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Sociedade aberta e seus inimigos

Opinião Pública | 17/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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Nas últimas férias de inverno, pude passar uma temporada em Londres com alguns de meus filhos. Certo dia, pela manhã, liguei a televisão e, quando vi a comoção do jornalista na cobertura ao vivo, já sabia que se tratava de um atentado terrorista. Restava saber onde. Tinham degolado um padre ancião em Rouen. Bom, alguns dias antes, tinha sido em Nice e, no meio, tivemos atentados em Munique, Ansbach e em Laragne-Montéglin. Todos, ao que parece, cometidos em nome de Alá.

Em Londres, tem muçulmano para todo lado. Até o prefeito – sempre vestido em ternos bem alinhados – é muçulmano. Convivi, nesses dias, com muitos deles no metrô, no hotel e nos inúmeros pontos turísticos que visitamos. Identifiquei-me profundamente com eles: têm quatro, cinco, seis filhos. Como lá em casa. Com a diferença de que os meus são todos da mesma mulher.

Fui muito bem tratado por todos, embora minha filha, impressionada com aquele carrossel de atentados em tão poucos dias, achasse que iríamos explodir a todo momento por uma “daquelas mulheres que andavam pela rua com aquele pano no rosto e sempre atrás dos homens”.

Tranquilizei-a ao dizer que os antecedentes históricos londrinos registravam muitos casos de suicídio e não de terrorismo islamita. Nesse momento, bateu uma saudade dos antigos alienados que punham termo à própria vida no anonimato, sem carregar consigo um quarteirão inteiro de inocentes. Na periferia da sociedade, sempre achavam nas ruas da miséria uma corda para pendurar estoicamente a própria infelicidade. Lamento o ato em si, mas compreendo suas razões.

Por outro lado, também pensei se, por trás daqueles rostos ocultos, as terras da rainha não estavam a importar o pior do Oriente Médio e da África, onde os “mártires da fé” crescem anualmente, inflacionados até por “mão-de-obra” de jovens europeus, e os muçulmanos “civilizados” são incapazes ou se omitem de controlar seus loucos, sempre desatinados para cometer o próximo “suicídio altruísta” longe de casa.

Incorporados à cultura ocidental, ou seja, secularizados, todos os muçulmanos são bem-vindos. Mas tenho dúvidas. Sempre seremos infiéis para muitos deles e uma morte explosiva é sua melhor obra de misericórdia. Por que, com diz a marchinha de carnaval, “Alá, meu bom Alá”?

Meu outro filho, claramente influenciado pelo multiculturalismo rasteiro da retórica proselitista de um professor de geografia do ensino fundamental, disse que a irmã sofria de islamofobia. Respondi para ele que, quando ouvimos as vozes dos débeis, há sempre uma idiotice útil que nos patrulha com um neologismo. Como se os muçulmanos europeus estivessem a ser vítimas de um genocídio iminente.

Longe disso. Essa gentileza homicida é reservada para os cristãos, o grupo religioso mais perseguido do mundo, sobretudo onde o radicalismo islamita impera. Nesse ano, já foram quase cem mil mortos. Não sei se já incluíram o coitado do padre degolado nessa conta. Sugeri ao meu filho que questionasse seu professor sobre quase cem mil muçulmanos mortos – por cristãos – nesse ano em solo europeu. Aguardo ansiosamente pela resposta.

No mesmo dia, ao final da tarde, assisti a um festival muçulmano em Trafalgar Square, onde uma turma de ingleses submetia-se, ao que parece, curiosa ou indiferentemente, ao proselitismo de Alá. E o icônico “Admiral” Nelson via tudo lá de cima. Com o estômago já embrulhado desde a manhã, a cena causou-me outro tipo de indigestão: intelectual. Embora fossem livres, esses saxões esqueciam-se de que boa parte do tesouro da civilização ocidental repousa justamente ali.

Contudo, pareciam preferir dar ouvidos à uma religião que abafou filósofos da envergadura de um Avicena ou Averróis e que ainda prega a teocracia dos livros de história. Bom, melhor nem falar nada sobre a condição da mulher ou a juridicidade pouco humana da “Shariá”.

Moral do dia: podemos ser cosmopolitas, mas sem perder nossa identidade existencial, onde um núcleo irredutível de valores é capaz de dizer não quando é preciso dizer não. Nas sociedades livres, já lembrava Popper, o inimigo nunca está lá fora e, nesse caso, não corresponde à tal islamofobia. Está aqui dentro e é formado pelo conjunto de ressentidos que sempre manejarão uma desculpa igualitária para nos nivelar com a régua axiológica alheia. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/8/2016, Página A-2, Opinião.

 

 

 

Considerações sobre o atentado em Paris: cultura ocidental e extremismo (por Cesar A. Ranquetat Jr.)

Política e Sociologia | 06/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em 7 de janeiro o mundo assistiu com um misto de perplexidade e revolta as imagens do atentado ocorrido em Paris contra os cartunistas e jornalistas do semanário Charlie Hebdo. Três homens armados – vinculados a grupos extremistas islâmicos – foram os autores do massacre.  O pretexto absurdo para a ação jihadista foi de que este jornal havia publicado charges em tom de zombaria com a figura mais importante da religião muçulmana o profeta Maomé. Ato bárbaro, covarde e, sob todos os aspectos, injustificável que ilustra de maneira cabal o caráter doentio do fanatismo e do extremismo político e religioso.

