, antropológica, historiográfica, politológica afirma que o Estado laico não é um Estado hostil ao fenômeno religioso. Não se trata de um Estado completamente imune à influência da religião, mas apenas não  vinculado a uma confissão religiosa em particular. É um Estado não clerical, não confessional, que busca tratar com isonomia todos os grupos religiosos, garantindo a liberdade de consciência, a liberdade de crença e a liberdade de expressão da crença religiosa. Deste modo, o Estado laico não é um Estado ateu ou indiferente ao religioso. É uma forma de organização estatal, política e jurídica que, embora, não relacionada diretamente a uma confissão religiosa, reconhece a dimensão pública da religião. Este modo de “separação flexível”, que vigora em boa parte dos países europeus, não reduz o religioso à mera intimidade das consciências, fazendo da religião assunto privado, mas entende que as religiões, todas elas, podem se beneficiar, simbólica e financeiramente, do apoio do poder público, conforme afirma o cientista político Philippe Portier. Sintetizando, laicidade não significa a exclusão total da religião do espaço público. Em contraste com a laicidade temos o laicismo, uma forma agressiva e anti-religiosa de organização estatal e social. O laicismo é uma forma de religião política, que objetiva substituir os valores, símbolos e ritos religiosos por uma nova simbologia cívica e secular.

A terceira observação a ser feita refere-se ao equivocado argumento defendido por certos atores secularistas de que a religião torna-se um fator perturbador e problemático quando adentra o espaço público; ou seja, quando participa ativamente e influencia nos debates políticos, jurídicos e morais. Para os secularistas, a religião deveria restringir-se, em uma sociedade democrática e completamente laicizada, unicamente à esfera privada. Ocorre que, ao contrário do que argumentam estes atores, a religião não é em si mesma problemática para a democracia. De acordo com o sociólogo José Casanova, um dos mais prestigiados estudiosos da temática aqui tratada, tomar como pressuposto que a democracia deva ser secular é que é problemático, é este tipo de afirmação que tende a fazer da religião um problema. A existência de uma organização societal e de um aparato jurídico e político fortemente secularizado, não é uma condição necessária e suficiente para a democracia. De acordo com Casanova, às vezes encontramos regimes democráticos em sociedades não seculares onde a influência e a vitalidade da religião nas diversas esferas sociais são significativas, como é o caso dos Estados Unidos. Além disso, existem democracias com Estados vinculados formalmente a uma religião, como é o caso do anglicanismo na Inglaterra e do protestantismo luterano nos países nórdicos.  Por outro lado, muito frequentemente presencia-se sociedades amplamente secularizadas, com Estados laicistas, mas sem regimes democráticos, como foi o caso dos países comunistas no leste europeu e da Turquia de Mustafa Kemal Atatürk na década de 1920.

Além disso, cabe observar que os mais terríveis e sangrentos conflitos do século XX foram produtos de ideologias políticas seculares nascidas na modernidade, como o nazismo alemão, o comunismo soviético, o maoísmo chinês, o republicanismo na Espanha na década de 1930, para ficarmos somente em alguns exemplos. Sendo assim, há também uma intolerância e violência secularista. O secularismo e a laicidade não são garantias de sociedades democráticas, pacíficas e liberais. Por sua vez, a participação e atuação de atores e discursos religiosos no espaço público, bem como a relação de proximidade entre Estado e grupos religiosos não significa, necessariamente, autoritarismo, anacronismo e passionalidade irracional. As tradições religiões não detêm o monopólio da violência e não são intrinsecamente intolerantes e repressivas, pelo contrário.

