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Técnicos jurídicos?

Sem Categoria | 10/10/2018 | | IFE CAMPINAS

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Conversava com um estimado professor da faculdade quando, lá pelas tantas, ele me disse que os profissionais do direito desempenham, em essência, uma atividade típica de “engenharia social”, porque, a todo tempo, eles tratam de harmonizar interesses humanos em conflito existentes em toda a sociedade. Respondi-lhe: “Todo engenheiro atua segundo um projeto. Qual é o projeto dessa engenharia social?”. Silêncio do lado de lá.

Toda vez que ouço a expressão “engenharia social”, sempre tenho um frio na espinha. Historicamente, já conhecemos bem os efeitos de ditas engenharias sociais: mal-estar civilizacional costumeiramente acompanhado de uma pilha de cadáveres. Socialismo e nazismo rivalizaram-se nessa experiência laboratorial humana.

De fato, as sociedades ocidentais atuais são dificilmente concebíveis sem a figura do profissional do direito. Ele realiza, em maior ou menor medida, a função de mediador entre as leis ou os códigos, gerais e abstratos, e os conflitos de interesses e direitos, específicos e concretos, que tomam cena na vida social.

O modelo atual de profissional de direito é resultado de muitos séculos de aprimoramento no ofício de “engenheiro social”. No Digesto, Ulpiano definia, com palavras de Celso, esse ofício como a arte do bom e do justo. De lá para cá, as profissões jurídicas foram desenvolvendo-se, adquirindo uns perfis nítidos e desempenhando um rol definido de papéis sociais.

Não paira a menor dúvida de que, nos dias correntes, o labor do profissional do direito goza de uma enorme transcendência pessoal e social, porque esse labor afeta bens jurídicos fundamentais da pessoa, como a vida, a liberdade, o patrimônio, o trabalho e a família, entre tantos outros.

Por isso, o profissional do direito é o primeiro que deve ter consciência dessa transcendência e, também, da repercussão social de seu trabalho forense. Deve valorar a importância das funções em relação às quais está chamado a zelar, além de encarar o fardo da tutela dos bens e interesses que estão em jogo, de cuja assunção dependerá o correto exercício da profissão.

Mais do que um “ramo da engenharia”, as profissões jurídicas trafegam num ramo líquido e certo da realidade humana: o justo concreto, uma dimensão inserida no seio da justiça política, eixo central de toda ética social. Quando isso se dá, as linhas mestras da profissão jurídica passam a remeter ao sentido e ao alcance de sua concreta atividade.

Quando um advogado, um juiz ou um promotor compreendem qual a razão de ser ou a motivação última e objetiva de seu mister, ao cabo, eles passam a entender que toda atuação forense deve ordenar-se, em última instância, dentro das estacas dessa razão ou motivação.

Antes de ser um “ramo da engenharia”, as profissões jurídicas têm uma tarefa muito clara, a saber, a substituição da violência e da arbitrariedade por um saber-fazer que assegure, de maneira humana, as legítimas aspirações e direitos das pessoas. Por isso, o profissional do direito, quando trabalha em favor do justo concreto, também o faz prudentemente, em última instância, em prol da paz que toda sociedade necessita para seu desenvolvimento harmônico.

No fundo, ser um “engenheiro social” é ser um “técnico jurídico”. O importante é manter em pleno funcionamento a eficácia da máquina social. Sua missão, como a de qualquer outro técnico, consistirá em conhecer os detalhes da máquina para fazê-la render ao máximo. As profissões jurídicas, assim, hão de se empenhar por conseguir, fundamentalmente, que a máquina social funcione.

E, assim, os titulares dessas profissões serão reduzidos à condição de um funcionário: um burocrata zeloso pela implementação e pela eficácia de um projeto de “engenharia social”, sem espaço para uma busca animada da transcendência e do sentido último do ofício do profissional do direito. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 10/10/2018, Página A-2, Opinião.

