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Correr para as montanhas?

Sem Categoria | 08/03/2017 | | IFE CAMPINAS

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No ano passado, no intervalo de um curso sobre filosofia política, um aluno desabafou dizendo que o homem faliu, a sociedade foi à bancarrota e, como Deus está morto, o negócio é correr para as montanhas, bem longe do que restou de nosso estágio civilizatório. Segundo ele, o projeto da modernidade esgotou-se e não haveria um sucedâneo capaz de fazer uma reinvenção do homem.

De fato, na “problemática”, nosso aluno fez um diagnóstico acertado da realidade que vivemos: o homem passou o século XX realizando macabras experiências antropológicas aqui e acolá e instrumentalizando o próprio homem em prol de projetos políticos, sociais e econômicos que oscilavam entre a redução ou a aniquilação de sua própria dignidade. Campos de concentração, gulags, bomba atômica, genocídios, nacionalismos, desastres ecológicos, manipulação genética e intervencionismo estatal, entre outros.

Evidente que, depois dessas aulas de laboratório antropológico, o relatório final não poderia ser dos mais agradáveis. Um generalizado ceticismo, quando não um pessimismo, tomou conta de nossas mentes. Habermas e Ratzinger, cada qual a seu modo, já prenunciavam esse quadro patológico para os albores do século XXI e, além disso, novos milenarismos, visões apocalípticas e metanarrativas sobre o fim da história que surgiriam como remédios, dispostos e prontos para consumo na gôndola dos pensamentos padrão fast food.

Nossa tarefa, diante de tantos e novos desafios, é histórica. Aliás, a tarefa do homem sempre foi assim e, como tal, permanece. No século XX, vivemos o auge da absolutização da autonomia do homem. Positivismo, romantismo, marxismo, niilismo, estruturalismo, cada qual, entre erros e acertos, criou sua visão prometeica do homem. E a resultante dessa feijoada de ideias foi bem indigesta: uma grave desordem nos diferentes âmbitos da existência humana.

Qual será o remédio para o homem que, depois do ocaso do projeto moderno, está imerso numa busca de sentido para sua existência? Algumas tendências culturais têm o sincero desejo de superar os becos sem saída que esse projeto nos legou. Nos âmbitos político e econômico, notamos tendências de integração entre os povos, o reforço dos princípios da subsidiariedade contra a centralização estatal e da solidariedade contra o individualismo libertário.

No âmbito científico, existe um despertar de consciência dos perigos da tecnologia aplicada sem pontos de referência éticos, sobretudo no que concerne ao respeito ao meio ambiente e ao trato humano na engenharia genética. No âmbito cultural, o etnocentrismo do homem branco ocidental vem sendo suplantado por um pluralismo aberto à diversidade estética.

São tendências que tendem a superar a matriz teórica do século XX. Abrem muitos caminhos para uma autêntica personalização dos indivíduos no seio social. Todavia, permanecem muitas ambiguidades em nosso panorama civilizatório.

Ainda há muito economicismo, hedonismo e relativismo moral, a globalização pode derivar para uma massificação cultural mundial a partir desses elementos e, no espectro religioso, muitos propõem uma espécie de religião humanizada, que não mira o transcendente, mas a auto-redenção do homem.

A “problemática”, por assim dizer, permanece e, no fundo, envolve, fundamentalmente, a crise sobre a verdade do homem. Durante muito tempo, acreditou-se ser o homem uma criatura livre e, ao mesmo tempo, miserável, na acepção mais genuína do termo, a depender constantemente dos influxos do transcendente, tanto horizontal quanto vertical. Hoje, o homem é supremo para si mesmo.