No que tange especificamente ao caso brasileiro sublinho que do ponto de vista estritamente jurídico e constitucional, o modelo de laicidade adotado pelo Estado brasileiro é de uma laicidade positiva ou de reconhecimento, que não exclui por completo o religioso da esfera pública, reconhecendo na dimensão religiosa um aspecto importante na formação do cidadão. Apesar da Carta Magna de 1988 estabelecer a separação entre Estado e religião e a consequente liberdade de crença, há outros dispositivos constitucionais e leis federais que asseguram a presença da religião no espaço público, como aquele que diz respeito ao ensino religioso nas escolas públicas. Acrescenta-se a isto a invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 e a possibilidade de assistência religiosa nas organizações civis e militares de internação coletiva. Desse modo, o religioso não é tratado com indiferença ou hostilidade, mas, pelo contrário, é concebido como um valor positivo. Nosso modelo de laicidade não apresenta um conteúdo contrário e de oposição às crenças religiosas, pois não impede a colaboração com as confissões religiosas para o interesse público (CF, art. 19, I). Além disso, acolhe expressamente medidas de ação conjunta dos Poderes Públicos com organizações religiosas, reconhecendo como oficiais determinados atos praticados no âmbito dos cultos religiosos, como, por exemplo, o caso da extensão de efeitos civis do casamento religioso.

Como conclusão deste artigo é indispensável algumas reflexões sobre o lamentável episódio ocorrido em 27 de julho no Rio de Janeiro, em plena realização do multitudinário evento católico da Jornada Mundial da Juventude, quando alguns integrantes da chamada “Marcha das Vadias”, em um infeliz momento de vandalismo ensandecido, escarneceram, ultrajaram e injuriaram símbolos cristãos.  Este episódio é ilustrativo, pois evidencia a faceta radical e intolerante de certos setores secularistas. Na verdade estes atos de iconoclastia e hagiofobia anticristã revelam que, em muitos casos, a defesa contumaz e agressiva  de um Estado laicista, não se cinge unicamente na instauração de uma ordem política e jurídica neutral em matéria religiosa. Mas, na verdade, tenciona uma profunda mutação dos valores culturais de uma determinada sociedade. O laicismo antirreligioso e anticristão ancora-se num projeto metapolítico abrangente, numa determinada visão do homem e do mundo. Sendo assim, não visa apenas distinguir e separar os assuntos religiosos dos assuntos temporais, mas procura de maneira tenaz e calculada eliminar, extirpar e derruir por completo qualquer presença de símbolos e valores religiosos existentes em dada sociedade. Como já alertava o renomado filósofo Norberto Bobbio: “[…] o laicismo que  necessita armar-se e organizar-se corre o risco de converter-se numa igreja enfrentado as demais igrejas”.

Cesar Alberto Ranquetat Júnior é Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Ciências Humanas na Universidade Federal do Pampa – Campus Itaqui.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação (IFE), Dicta & Contradicta, link: http://www.dicta.com.br/laicidade-religiao-e-democracia, em 28 de Junho de 2016.

Considerações sobre o atentado em Paris: cultura ocidental e extremismo (por Cesar A. Ranquetat Jr.)

Política e Sociologia | 06/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em 7 de janeiro o mundo assistiu com um misto de perplexidade e revolta as imagens do atentado ocorrido em Paris contra os cartunistas e jornalistas do semanário Charlie Hebdo. Três homens armados – vinculados a grupos extremistas islâmicos – foram os autores do massacre.  O pretexto absurdo para a ação jihadista foi de que este jornal havia publicado charges em tom de zombaria com a figura mais importante da religião muçulmana o profeta Maomé. Ato bárbaro, covarde e, sob todos os aspectos, injustificável que ilustra de maneira cabal o caráter doentio do fanatismo e do extremismo político e religioso.

Este nefando acontecimento, contudo, enseja uma reflexão sobre o tema da liberdade de expressão e dos destinos da cultura ocidental. Para muitos analistas apressados estaríamos diante de um confronto entre os valores sacrossantos do laicismo, da democracia e das liberdades ocidentais contra a selvageria e o primitivismo religioso islâmico. Embate entre a ilustrada e racionalista cultura francesa e a retrógada e arcaica cultura oriental muçulmana.  Sinto frustrá-los, mas a questão não é tão simples assim.

Em primeiro lugar, os jihadistas não representam a totalidade da tradicional e milenar civilização oriental islâmica, mas uma facção “moderna”, minoritária e belicosa do islã que, equivocadamente, instrumentaliza a religião para fins políticos. Por outro lado, a cultura liberal e iluminista francesa é apenas uma expressão secularizada, particular, e, ainda, muito recente da denominada civilização ocidental. Cultura iluminista e laicista que, cabe destacar, em seus primórdios fora marcada pelo seu ódio medular e irracional ao cristianismo. Em síntese, o Ocidente não é apenas o iluminismo francês.

