Quando ajuizar é doutrinar

Opinião Pública | 15/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em breve espaço de tempo, será realizada mais uma audiência pública em nossa Corte Constitucional, na qual serão discutidos o sentido e o alcance do ensino religioso na rede pública de ensino. Esta audiência faz parte do processo desencadeado pelo ajuizamento de uma ação pelo procurador-geral de nossa nação, com vistas à adoção, na escola pública, de um modelo de ensino religioso aconfessional, em que a disciplina deve ter, como conteúdo programático, a exposição das doutrinas, práticas, história e dimensões sociais das diferentes religiões, sem qualquer cunho formativo. Afinal, segundo o autor da ação, essa é a única forma dessa disciplina se compatibilizar com o caráter “laico” do estado brasileiro.

Dois pontos merecem nosssa especial atenção: o modelo sugerido, o aconfessional, ao invés do confessional ou do interconfessional, e o conteúdo disciplinar, típico de uma “filosofia da religião”. Ambas abordagens partem de um pressuposto muito evidente, o de que o influxo religioso, na esfera pública, deve ser banido. E, é claro, acompanhado de uma interpretação dos princípios constitucionais enviesada para o atendimento dessa meta insípida.

Cidadãos, associações e grupos podem realizar aportações na esfera pública, com o fim de que seus interesses e intuições traduzam-se, mais tarde, em decisões políticas. Dessa maneira, constrói-se uma cultura política que auxiliará na condução de um exercício justo e equilibrado do poder.  Nesse sentido, para um pensador insuspeito como Habermas, as igrejas – por via, também, da educação religiosa – podem participar na esfera pública, porque a cultura religiosa pode iluminar certos aspectos vitais que, num contexto epistemologicamente cientificista, racionalmente instrumental e financeiramente economicista, restaram esquecidos. As religiões, segundo nosso pensador, “não cessam de plasmar os modelos culturais das grandes civilizações”.

Daí que as religiões tenham, entre outras, uma função social muito clara e indispensável: detectar injustiças, sugerir respostas para os problemas de convivência e, sobretudo, afiançar os laços de solidariedade entre os indivíduos, porque são comunidades de interpretação capazes de oferecer contribuições articuladas que veem o homem mais além daqueles contextos. Por isso, as religiões podem e devem ter espaço na esfera pública e, assim, o conteúdo disciplinar do ensino religioso não pode se restringir a uma espécie de “resumão” das religiões que compõem nosso cenário cultural.

Quando o ensino religioso se propõe aconfessional, o estado deixa de agir com uma neutralidade de propósito e passa a agir com uma neutralidade de efeitos e, nesse caso, deixa de ser laico. Nessa conhecida dicotomia de Rawls, não compete ao estado promover qualquer confissão em particular, embora possa agir em regime de cooperação institucional com quaisquer uma delas em inúmeras pautas sociais: é a neutralidade de propósito.

Outra coisa bem distinta, a neutralidade de efeitos, é pretender que todas as religiões detenham o mesmo peso cultural e idêntica influência social, ou seja, desejar uma igual distribuição social das crenças. Como efeito, o estado abandona uma sã laicidade e deixa de ser neutro para ser neutralizador, pois resulta impossível que essa maneira de agir não deixe de ter consequências práticas sobre a capacidade de cada crença em ganhar adeptos.

Aqui, vejo-me na obrigação de perguntar se o pluralismo, tido como valor constitucional supremo, seria compatível com esse nivelamento igualitário em favor de uma parificação de efeitos entre as diversas propostas religiosas em jogo. Nada menos pluralista que uma pluralidade planificada com garantia de igualdade final.

Sob um olhar mais clínico, esta ação constitucional mais se parece com um panfleto anti-clerical, só que bem fundamentado juridicamente e repleto de retórica política avessa ao aporte religioso, tudo em prol da imposição de um caráter laicista para o estado brasileiro. Em outras palavras, em nosso respeitável e atuante procurador-geral, direito e filosofia política cumprem, categoricamente, o mesmo papel. Doutrinar. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14.04.2015, Página A-2, Opinião.