Como já dito, nossa tarefa é histórica e, nessa órbita, paira a sombra senhorial divina. Porém, a mesma história consiste no produto das livres decisões de cada um dos homens. Como isso se compagina, é um grande mistério e, em certa medida, lembra um pouco a relação entre os deuses homéricos e os homens: o bardo da Ilíada canta a história de deuses e homens e não histórias de deuses e histórias de homens. A nós, no bojo daquele mistério, resta apenas, como “solucionática”, fazer um uso responsável de nossa liberdade. Sem precisar correr para as montanhas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 08/03/2017, Página A-2, Opinião.

A história esquecida da pós-modernidade (por Rein Staal)

Filosofia | 30/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em fevereiro de 1943, no Sportpalast de Berlim, diante de milhares de leais membros do partido nazista, Josef Goebbels fez apelo à “guerra total”. A guerra total veio, e poucos anos depois o Sportpalast era parte das ruínas fumegantes do movimento nacional-socialista.

Martin Heidegger, um dos ex-membros mais famosos do movimento, disse que  “a verdade e a grandeza internas” da visão nazista “consistiam no encontro do homem moderno com a tecnologia global”. Ao observar os destroços desse encontro que ficaram depois da guerra, o escritor alemão Romano Guardini viu neles também o corolário e o colapso do projeto damodernidade. Os anseios que inspiraram os fundadores do pensamento moderno – a conquista da natureza por meio da ciência e, em última análise, a conquista da natureza humana por meio da ciência e conseqüentemente a emancipação do poder com relação a qualquer limite moral – foram concretizados de uma maneira que ultrapassou mesmo os sonhos mais loucos. E esse sucesso transformou-se em cinzas antes de poder ter sido desfrutado.

Guardini sentiu-se compelido a escrever o seu clássico trabalho O fim dos tempos modernos e o seu complemento Poder e responsabilidade. A essência da modernidade, afirmava, repousa no “divórcio entre poder e pessoa”. Depois de séculos de reducionismo e espoliação, a pessoalidade foi reduzida à mera subjetividade, à delgada afirmação de valores sem ancoragem ou horizonte. O poder lançou sua sombra sobre o homem por meio de instituições impessoais e processos que seguiam a sua própria lógica desalmada. “Não há ser que não tenha um mestre”, e o poder demoníaco preencheu o vácuo deixado pelo eclipse da responsabilidade pessoal. Uma vez dissipado o capital moral do cristianismo, restou aos modernos pouco que gastar.

Ultimamente, diante das nossas próprias ruínas, temos visto por toda a parte um raciocínio aparentemente similar: o pensamento moderno percorreu o seu caminho, deixando para trás apenas um ceticismo penetrante acerca de toda a visão significativa da natureza e do destino humanos. Tanto o pós-modernismo acadêmico como o popular estabelecem um tabu contra o exame da realidade última das coisas, justificando-se com um relativismo tão leviano que faria Protágoras corar. E, no entanto, Guardini viu que a verdadeira lição corre no sentido contrário: apenas um entendimento cristão pode dar sentido à condição humana pós-moderna.

Noutras palavras, a crise da modernidade foi atingida bem antes dos modismos acadêmicos do nosso tempo. O pós-modernismo que domina a atmosfera intelectual hoje é um fenômeno secundário, algo derivado e não verdadeiramente radical. Guardini viu isso e foi além: fez um apelo a uma nova antropologia filosófica, que pudesse retomar o entendimento cristão da pessoa como agente participativo numa realidade compartilhada e também como um locus de responsabilidade.

Havia outros pensadores trabalhando na mesma seara. Esse renascimento teísta, esse pós-modernismo primevo brotou das reflexões de um grupo de pensadores europeus que encontraram a resposta para a crise da modernidade no patrimônio espiritual do Ocidente. Nenhum deles viu as patologias da modernidade como a expressão final ou real do significado do Ocidente. Pelo contrário, afirmaram que o fim da modernidade revela a realidade radical da liberdade e dignidade humanas. Viram também que o embate entre o reducionismo naturalista moderno e o subjetivismo pós-moderno é uma briga de família prenunciada pelo eclipse da pessoa.

A maior parte desses pensadores eram figuras marginais no seu tempo. Poucos tinham atuação política e nenhum deles demonstrava simpatia pelo nacional-socialismo ou pelo comunismo soviético. Todos – com a ambígua exceção de José Ortega y Gasset – eram teístas. Alguns deles estavam a meio caminho entre o judaísmo e o cristianismo e quase todos tinham consciência da sua dívida para com uma visão cristã da natureza humana e do destino.

Assim, por exemplo, no outono de 1940, na Paris ocupada pelos alemães, Henri Bergson, já idoso e adoentado, ficou horas em pé sob uma chuva gelada à espera da estrela amarela que seria o seu estigma na nova Europa. Um dos poucos filósofos a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, Bergson recusou a proteção do governo Vichy e escolheu abraçar o destino do seu povo. Ele viria a falecer dentro de poucos meses, mas não sem antes renunciar, em meio a protestos, a todos os seus postos e glórias, num passo profundo para alguém que antes tinha sido professor de filosofia numa das maiores universidades da Europa. Não quis converter-se totalmente ao cristianismo, convencido de que a sua cruz na Europa nazista era morrer judeu.

Num francês primoroso, valendo-se de imagens penetrantes e intuições que desafiavam os sistemas e as definições da filosofia técnica, Bergson ofereceu uma crítica contínua ao que nomeou “razão eleática” da modernidade, por causa da cidade natal dos antigos metafísicos gregos Parmênides e Zenão: o desejo de explicar tudo por meio de categorias intelectuais pré-formadas que não deixam espaço para as experiências humanas – a liberdade, a memória, o amor, o drama e a comédia – que resistem à razão fria e impessoal.

A sua última grande obra, As duas fontes da moral e da religião, publicada em 1932, propunha que toda sociedade, tal como toda alma, podia estar “fechada” ou “aberta” à experiência da transcendência pela qual os seres humanos são capazes de romper os ciclos e processos naturais. Essa abertura, concluía Bergson, só podia fundamentar-se, em última análise, num entendimento cristão da pessoa e da fraternidade universal. E foi para expressar tal fraternidade que ele escolheu morrer usando a estrela amarela.

Mais ou menos na mesma época, um tipo simples que vivia uma vida simples nos Alpes suíços chegou a uma conclusão similar à de Bergson, mas ainda mais radical, revestida de uma linguagem mais poética. Em 1934, uma obra memorável intitulada A fuga de Deus foi publicada por Max Picard, um judeu que mais tarde se converteria ao cristianismo.

Picard viu o Ocidente secular e moderno como um sistema de amnésia espiritual que se autoperpetua: histericamente ocupado sem realizar nada, cheio de comunicação mas falto de diálogo, cheio de brilho e sons altos mas ao mesmo tempo sem sentido e mudo. O amor, a amizade e a lealdade existem apenas como fragmentos no mundo em fuga de Deus: retalhos evanescentes de experiências que vêm e vão. Eis o porquê de as palavras, nos tempos modernos, se terem tornado meros sinais, sem conexão com a pessoa que as pronuncia: “sussurros e sinais substituem as palavras no mundo da fuga… Se dois navios desejam comunicar-se, pequenas bandeiras são içadas numa corda; assim também as palavras tremulam nas frases. Quando dois homens falam um com o outro usando sinais em vez de palavras, a distância entre eles é tão grande quanto a distância entre dois navios: há todo um oceano entre eles, o oceano da fuga”.

A desconstrução impessoal supõe a reconstrução pessoal. As palavras dispersas e fragmentadas devem ser reunidas em oração e enviadas a Deus, pois “apenas diante dEle que é eterno e completo em Si mesmo os mortos e fragmentados podem tornar-se um todo novamente”. Apenas num mundo constituído pela fé num Deus pessoal as relações entre as pessoas humanas desenvolvem consistência e integridade.

Um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, Picard publicou Hitler em nós mesmos, em que diagnosticava aquilo que Hannah Arendt viria a caracterizar como a “banalidade do mal”. Picard detém-se na figura do nazista cumpridor que, no contexto da sua ocupação profissional como atendente, seria capaz de atravessar a rua correndo para devolver uma moeda a alguém que a tivesse esquecido no balcão de sua loja, mas que seria capaz, noutras circunstâncias, de levar a cabo com a mesma facilidade uma ordem de homicídio em massa. E Picard vai mais longe: vê o nazismo como a expressão última e demoníaca da fragmentação humana, da redução da pessoa a uma entidade aleijada e fechada, apenas capaz de relacionar-se com os outros quando os manipula como objetos.

Enquanto Picard viveu e escreveu na sua montanha na Suíça, os cafés e salões de Paris eram o ponto nevrálgico da história intelectual do século XX, enriquecidos por montes de pensadores émigrés – principalmente russos na década de 1920 e judeus de toda a Europa na década de 1930. Um dos maiores dentre eles foi um judeu russo chamado Lev Shestov, cujos últimos escritos falavam de “cavaleiros da fé” como São Paulo e Martinho Lutero. Shestov está entre os mais ferrenhos críticos do racionalismo nas letras do século XX. Exilado da Rússia após a tomada do poder pelos bolcheviques, via a Primeira Guerra Mundial e as penúrias do país natal como uma lição acerca da loucura do orgulho humano, especialmente a pretensão intelectual de que a razão humana por si só pode organizar e controlar toda a realidade.

Shestov anunciava a necessidade, nas suas palavras, de uma “filosofia bíblica”, que renunciaria à busca filosófica pela explicação da razão necessária das coisas e, em vez disso, poria ênfase na liberdade humana que deriva da liberdade ilimitada de Deus. A filosofia começa não no maravilhamento, mas no desespero, na noite do silêncio e no deserto da solidão. Shestov tomou o Salmo 130 como ponto de partida: “Do fundo do abismo, clamo a vós, Senhor; Senhor, ouvi minha oração… Ponho a minha esperança no Senhor. Minha alma tem confiança em sua palavra”.

O último livro de Shestov chama-se Atenas e Jerusalém, em que o autor contrasta o templo da razão auto-suficiente com a cidade da justiça e mede forças com todos os filósofos, de Heráclito a Husserl. Voluntariamente cego para a possível síntese entre razão e revelação, Shestov falou em voz profética a um mundo em que a vida intelectual foi consistentemente desarraigada das suas fundações espirituais. O seu pesadelo de um mundo moldado pelo racionalismo foi descrito por seu amigo Nicolai Berdiaev como “um universo arredondado em que não há mais individualidade, risco ou criação nova”.

Para pensadores mais jovens como Walter Benjamin, Leo Strauss e Alexandre Kojève, Shestov foi a alternativa teísta mais sólida em meio às correntes atéias dominantes. Benjamin escreveu para Gerhard Scholem acerca do poder do fideísmo de Shestov. Strauss viria a escrever mais tarde um livro sutil em que inverteria o título da obra final de Shestov e Kojève tornar-se-ia um teórico e ativista daquilo que descreveria como “o estado universal e homogêneo”. É possível que a visão de Strauss sobre a história da filosofia política, bem como a sua visão de uma ordem tecno-burocrática universal no fim da História, tenham surgido em parte como uma reação à filosofia bíblica e personalista de Shestov.

Outra voz proeminente da Paris do entre-guerras foi Gabriel Marcel, que passou gradualmente do racionalismo neo-hegeliano à Igreja Católica e estabeleceu-se como um grande filósofo cristão. Em relativa obscuridade (ele não publicou nada sequer remotamente sistemático até a década de 1940), Marcel esboçou os grandes temas da filosofia teísta pós-moderna. A condição humana, pensava, deve ser entendida nos termos de uma participação que transcende a antítese entre sujeito e objeto que infestava a filosofia moderna. Cada existência humana participa de uma realidade marcada pela tensão entre sujeito e objeto: isolemos um deles e estaremos excluindo o outro. E então só restará uma abstração, que é um indivíduo solipsista ou um objeto impessoal.

A existência humana é essa tensão realmente vivida; podemos distinguir o sujeito do objeto, mas não podemos concebê-los isoladamente. Os seres humanos não têm outra natureza que não seja viver uma condição. A sua natureza e a sua liberdade são inextricáveis. Embora seja freqüentemente rotulado como o fundador do existencialismo, Marcel é melhor entendido como alguém que construiu a sua filosofia sobre uma compreensão cristã da pessoa como um “ser encarnado”, que não é nem tem um corpo, mas que é inconcebível fora da sua misteriosa relação com um corpo.

Como o grande filósofo judeu amigo de Shestov, Martin Buber, Marcel acreditava que a realidade pessoal recebe a sua expressão mais clara quando um ser dirige-se a outro usando o vocativo, a segunda pessoa. A primeira pessoa, o eu, pode ser apenas uma máscara para sensações e impulsos transitórios, ao passo que identificar as pessoas como ele,ela ou eles é começar a transformá-las em objetos. A condição de presença mútua, a segunda pessoa, o tu ou o vós, é o pressuposto de qualquer relação marcadamente pessoal: amor, amizade, fraternidade, cidadania e louvor. Deus é o Tu absoluto, que é uma presença pessoal, ainda quando escondida, e que nunca pode ser para nós um simples objeto, ou seja, um ídolo.

Todas as teorias que afirmam explicar a causalidade da ação humana acabam por ser uma abstração pessoal da razão de quem as pensa. Eis a mais pura verdade acerca dos diferentes tipos de relativismo e reducionismo, que ostentam uma espécie de “exceção garantida por contrato” que lhes confere um status epistemológico que é negado aos outros. “Mistério”, para Marcel, denota essas experiências que desafiam qualquer explicação baseada na razão instrumental ou causalidade natural. Nesse sentido, sobressaem as realidades da identidade pessoal e da ação humana, inclusive o pensamento.

Também o espanhol Miguel de Unamuno, que passou parte da década de 1920 exilado em Paris, escreveu uma obra memorável às vésperas da Primeira Guerra Mundial: Do sentimento trágico da vida. Nela, como Shestov, faz um apelo por uma filosofia que venha das profundezas do abismo. Na sua crítica à civilização secularista contemporânea, Unamuno comparou o típico intelectual moderno a um parasita intestinal que nega a existência da visão e da audição porque sobrevive sem ambos. Por séculos, os modernos desfrutaram das compensações da liberdade e da dignidade enquanto propunham teorias que as excluíam. Numa formulação particularmente elegante e perigosa ao mesmo tempo, Unamuno escreveu (jogando com a semelhança entre os verbos espanhóis creer e crear) que os homens criam Deus quando crêem num Deus pessoal, um Deus que por sua vez já os criou.

O outro grande pensador espanhol da época, José Ortega y Gasset, proclamou, à sua maneira mais leve e jocosa, a morte daquilo que chamava de “tradição moderna” – as tentações gêmeas do pensamento moderno: o relativismo e o racionalismo. Ortega viu que os sistemas racionalistas predominantes no pensamento moderno eram tirânicos, que mascaravam a ambição de subordinar a contingência e a espontaneidade da vida à lógica da teoria. Ortega y Gasset também identificou o  relativismo como “teoria suicida”, hipócrita e inconsistente em si mesma. A sensibilidade moderna é “desconfiança e desprezo por qualquer coisa espontânea e imediata; entusiasmo por todas as construções da razão”.