Além disso, importa lembrar que o semanário Charlie Hebdo não apenas escarneceu – através de desenhos de gosto duvidoso – da imagem do profeta Maomé, mas sucessivas vezes zombou de maneira irresponsável dos símbolos mais caros às tradições cristãs e judaicas. Blasfemar e ultrajar imagens religiosas são também atitudes condenáveis e, ademais, sacrílegas. Há um inegável laivo de barbarismo e mesmo de satanismo em blasfemar contra o divino.

Ao contrário do que pensam os porta-vozes da cultura ilustrada, a liberdade de expressão não é um valor absoluto e um direito ilimitado. A liberdade infrene acaba por descambar em libertinagem e licenciosidade. Uma liberdade vazia, sem conteúdo, irresponsável e autodestrutiva, aliás, vigora hoje na sociedade ocidental moderna.

Os corifeus do anarquismo pós-moderno e do “socialismo libertário” defendem ardorosamente e inescrupulosamente a bandeira de uma falsa liberdade que destrói os pilares da civilização ocidental, de acordo com a penetrante observação do diplomata e cientista político Mário Vieira de Mello:

 A liberdade – que está sendo carregada como o pavilhão, a bandeira, o símbolo essencial da civilização contemporânea – não é a verdadeira liberdade. Em nome desse falso símbolo se criticam, se rejeitam, se desmerecem valores que são legítimos representantes da substância cultural do Ocidente.

Reina soberanamente uma concepção radical e anárquica da liberdade, uma liberdade espúria e destrutiva para ofender, mentir, perverter, vilipendiar, blasfemar, atiçar ódios e paixões ignóbeis. Liberdade bastarda que não tem direção nem medida, hostil a qualquer vínculo e compromisso moral e alérgica a todo tipo de norma e ordem. O homem moderno parece ter esquecido a lição elementar de que a liberdade deve estar orientada pela verdade, conforme assevera o teólogo Joseph Ratzinger: “[…] a liberdade está associada a uma medida, a medida da realidade, que é a verdade. A liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas uma paródia demoníaca”.

Não tenho dúvidas, os desenhos satíricos e ofensivos do semanário francês, assim como o fundo ideológico anarquista e progressista radical que alimenta este periódico, são uma expressão e um sintoma doentio da própria corrosão interna e da dissolução moral que assola a civilização europeia contemporânea.

Por sua vez, o laicismo, a licenciosidade e o relativismo moral hoje dominantes no ocidente moderno não são barreiras protetoras contra o avanço do fundamentalismo islâmico; pelo contrário. A cultura ocidental moderna desvinculada de suas raízes morais e religiosas tradicionais torna-se uma presa fácil para qualquer tipo de radicalismo e extremismo, pois encontra-se espiritualmente vazia e privada de fundamentos superiores e sólidos. Segundo a arguta colocação do filósofo Rob Riemen

[…] a ameaça que o fundamentalismo islâmico representa para a nossa sociedade é muito menor do que a crise inerente à sociedade de massas – a crise moral, a trivialidade e o embrutecimento crescente que minam a nossa sociedade. Esta crise da civilização representa a verdadeira ameaça aos nossos valores fundamentais, esses valores que devemos proteger e salvaguardar para possamos continuar a ser uma sociedade civilizada.

Como afirma o escritor espanhol Juan Manuel de Prada, uma cultura que renega suas tradições espirituais está pronta para ser conquistada e dominada por bárbaros. A verdadeira civilização ocidental, a autêntica e grandiosa cultura europeia não se encontra bem representada no Charlie Hebdo. Devemos procurá-la em outras fontes, instituições, símbolos, convicções, normas e valores.

 

Cesar A. Ranquetat Jr é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor universitário

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta. 