Alegria de viver

Sem Categoria | 15/12/2017 | | IFE BRASIL

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Todos desejamos ser alegres. Salvo casos patológicos ou quem faça da acédia seu modo de vida. Todos queremos que a alegria se incorpore em cada um de nós, a ponto de afirmar que almejamos amar de alegria, cantar de alegria, rir de alegria e até mesmo chorar de alegria. Como conseguir a alegria? Foi a pergunta que recebi de um de meus filhos e tentarei aqui respondê-la. Socraticamente. Em outras palavras, devolvendo a hesitação de maneira qualificada.

De onde provém a alegria? Como é possível que comece tão efusivamente e desfaça-se tão rapidamente? Qualquer efusividade futebolística ou etílica consiste numa alegria verdadeira? Ou é uma alegria estritamente “fisiológica”? Como fazer para nunca perder um estado de alegria?

Não é muito fácil responder tais perguntas, porque a alegria, a partir de nossa experiência e intuição, parece ter uma natureza muito peculiar. Se alguém pretende ganhar dinheiro, trabalhar será a solução ordinária. Se alguém pretende aprender história, estudar ainda é a melhor via. Se alguém quer encontrar um bom emprego, qualificar-se profissionalmente ajuda bastante nesse desiderato. Mas se um indivíduo nos questiona como meu filho fez, ficamos perdidos na resposta: não adiante sugerir que se esforce, até porque nem sequer se sabe por onde começar a se esforçar.

Segundo nossa vivência, a alegria parece ser o resultado de uma maneira de viver do que propriamente seu motor principal. É um efeito de nossas disposições anteriores e não sua causa. O reflexo de um íntimo ajustamento pessoal. Como a dor é o sinal de um estado patológico, a alegria é indicativo de um estado de plenitude vital. Recordo-me de Bergson: a natureza avisa-nos por um sinal preciso que nosso destino está alcançado. Esse sinal é a alegria. Onde há alegria, há realização.

Mas que tipo de realização? A realização de nossa sede de felicidade. Analogicamente, diria que a alegria é como uma antena parabólica que se põe em movimento quando se percebe, por uma convicção muito particular, que estamos dirigindo-nos para o centro gravitacional de nossa existência, a busca pela felicidade. E não é necessário que se esteja na posse real dessa felicidade: basta ter a expectativa real de se estar no caminho certo.

A tragédia vital consiste precisamente em se desistir de procurar a alegria ou procurá-la onde ela não está. Como ouvi, outro dia desses, ceticamente, de um amigo acadêmico, já octogenário: todos tentamos tornar nossa vida feliz, mas terminamos simplesmente resignando-nos a suportá-la. Tal afirmação mais se assemelha com uma longa travessia a pé no deserto.

O caminhante, cansado e faminto, vê adiante uma fonte de águas cristalinas, cercada por frondosas árvores que fornecem uma sombra revigorante. Anima-se e as forças extras despertam. Avivam-se os passos, antes cambaleantes, mas, à medida em que se avança, ele vai compreendendo que tudo não passava de uma miragem. Então, não tem mais qualquer motivação para se continuar na travessia e o desânimo toma forma e o absorve por completo.

Assim, cada um de nós, caminhantes dos desertos da vida, podemos ser enganados pelos oásis do ceticismo, das euforias fisiológicas e de situações que mais parecem o mito do eterno retorno, só que um retorno ao negativo ponto de partida existencial.

O mundo ainda não acabou, porque sabe rir. Se meu filho ainda não se convencer, apesar do teor dessas linhas, termino conforme prometido: que tal, nessa virada de ano, rir um pouco? Quem sabe isso possa despertar o sentido mais profundo da alegria e motivá-lo à busca por uma vivência que sacie nossa sede numa fonte verdadeira.