Este nefando acontecimento, contudo, enseja uma reflexão sobre o tema da liberdade de expressão e dos destinos da cultura ocidental. Para muitos analistas apressados estaríamos diante de um confronto entre os valores sacrossantos do laicismo, da democracia e das liberdades ocidentais contra a selvageria e o primitivismo religioso islâmico. Embate entre a ilustrada e racionalista cultura francesa e a retrógada e arcaica cultura oriental muçulmana.  Sinto frustrá-los, mas a questão não é tão simples assim.

Em primeiro lugar, os jihadistas não representam a totalidade da tradicional e milenar civilização oriental islâmica, mas uma facção “moderna”, minoritária e belicosa do islã que, equivocadamente, instrumentaliza a religião para fins políticos. Por outro lado, a cultura liberal e iluminista francesa é apenas uma expressão secularizada, particular, e, ainda, muito recente da denominada civilização ocidental. Cultura iluminista e laicista que, cabe destacar, em seus primórdios fora marcada pelo seu ódio medular e irracional ao cristianismo. Em síntese, o Ocidente não é apenas o iluminismo francês.

Além disso, importa lembrar que o semanário Charlie Hebdo não apenas escarneceu – através de desenhos de gosto duvidoso – da imagem do profeta Maomé, mas sucessivas vezes zombou de maneira irresponsável dos símbolos mais caros às tradições cristãs e judaicas. Blasfemar e ultrajar imagens religiosas são também atitudes condenáveis e, ademais, sacrílegas. Há um inegável laivo de barbarismo e mesmo de satanismo em blasfemar contra o divino.

Ao contrário do que pensam os porta-vozes da cultura ilustrada, a liberdade de expressão não é um valor absoluto e um direito ilimitado. A liberdade infrene acaba por descambar em libertinagem e licenciosidade. Uma liberdade vazia, sem conteúdo, irresponsável e autodestrutiva, aliás, vigora hoje na sociedade ocidental moderna.

Os corifeus do anarquismo pós-moderno e do “socialismo libertário” defendem ardorosamente e inescrupulosamente a bandeira de uma falsa liberdade que destrói os pilares da civilização ocidental, de acordo com a penetrante observação do diplomata e cientista político Mário Vieira de Mello:

 A liberdade – que está sendo carregada como o pavilhão, a bandeira, o símbolo essencial da civilização contemporânea – não é a verdadeira liberdade. Em nome desse falso símbolo se criticam, se rejeitam, se desmerecem valores que são legítimos representantes da substância cultural do Ocidente.

Reina soberanamente uma concepção radical e anárquica da liberdade, uma liberdade espúria e destrutiva para ofender, mentir, perverter, vilipendiar, blasfemar, atiçar ódios e paixões ignóbeis. Liberdade bastarda que não tem direção nem medida, hostil a qualquer vínculo e compromisso moral e alérgica a todo tipo de norma e ordem. O homem moderno parece ter esquecido a lição elementar de que a liberdade deve estar orientada pela verdade, conforme assevera o teólogo Joseph Ratzinger: “[…] a liberdade está associada a uma medida, a medida da realidade, que é a verdade. A liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas uma paródia demoníaca”.

Não tenho dúvidas, os desenhos satíricos e ofensivos do semanário francês, assim como o fundo ideológico anarquista e progressista radical que alimenta este periódico, são uma expressão e um sintoma doentio da própria corrosão interna e da dissolução moral que assola a civilização europeia contemporânea.

Por sua vez, o laicismo, a licenciosidade e o relativismo moral hoje dominantes no ocidente moderno não são barreiras protetoras contra o avanço do fundamentalismo islâmico; pelo contrário. A cultura ocidental moderna desvinculada de suas raízes morais e religiosas tradicionais torna-se uma presa fácil para qualquer tipo de radicalismo e extremismo, pois encontra-se espiritualmente vazia e privada de fundamentos superiores e sólidos. Segundo a arguta colocação do filósofo Rob Riemen

[…] a ameaça que o fundamentalismo islâmico representa para a nossa sociedade é muito menor do que a crise inerente à sociedade de massas – a crise moral, a trivialidade e o embrutecimento crescente que minam a nossa sociedade. Esta crise da civilização representa a verdadeira ameaça aos nossos valores fundamentais, esses valores que devemos proteger e salvaguardar para possamos continuar a ser uma sociedade civilizada.

Como afirma o escritor espanhol Juan Manuel de Prada, uma cultura que renega suas tradições espirituais está pronta para ser conquistada e dominada por bárbaros. A verdadeira civilização ocidental, a autêntica e grandiosa cultura europeia não se encontra bem representada no Charlie Hebdo. Devemos procurá-la em outras fontes, instituições, símbolos, convicções, normas e valores.

 

Cesar A. Ranquetat Jr é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor universitário

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta.