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Ateus, sob a proteção de Deus

Opinião Pública | 01/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Vejo nos periódicos que uma associação composta por ateus e agnósticos propôs uma ação civil pública para impedir que um caminhão do corpo de bombeiros fosse utilizado para conduzir uma imagem mariana durante uma procissão em prol da chuva, por ser um ato religioso discriminatório, fundando sua pretensão nos argumentos oitocentistas de Feuerbach. Leio o teor da inicial da ação, que mais lembra um panfleto jurídico anticlerical, e observo o mais do mesmo: confundir estado laico com estado ateu. Secularização com secularismo.

A dita associação manuseia um argumentário tipicamente jacobino: a religião não pode entrar na esfera pública e é preciso salvaguardar o ambiente secularizado da amada pátria brasileira. Nenhuma democracia sobrevive se ficar chocando o ovo da serpente jacobina, porque o atual liberalismo deixou de ser somente político e tornou-se moral, ao ponto de nossa democracia fomentar uma bela polifonia de valores, cujos pressupostos, por outro lado, a mesma democracia não é capaz de sustentar sozinha. Uma verdadeira e preocupante contradição.

Interpretar uma procissão religiosa como uma forma de ato discriminatório e não como uma genuína manifestação cultural do povo brasileiro não é somente uma desonestidade intelectual, mas também uma violência moral que envergonha uma democracia liberal como a nossa. Exatamente como seria uma vergonha se um credo religioso resolvesse impedir uma procissão da “deusa da razão”, entronizada no mesmo caminhão dos bombeiros, e promovida por ateus e agnósticos. Acreditar na tal procissão da chuva como um ato sacro de cunho discriminatório é não entender bem o que significa o fenômeno da secularização.

A secularização, quando propõe o banimento radical de qualquer manifestação religiosa em público acaba por descambar em sua versão reducionista, o secularismo. Vale a pena lembrar os autores clássicos sobre a matéria, como, por exemplo, Durkheim, para quem a expressão pública de uma religião é parte da liberdade religiosa que uma democracia liberal deve proteger e assegurar os mecanismos concretos para seu exercício pelo cidadão.

A separação entre politica e religião não significa o apagamento da religião. Significa, sobretudo, que o poder político rege-se por princípios próprios e autônomos e não estritamente religiosos. Em outras palavras, não há mais espaço para as figuras historicamente distorcidas do cesaropapismo, regalismo e teocracia.

Convém também lembrar que somos laicos graças ao cristianismo: o monismo político-religioso do mundo pagão, simbolizado pela unificação dos dois poderes – o político e o religioso – na pessoa do soberano de plantão, foi cindido – uma ironia pronta – pelo famoso enunciado evangélico que determina dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nada mais intelectualmente incômodo para a réplica do argumentário racional de um ateu militante.

“Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César” não é bem o que os ateus e agnósticos da dita associação – além de seus irmãos jacobinos espalhados pela maioria dos partidos do espectro político brasileiro –imaginam: colocar César em todas as legítimas ou tradicionais manifestações religiosas do povo brasileiro, reflexos de nossa cultura, e até mesmo na consciência de cada um.

Mal sabe a dita associação que, ao propor a citada ação civil pública, agiu “sob a proteção de Deus”, porque esse direito está assegurado pela Constituição Federal (artigo 129, inciso III, §1º), que foi promulgada, nos dizeres de seu preâmbulo, “sob a proteção de Deus”. Outra ironia pronta. E, mesmo “sob a proteção de Deus”, ao se apresentar publicamente como a única voz de uma suposta e moderna racionalidade esclarecida, a associação dos não-crentes, na verdade, pretende impor um ideário que mais lembra o clamor de um ultrapassado racionalismo iluminista.