Desejo aos leitores um novo ano repleto de boas realizações. A alegria, então, virá por acréscimo. No meu caso, seguramente, isso significa estar sempre em companhia dos livros, que são meu último reduto em busca de uma vida ainda não alegremente vivida: tal como os mendigos das cercanias da universidade de Oxford, sempre bêbados e agarrados aos opúsculos. Por fim, lembramos ao leitor que nosso site também merece umas férias e regressaremos apenas em fevereiro.

IFE CAMPINAS

Curso “Bioética & População” começa NESTE SÁBADO! Faça sua inscrição aqui!

CURSOS IFE| Sem Categoria | 08/04/2017 | | IFE CAMPINAS

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BIOÉTICA E POPULAÇÃO

Gênero, direitos reprodutivos, livre escolha, família ampliada

CURSO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA – IFE CAMPINAS

Novas palavras e novos conceitos são continuamente lançados na mídia. Modas e costumes que modificam a forma de pensar e de viver a realidade. Linguagem aparentemente inocente que destrói a tradicional cadeia do pensamento.

De que se trata? Qual a origem? Qual o objetivo?

Através do programa proposto, este curso objetiva proporcionar uma visão geral dos conceitos presentes nas diversas discussões da atualidade, propiciando o conteúdo necessário para entender e participar ativamente do debate

AULAS (com calendário)

1. ÉTICA E BIOÉTICA
29/04/2017
Prof. Dr. Fábio Bertato e Prof. Ms. José Alaércio Jr.

2. CONTRACEPÇÃO
06/05/2017
Prof. Ms. José Alaércio Jr.

3. EUTANÁSIA E DIGNIDADE DA CRIANÇA
20/05/2017
Prof. Dr. André Fernandes

4. DIGNIDADE DO EMBRIÃO HUMANO
03/06/2017
Prof. Dr. Fábio Bertato e Prof. Ms. José Alaércio Jr.

5. GÊNERO
10/06/2017
Prof. Dr. André Fernandes

 

QUALIFICAÇÃO DOS PROFESSORES

José Alaércio Jr. é médico ginecologista pela UNICAMP,  Mestre em Medicina pela mesma universidade e professor.

Fábio Bertato é licenciado em Matemática, Doutor em Filosofia, Superintendente do IFE Campinas e Pesquisador do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp.

André Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras.

 

BENEFÍCIOS
▪ Único no mercado
▪Material (pasta, crachá, folhas e caneta)
▪Salas com recursos multimídia
▪ Professores altamente qualificados
▪Conhecimento útil para a vida
▪Coffee break a cada atividade
▪Artigos do IFE no Correio Popular no mailing list dos alunos
▪ Recebimento de certificado ao final

LOCAL E HORÁRIO:
HORÁRIO: Manhãs de sábado. 9h00-10h30 (1ª parte); 10h30 Coffee break; 11h00-12h00 (2ª e última parte).
LOCAL: Unisal (Unidade Liceu) – Campinas/SP
R. Baronesa Geraldo de Resende, 330
CEP: 13075-270

INVESTIMENTO (ótimo preço!):
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INSCRIÇÕES
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RESENHA: Roger Scruton: “As Vantagens do Pessimismo” (E o perigo da falsa esperança) – por Pablo G. Blasco

Sem Categoria | 07/04/2017 | | IFE BRASIL

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LIVRO: Roger Scruton: “As Vantagens do Pessimismo” (E o perigo da falsa esperança). É Realizações. São Paulo. 2015. 207 pgs.

as vantagens do pessimismoDe que pessimismo nos fala Scruton? Na verdade, trata-se de um discernimento da realidade, de visualizar que vivemos entre seres humanos falíveis, e não num universo de sistemas e ideias que são facilmente modificáveis. Os problemas da humanidade não são questões de ordem técnica, como pensam os que ele denomina otimistas inescrupulosos. Estes são aqueles que acreditam que as dificuldades e desordens da humanidade podem ser superadas por algum tipo de ajuste em larga escala: é suficiente desenvolver um novo arranjo, e as pessoas caminharão para o sucesso. Desse modo, todos os esforços são colocados num plano abstrato e nenhum sequer é situado no campo da virtude pessoal. Essas são as falsas esperanças dos otimistas teóricos que devem ser temperadas com a dose certa de pessimismo, que não é outra coisa mais do que conhecimento real e prático da condição humana. O raciocínio de Scruton é claro, o que associado a uma tradução magnífica, permite acompanhar a lógica do seu discurso sem necessidade de comentários explicativos.