A “neutralidade” da laicidade

Política e Sociologia | 21/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Em recente documento destinado às igrejas protestantes que aceitam o divórcio como algo legítimo, o Papa Francisco enunciou algumas recomendações solicitando que tais posicionamentos fossem revistos. Defendendo a indissolubilidade do matrimônio, o líder máximo da Igreja Católica afirmou que, dada a autoridade moral que os pastores protestantes exercem sobre seus fiéis, seria oportuno abolir qualquer tipo de pregação favorável ao divórcio.”

Calma, caro leitor. Essa notícia não é verídica. Mas, se um dia ouvíssemos algo do tipo, certamente estranharíamos: pois, por que o Papa teria a ousadia de interferir tão abertamente em outras denominações religiosas? Afinal, uma coisa é discordar e expor os motivos claramente. Outra coisa é falar como quem tem autoridade legítima para influir na doutrina de outras religiões. Nesse sentido, se um documento desse tipo fosse publicado, na mesma hora, surgiriam clamores inflamados bradando pela liberdade de religião.

O fato é que, há alguns dias, o Comitê de Direitos da Criança da ONU publicou um relatório conclusivo sobre a Santa Sé. Os trechos mais noticiados foram aqueles relacionados a casos de pedofilia por parte de clérigos, em que se exigia firmeza na aplicação de penas convenientes ao crime em questão.

Porém, além desse tema explosivo – que gerou respostas dos representantes da Igreja e réplicas dos críticos –, o citado relatório do Comitê se lançou a fazer apontamentos bastante diretos, como recomendar que a Igreja supere “todas as barreiras e tabus em torno da sexualidade adolescente, que atrapalham o acesso à informação sexual e reprodutiva”, ou sugerir que se repense a postura em relação ao aborto, “identificando circunstâncias em que o acesso a este poderia ser permitido”. Assim sendo, continua o documento, a Igreja deveria garantir que uma “educação sexual, de saúde reprodutiva e de prevenção do HIV fosse parte do currículo obrigatório das escolas católicas”.

Por que, a princípio, parece razoável aceitar a legitimidade desse documento da ONU? Porque se trata de uma instituição laica: e, por isso, ela partiria de uma perspectiva “privilegiada”, da qual emitiria juízos sem viés ou preconceitos religiosos, apelando apenas a argumentos pragmáticos. E é aqui que está o grande equívoco no qual caímos quase sem perceber: equiparamos laicidade à neutralidade.

Pois, ao demandar que a Igreja permita o aborto em determinados casos, ou que modifique sua doutrina em temas relativos à educação sexual, a ONU não está se pronunciando a partir de um ponto de vista neutro: apesar de não fazer um discurso religioso, está tirando conclusões a partir de julgamentos morais específicos, que não tem nada de “imparciais”. No caso, são juízos influenciados pelas chamadas “teorias de gênero” que estão na moda, mas que, do ponto de vista argumentativo, são frágeis: em poucas palavras, elas priorizam a liberdade individual em relação à vida humana, e enxergam a sexualidade como algo meramente “físico” ou, no máximo, “afetivo”. Premissas bastante questionáveis.

Esse caso é apenas um exemplo entre tantos em que se faz necessário realizar o exercício de desmascarar a pretensa “neutralidade” advinda de determinados discursos provenientes de instituições laicas.

Com isso, não se está negando o direito de se pronunciar sobre os mais variados temas. A liberdade de expressão é algo profundamente valioso nas sociedades democráticas contemporâneas. Porém, não é razoável que a comunidade internacional, a imprensa e os cidadãos comuns acolham esses pronunciamentos de maneira ingênua, não atentando para o fato de que há opções morais específicas – ou seja, algo além do mero “pragmatismo neutro” – sendo defendidas, provenientes de grupos também específicos, que muitas vezes possuem opiniões pouco acertadas.

Portanto, se enxergarmos que laicidade não é sinônimo de neutralidade, estaremos em melhores condições para avaliar o debate público, identificando a existência de juízos morais que nem sempre estão explicitados abertamente. Isso favorece o embate argumentativo e o discurso racional, evitando posicionamentos simplistas que negam de antemão opiniões advindas de pessoas que professam alguma religião.