Em sua defesa judicial da secularização e do estado laico, confundido com secularismo e estado ateu, o que a dita associação e seus parentes intelectuais da cartilha jacobina fazem, no fundo, é elevar um princípio ideológico a uma nova forma de religião e, assim, ao lado – mais outra ironia pronta – dos fundamentalistas religiosos, passam a compor o conjunto dos piores inimigos da secularização e do estado laico. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal “Correio Popular”, 01.04.2015, Página A-2, Opinião.

RESENHA: “O poder da religião na esfera pública”

Sem Categoria | 29/12/2014 | |

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PoderReligiónEsferaPublica-LibroQuatro grandes intelectuais contemporâneos dialogaram no ano de 2010 sobre o sentido e o alcance do papel da religião na esfera pública. O encontro sediado em Nova Iorque reuniu Jürgen Habermas, Charles Taylor, Judith Butler e Cornel West, ocasião em que debateram sobre este tema e a presente obra literária recolhe as intervenções de cada um dos pensadores, acrescentando uma extensa entrevista com o filósofo alemão e um epílogo de Craig Calhoun.

O livro propõe que, para além das polêmicas sobre laicidade e laicismo e os problemas concretos em que a política e a religião disputam um protagonismo decisório, em termos estritamente filosóficos, a religião segue sendo um recurso muito importante.

Para a realidade brasileira, alguns destes intelectuais podem ser pouco ou sequer conhecidos, mas todos são expoentes de primeira ordem mundial e têm chamado a atenção, em seus trabalhos acadêmicos, sobre as incongruências e as aporias de um sistema político que, como o liberal, relega a religião ao âmbito estritamente privado e de um Estado que, como efeito desta premissa, assegura a liberdade religiosa mais como uma concessão estatal tolerante do que como um direito inalienável à liberdade de expressão. Num e noutro caso, parte-se do pressuposto da religião sem qualquer relevância social ou política.

Contudo, para todos estes grandes pensadores, a religião pode ajudar a regenerar o tecido moral de nossas sociedades, num momento atual em que vivemos uma profunda crise de valores sociais. Na obra, Habermas explica que, a partir de 2004, declarou-se partidário da dimensão pública das crenças religiosas, revendo sua cosmovisão agnóstica e a ideia de que a filosofia deveria substituir a fé.

No ano seguinte, o pensador alemão comenta o rico encontro que teve com o então cardeal Joseph Ratzinger, oportunidade em que concordou com a proposição de que as crenças religiosas constituem um valioso instrumento para nortear a moral pública nas sociedades pós-capitalistas, postura que vem sendo por ele mantida e reforçada não só a partir de uma apreciação positiva das religiões no cenário público, mas considerando também todos os déficits da própria teoria social reinante, tendenciosamente laicista.

Ao invés da recuperação de uma obsoleta teologia política, na linha inaugurada por Carl Schmitt, Habermas denuncia a decantação totalitária de uma cosmovisão política que dita seus próprios juízos morais, sem qualquer referência à uma moralidade externa transcendente. Com sua respeitosa atenção às religiões, Habermas pretende superar as forças que ameaçam a desintegração da vida social, mormente aquelas que, acentuando um individualismo existencial, evitam as referências religiosas ao considerá-las incompatíveis com o postulado da neutralidade estatal.

O herdeiro da Escola de Frankfurt afirma estar consciente da necessidade de se revisar o processo de secularização, que mais lembra um secularismo que não tem nada de neutro, mas de neutralizador, assinalando que as tradições religiosas podem servir politicamente em prol do fomento de uma ética laica. Para isso, o conteúdo religioso deve ser “traduzido”, isto é, seu núcleo moral central deve ser extraído e depurado racionalmente, o que não é novo, como ressalta Habermas, pois a filosofia desenvolveu-se historicamente graças aos impulsos e às intuições intelectivas provenientes de muitos dos ensinamentos evangélicos e da tradição moral religiosa ocidental.

Entretanto, Habermas aponta, nessa tarefa de “tradução”, ser curioso o fato de que, no atual estágio do processo de secularização, a obrigação de “traduzir” os conteúdos argumentativos (religiosos) para uma linguagem secular compete tão somente aos cidadãos crentes e os não crentes permanecem numa acomodada posição de apenas receber tais conteúdos “traduzidos” e julgá-los convenientes ou não para o incremento do debate público em muitas questões.

Para Habermas, isso é um erro, porque afasta um imperativo de simetria na relação dialógica, somado ao fato de que, muitas vezes, os argumentos religiosos, mesmo depois de “traduzidos”, ainda continuam sendo rotulados de religiosos, em razão da natureza espiritual de sua premissa e, por conseguinte, tidos por ilegítimos na órbita da opinião pública. Segundo Habermas, aos não crentes também compete igual esforço de abertura cognitiva às propostas “traduzidas” dos crentes, gerando, assim, uma “carga cognitiva equitativa que afasta a atual assimetria dialogante”.

Por sua vez, o pensador canadense Charles Taylor compartilha a crítica habermasiana ao modelo liberal de John Rawls, mas sua apresentação sobre a necessidade de uma redefinição radical da secularização vai mais além da reflexão do pensador alemão e, de certo modo, supera-a. Taylor não acredita ser bom considerar a diversidade religiosa como algo extraordinário e distinto do pluralismo ideológico, cultural ou mesmo étnico.

O filósofo canadense considera que favorecer tal distinção é insistir num pensamento aferrado obsessivamente ao religioso como um problema. Por outro lado, a resposta política à diversidade religiosa não pode ser estabelecida sem atender ao contexto cultural em concreto. Isso significa dizer que cada sociedade tem que resolver os problemas religiosos que surjam, atendendo sua história, sua tradição e objetivos sociais.

Ao final de sua exposição, Taylor recorda de um problema filosófico de maior calado: acusa o laicismo reinante de fomentar preconceitos religiosos e de criar uma ilegítima distinção entre um “uso público racional” e um “uso privado religioso”, este inferior cognoscitivamente àquele, sendo fator de criação de uma “sub-classe” de cidadãos, pois os crentes teriam que se despir de suas convicções pessoais no caso de tomarem parte do debate público.

As intervenções de Butler e de West são mais abstratas e tratam de aspectos menores da problemática tematizada na obra. Butler propõe ampliar o debate e incluir, na categoria religiosa, experiências que excedem a tradição cristã ocidental. Aludindo à diáspora judaica e refletindo sobre o sentido de pertença ao judaísmo, Butler recupera o conceito de coabitação para propor uma solução ao problema da violência no Oriente Médio.

West, mais emotivamente, critica o dogmatismo laicista daqueles que buscam desterrar a crenças religiosas e faz um libelo da necessidade do testemunho religioso, único que revela o sentido da experiência da dor, do perdão e da debilidade, de sorte que as tradições religiosas tornam-se importantes meios de uma tomada de consciência coletiva acerca da condição existencial daqueles que mais sofrem e são excluídos da repartição dos frutos da sociedade capitalista.

El poder de la religión en la esfera pública é, ao cabo, um importante livro para saber por quais caminhos filosóficos transitam a laicidade e o laicismo e as propostas de respostas de cada um deles para os problemas enfrentados atualmente nas sociedades ocidentais entre a esfera política e a esfera espiritual que, enriquecido pelo epílogo de Calhoun, no qual ele repassa, historicamente, a perene e rica complementaridade entre fé religiosa, política e filosofia, assume a condição de obra imprescindível para os estudiosos do assunto.

INFORMAÇÕES DO LIVRO: El poder de la religión en la esfera pública – Jürgen Habermas, Charles Taylor, Judith Butler y Cornel West. Eduardo Mendieta e Jonathan Vanantwerpen (eds.). Editorial Trotta, Madrid, 2012, 152 págs., 17 €. Traducción: José María Carabante y Rafael Serrano.

A Ideologia Laicista

Sem Categoria | 15/12/2014 | |

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O laicismo já não é aquele elemento de neutralidade que abre espaços de liberdade a todos. Começa a transformar-se em uma ideologia que se impõe por meio da política e não concede espaço público à visão da religião, que corre o risco de converter-se em algo puramente privado e, no fundo, mutilado.

Entende-se por Estado confessional aquele que se vincula a determinado credo religioso e compromete-se a transportar para a vida civil as exigências sociais e políticas tal como são defendidas pela hierarquia eclesiástica correspondente. É emblemática a imagem da coroação de Dom Pedro II, retratada por Araújo Porto Alegre em seu famoso quadro (Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro). Aliás, a Constituição do Império (1824) subscrevia o caráter confessional de nosso Estado.

Contudo, hoje, o laicismo, propositadamente, utiliza a expressão “confessional” de forma genérica, sobretudo quando os poderes públicos tomam medidas com conteúdo ético-material de raiz ideológica ou religiosa. Como se fosse possível que qualquer ação estatal pudesse, por sua neutralidade, não incorporar qualquer matiz desta natureza. É algo dificilmente imaginável.

O laicismo, portador de uma agressividade ideológica secular preocupante, vai mais além quando rejeita a singela possibilidade de as confissões serem vetores na construção da vida social. Defende não ser suficiente a estrita separação entre Estado e religião, mas o completo isolamento da religião do próprio âmbito público da sociedade, acantonando-a nos lares, já que o cidadão só teria direito a exercer um credo de natureza intimista. Afinal, “é incabível impor as próprias convicções aos demais”.

A assertiva é curiosa. Quando se fala de “convicção”, imediatamente, pensa-se naqueles que professam alguma confissão religiosa. Então, os incrédulos seriam cidadãos sem convicções. Como conseqüência, justamente por não estarem convencidos de nada, sua opinião deveria ser exclusivamente decisiva no momento de se estabelecer um consenso democrático a respeito de uma tema de interesse geral. Trata-se de um verdadeiro paradoxo.

Certamente, não faltará um constante patrulhamento em todo cidadão que se sinta convencido além da conta e, então, sua opinião será recebida como um mero juízo lastreado nuns princípios religiosos, dos quais estaria prisioneiro por neles crer piamente ou por ainda não ter superado sua menoridade intelectual. Assim, a deliberada intenção de converter os cidadãos que acreditam em uma fé em uma classe social de categoria secundária não deixaria de ser uma piada, porquanto proveniente de suas presumidas e impotentes vítimas.

O laicismo, ao relegar à nulidade o papel do religioso na sociedade, avoca a si o vácuo deixado e transforma-se na única doutrina confessional, obrigatória a todo o cidadão, à semelhança dos partidos únicos dos regimes comunistas. É feita uma blindagem, de natureza fundamentalista, a qualquer outra opção. A dimensão pública do religioso é retirada de qualquer debate plural.

Pelo contrário, a laicidade consiste em ter em conta, no âmbito público, as várias crenças religiosas dos cidadãos, de maneira que se dá o devido destaque ao exercício do direito individual à liberdade religiosa, com absoluta separação entre Estado e religião. Por conseguinte, as confissões religiosas deixam de ser co-autoras no teatro da vida política e econômica e tornam-se meios eficazes para que os cidadãos possam viver privada e publicamente suas convicções.

Precisamos de uma sociedade livre, democrática e pluralista, na qual as pessoas tenham a possibilidade de aderir livremente às verdades objetivas, que são plenamente compatíveis com a laicidade de um Estado, gerando um todo harmônico. A indisfarçável proposta do laicismo, expressão de um certo racionalismo, redundará, mais cedo ou mais tarde, no relativismo, a antessala dos totalitarismos do século XX, pródigos na destruição de gerações, vidas e das próprias sociedades liberais secularizadas, pois estas vivem de pressupostos que elas mesmas não têm condições de assegurar.

André Fernandes (IFE Campinas)