Esses otimistas perigosos e criticados são os que eliminam velhas rotinas, e querem mudar as coisas em proveito próprio. Estão tão propensos a consultar o passado como um batalhão que luta pela sobrevivência está propenso a proteger seus monumentos. O que eles querem é estar do lado vitorioso. Com o menor esforço pessoal possível. O pessimista sensato, não se deixa levar pelas correntes, enfatiza as restrições e os limites, lembra-se da imperfeição e da fragilidade da condição humana. Nas suas deliberações, os mortos e os não nascidos tem a mesma voz, porque sente-se inserido nas tradições e na história. E saber utilizar a dose de pessimismo para temperar as esperanças que, de outra forma, podem nos arruinar.

O pessimismo judicioso nos ensina a não idolatrar os seres humanos, mas a perdoar seus defeitos e a lutar por sua recuperação. Ensina-nos a limitar nossas ambições na esfera pública e a manter abertas as instituições, os costumes e os procedimentos em que os erros são corrigidos e as falhas confessadas, em vez de mirar algum novo arranjo em que os erros nunca são cometidos. O pior tipo de otimismo é aquele que animava Lenin e os bolcheviques, que fazia com que acreditassem que haviam colocado a humanidade na trilha das soluções dos problemas da história, e que fez com que também destruíssem todas as instituições e todos os procedimentos pelos quais os erros podem ser corrigidos.

A utilização principal do pessimismo é retirar aquela postura solitária e conduzir à verdadeira primeira pessoa do plural. As pessoas escrupulosas, que temperam a esperança com uma dose de pessimismo, são aquelas que reconhecem limitações, não obstáculos. (..). Reconhecem que a sabedoria raramente está contida em uma única cabeça, e é mais provável que esteja consagrada em costumes que resistiram ao teste do tempo do que nos esquemas dos radicais e dos ativistas.

Quando falta essa sadia dose de pessimismo para temperar a vida, deixaremos de ver, por exemplo, o mundo financeiro como sendo composto de seres humanos, com todas as suas fraquezas morais e projetos pessoais, e passaremos a vê-lo como composto de gráficos e índices (taxas, juros, moedas) que em si são meras abstrações cujo valor econômico depende exclusivamente da confiança das pessoas nelas. E dá no que dá.

Muito interessante o comentário sobre o fracasso da revolução de 1968, a nível social e econômico. Não foram abaladas as bases das democracias ocidentais. Mas sobrou um reduto que se concentra e domina os departamentos de ciências sociais de todo o mundo ocidental. No coração do curriculum de humanidades podemos encontrar todas as falácias que, na prática, fracassaram nos espasmos revolucionários de 68. Uma falácia utópica, onde eles veem o mundo de um modo diferente. Desprezam a experiência e o senso comum, e colocam no centro um projeto que está “imune à refutação”. Os milhões de mortos ou escravizados não são suficientes para refutar a utopia, mas simplesmente fornecem a prova das maquinações diabólicas que foram postas no seu caminho. Isso é o que caracteriza os estados totalitários: a necessidade constante e implacável de encontrar uma classe de vítimas, a classe daqueles que se atravessam no caminho da utopia e impedem a sua implementação.