Guilherme Melo de Freitas é professor, mestre em sociologia pela USP e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, 22 de Fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Ilustração: Reprodução de ilustração que acompanha este artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de Fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Quando ajuizar é doutrinar

Opinião Pública | 15/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em breve espaço de tempo, será realizada mais uma audiência pública em nossa Corte Constitucional, na qual serão discutidos o sentido e o alcance do ensino religioso na rede pública de ensino. Esta audiência faz parte do processo desencadeado pelo ajuizamento de uma ação pelo procurador-geral de nossa nação, com vistas à adoção, na escola pública, de um modelo de ensino religioso aconfessional, em que a disciplina deve ter, como conteúdo programático, a exposição das doutrinas, práticas, história e dimensões sociais das diferentes religiões, sem qualquer cunho formativo. Afinal, segundo o autor da ação, essa é a única forma dessa disciplina se compatibilizar com o caráter “laico” do estado brasileiro.

Dois pontos merecem nosssa especial atenção: o modelo sugerido, o aconfessional, ao invés do confessional ou do interconfessional, e o conteúdo disciplinar, típico de uma “filosofia da religião”. Ambas abordagens partem de um pressuposto muito evidente, o de que o influxo religioso, na esfera pública, deve ser banido. E, é claro, acompanhado de uma interpretação dos princípios constitucionais enviesada para o atendimento dessa meta insípida.

Cidadãos, associações e grupos podem realizar aportações na esfera pública, com o fim de que seus interesses e intuições traduzam-se, mais tarde, em decisões políticas. Dessa maneira, constrói-se uma cultura política que auxiliará na condução de um exercício justo e equilibrado do poder.  Nesse sentido, para um pensador insuspeito como Habermas, as igrejas – por via, também, da educação religiosa – podem participar na esfera pública, porque a cultura religiosa pode iluminar certos aspectos vitais que, num contexto epistemologicamente cientificista, racionalmente instrumental e financeiramente economicista, restaram esquecidos. As religiões, segundo nosso pensador, “não cessam de plasmar os modelos culturais das grandes civilizações”.

Daí que as religiões tenham, entre outras, uma função social muito clara e indispensável: detectar injustiças, sugerir respostas para os problemas de convivência e, sobretudo, afiançar os laços de solidariedade entre os indivíduos, porque são comunidades de interpretação capazes de oferecer contribuições articuladas que veem o homem mais além daqueles contextos. Por isso, as religiões podem e devem ter espaço na esfera pública e, assim, o conteúdo disciplinar do ensino religioso não pode se restringir a uma espécie de “resumão” das religiões que compõem nosso cenário cultural.

Quando o ensino religioso se propõe aconfessional, o estado deixa de agir com uma neutralidade de propósito e passa a agir com uma neutralidade de efeitos e, nesse caso, deixa de ser laico. Nessa conhecida dicotomia de Rawls, não compete ao estado promover qualquer confissão em particular, embora possa agir em regime de cooperação institucional com quaisquer uma delas em inúmeras pautas sociais: é a neutralidade de propósito.

Outra coisa bem distinta, a neutralidade de efeitos, é pretender que todas as religiões detenham o mesmo peso cultural e idêntica influência social, ou seja, desejar uma igual distribuição social das crenças. Como efeito, o estado abandona uma sã laicidade e deixa de ser neutro para ser neutralizador, pois resulta impossível que essa maneira de agir não deixe de ter consequências práticas sobre a capacidade de cada crença em ganhar adeptos.

Aqui, vejo-me na obrigação de perguntar se o pluralismo, tido como valor constitucional supremo, seria compatível com esse nivelamento igualitário em favor de uma parificação de efeitos entre as diversas propostas religiosas em jogo. Nada menos pluralista que uma pluralidade planificada com garantia de igualdade final.

Sob um olhar mais clínico, esta ação constitucional mais se parece com um panfleto anti-clerical, só que bem fundamentado juridicamente e repleto de retórica política avessa ao aporte religioso, tudo em prol da imposição de um caráter laicista para o estado brasileiro. Em outras palavras, em nosso respeitável e atuante procurador-geral, direito e filosofia política cumprem, categoricamente, o mesmo papel. Doutrinar. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14.04.2015, Página A-2, Opinião.