Outro ponto de destaque é a transferência da culpa e do ressentimento. “Quando você transfere ao outro o seu ressentimento consegue evitar o custo de compreendê-lo, que é o custo do autoconhecimento. Nada mais cómodo do que dizer que conspiram contra o teu projeto, ao invés de refletir sobre ele, e de confrontá-lo com a experiência quotidiana e histórica (…)O otimista inescrupuloso confronta a crítica com um argumento de transferência de ônus, dizendo que cabe a você, o pessimista cauteloso, provar que os costumes e as tradições que eu condeno trazem realente uma contribuição para o bem comum. Mesmo os costumes que sobrevivem ao teste do tempo não são argumento que satisfaça os otimistas. Eles nos colocam na disjuntiva de ter que provar que funcionam, que são benéficos para a maioria (…). Quando coisas ruins acontecem, especialmente, quando acontecem comigo, tenho um motivo para buscar a pessoa, o grupo, a coletividade que as provocou, e sobre as quais as culpas podem ser lançadas. É mais uma falácia onde a prova da culpa está no sucesso do outro, que acarreta a minha desgraça. O antiamericanismo tem aqui suas raízes”.

Isso implica deixar de viver por meio de esquemas e planos, não culpar os outros por nossos enganos e fracassos, deixando de pensar a nosso respeito como se fôssemos dotados de algum tipo de inocência angelical que somente a corrupção da sociedade nos impede de exibir e desfrutar. Envolve uma postura de solicitude -com as instituições, os costumes e as soluções consensuais. Envolve um reconhecimento de que é mais fácil destruir do que criar e de que cumprimos a nossa missão na terra se cuidamos do pequeno canto que é nosso e levamos este “nosso” ao coração.

A forma mais simples de explicar o comportamento de qualquer organização burocrática é supor que ela é controlada por uma conspiração de seus inimigos. Como Lenin ilustrou, o pior tipo de governo não é aquele que comete enganos, mas aquele que, ao cometer os enganos é incapaz de corrigi-los. Quando os poderes do governo são divididos de maneira apropriada, e quando aqueles com soberania podem ser destituídos pelo voto, os enganos podem ser remediados.

Traz um pensamento de Burke para o mundo moderno, que faz pensar na insensatez do messianismo que, espasmodicamente, aparece aqui e acolá: “O conhecimento de que precisamos nas circunstâncias imprevisíveis da vida humana não é derivado da experiência de uma única pessoa nem contido nela, e também não  pode ser deduzido a priori de leis universais. Esse conhecimento nos é concedido pelos costumes, pelas instituições e pelos hábitos de pensamento que foram sendo moldados ao longo de gerações, por meio de tentativas e erros das pessoas, muitas das quais pereceram no curso de sua aquisição”.

No final do livro, Scruton nos proporciona um bom projeto de vida: “A felicidade não resulta de uma busca do prazer e tampouco é garantida pela liberdade. Ela surge do sacrifício: essa é a grande mensagem que nos chega por meio de todos os trabalhos memoráveis de nossa cultura. Trata-se da mensagem que foi perdida em meio à algazarra das falsas esperanças, mas que, parece-me, pode ser ouvida mais uma vez se devotarmos nossas energias à sua recuperação”. Proposta audaciosa e difícil, porque nos inclinamos uma vez e outra ao engano, a transferir a culpa, a desfocar a perspectiva da verdade. Afinal, como ele mesmo afirma com palavras de T.S. Eliot, “é difícil para a espécie humana suportar tanta realidade”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em 27/03/2017 em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2017/03/27/roger-scruton-as-vantagens-do-pessimismo-e-o-perigo-da-falsa-esperanca/>

Correr para as montanhas?

Sem Categoria | 08/03/2017 | | IFE CAMPINAS

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No ano passado, no intervalo de um curso sobre filosofia política, um aluno desabafou dizendo que o homem faliu, a sociedade foi à bancarrota e, como Deus está morto, o negócio é correr para as montanhas, bem longe do que restou de nosso estágio civilizatório. Segundo ele, o projeto da modernidade esgotou-se e não haveria um sucedâneo capaz de fazer uma reinvenção do homem.

De fato, na “problemática”, nosso aluno fez um diagnóstico acertado da realidade que vivemos: o homem passou o século XX realizando macabras experiências antropológicas aqui e acolá e instrumentalizando o próprio homem em prol de projetos políticos, sociais e econômicos que oscilavam entre a redução ou a aniquilação de sua própria dignidade. Campos de concentração, gulags, bomba atômica, genocídios, nacionalismos, desastres ecológicos, manipulação genética e intervencionismo estatal, entre outros.

Evidente que, depois dessas aulas de laboratório antropológico, o relatório final não poderia ser dos mais agradáveis. Um generalizado ceticismo, quando não um pessimismo, tomou conta de nossas mentes. Habermas e Ratzinger, cada qual a seu modo, já prenunciavam esse quadro patológico para os albores do século XXI e, além disso, novos milenarismos, visões apocalípticas e metanarrativas sobre o fim da história que surgiriam como remédios, dispostos e prontos para consumo na gôndola dos pensamentos padrão fast food.

Nossa tarefa, diante de tantos e novos desafios, é histórica. Aliás, a tarefa do homem sempre foi assim e, como tal, permanece. No século XX, vivemos o auge da absolutização da autonomia do homem. Positivismo, romantismo, marxismo, niilismo, estruturalismo, cada qual, entre erros e acertos, criou sua visão prometeica do homem. E a resultante dessa feijoada de ideias foi bem indigesta: uma grave desordem nos diferentes âmbitos da existência humana.

Qual será o remédio para o homem que, depois do ocaso do projeto moderno, está imerso numa busca de sentido para sua existência? Algumas tendências culturais têm o sincero desejo de superar os becos sem saída que esse projeto nos legou. Nos âmbitos político e econômico, notamos tendências de integração entre os povos, o reforço dos princípios da subsidiariedade contra a centralização estatal e da solidariedade contra o individualismo libertário.

No âmbito científico, existe um despertar de consciência dos perigos da tecnologia aplicada sem pontos de referência éticos, sobretudo no que concerne ao respeito ao meio ambiente e ao trato humano na engenharia genética. No âmbito cultural, o etnocentrismo do homem branco ocidental vem sendo suplantado por um pluralismo aberto à diversidade estética.

São tendências que tendem a superar a matriz teórica do século XX. Abrem muitos caminhos para uma autêntica personalização dos indivíduos no seio social. Todavia, permanecem muitas ambiguidades em nosso panorama civilizatório.

Ainda há muito economicismo, hedonismo e relativismo moral, a globalização pode derivar para uma massificação cultural mundial a partir desses elementos e, no espectro religioso, muitos propõem uma espécie de religião humanizada, que não mira o transcendente, mas a auto-redenção do homem.

A “problemática”, por assim dizer, permanece e, no fundo, envolve, fundamentalmente, a crise sobre a verdade do homem. Durante muito tempo, acreditou-se ser o homem uma criatura livre e, ao mesmo tempo, miserável, na acepção mais genuína do termo, a depender constantemente dos influxos do transcendente, tanto horizontal quanto vertical. Hoje, o homem é supremo para si mesmo.

Como já dito, nossa tarefa é histórica e, nessa órbita, paira a sombra senhorial divina. Porém, a mesma história consiste no produto das livres decisões de cada um dos homens. Como isso se compagina, é um grande mistério e, em certa medida, lembra um pouco a relação entre os deuses homéricos e os homens: o bardo da Ilíada canta a história de deuses e homens e não histórias de deuses e histórias de homens. A nós, no bojo daquele mistério, resta apenas, como “solucionática”, fazer um uso responsável de nossa liberdade. Sem precisar correr para as montanhas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 08/03/2017, Página A-2, Opinião.