A fim de superar as teorias modernas intelectualmente falidas, Ortega propôs uma doutrina que chamou por vezes de “razão vital”. A verdade do relativismo é que cada pessoa é dona de um ponto de vista único; a verdade do racionalismo é que tais pontos de vista miram uma realidade suprapessoal. Embora use um vocabulário distinto, Ortega elaborou uma teoria da participação similar à de Marcel. No epílogo da Idade Moderna, o Ocidente precisa aprender a reconhecer as raízes da patologia da modernidade tardia, escrita em toda a fisionomia assustada do século XX.

Há uma série de razões pelas quais esses pensadores não são mais discutidos hoje. Apesar de alguns deles terem se conhecido, não formaram uma escola organizada de pensamento. Embora alguns tenham sido professores universitários, escreveram em sua maioria como intelectuais públicos, não como acadêmicos profissionais. A maior parte deles dominava com maestria a prosa em sua língua, o que suscitava suspeita entre os acadêmicos profissionais. Poucos eram ativistas políticos. Nenhum deles aderiu ao comunismo ou ao nazismo.

Além do mais, todos esses pensadores – novamente com a possível exceção de Ortega -acreditavam em Deus. O seu pensamento foi sendo formado nas décadas que culminaram com a Segunda Guerra e cristalizou-se logo após o seu fim. Os traços mais críticos do retrato que fizeram da modernidade e da pós-modernidade talvez tenham sido melhor capturados pelo psiquiatra vienense e sobrevivente de Auschwitz Viktor Frankl, que escreveu que a sua geração pode conhecer a existência humana como algo que abrangia tanto o ser que inventou as câmaras de gás como aquele que entrou naquelas câmaras de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-nosso ou o Shemá Yisrael”.

Na tentativa de uma explicação, Frankl diagnosticou as patologias siamesas da “objetivação da existência” e da “subjetivação do logos”. A primeira descreve a redução do homem a um joguete das forças impessoais e que não é conhecido como um tu. A segunda descreve a redução do sentido à subjetividade humana. O racionalismo e o relativismo, como notou Ortega, são um duplo aspecto do pensamento impessoal a conspirar em favor do esfacelamento da identidade pessoal e da erosão da responsabilidade pessoal.

É neste contexto que podemos apreciar toda a força do alerta feito por Guardini, de que o homem moderno defronta o chamado de dominar o poder. Esses pensadores, de uma maneira ou de outra, contemplavam a existência humana como uma forma de participação. O trabalho deles reflete, em certo sentido, o que hoje chamaríamos de sensibilidade pós-moderna, mas que está fundamentada numa antropologia filosófica inconcebível fora de uma compreensão cristã da pessoa.

O pensamento impessoal empala a mente ou num dos dois chifres do dilema esboçado acima – no caso do pensador realmente rigoroso – ou em ambos simultaneamente, o que é mais provável.

O fim da modernidade não marcou uma guinada do racionalismo iluminista em direção à subjetividade pós-moderna. A própria modernidade pôs o homem face a face com tudo aquilo que estava em jogo na oposição entre pessoal e impessoal. O que foi desacreditado não foi a razão, mas a hybris dos grandes sistemas impessoais, seja o reducionismo naturalista do cientificismo moderno, seja o ilusionismo dialético que as ideologias modernas operam na mente.

A intuição central dessa renascença teísta – desse pós-modernismo primevo – é a irredutibilidade da pessoa. As patologias da vida moderna, desde a atrocidade da guerra total até a banalidade da burocracia, trouxeram à luz a demanda de uma existência pessoal. Esses escritores teístas viam a condição humana como um universo aberto constituído de individualidade, risco e novas criações. O fim da modernidade escancarou a realidade radical da liberdade e dignidade humanas entre as tentativas, práticas e teóricas, de aniquilá-las.

O aviso de Guardini de que não há um ser sem um mestre captura o caráter dual da Imago Dei que está no cerne do mistério da identidade pessoal. Como seres encarnados e arraigados na nossa própria natureza, somos responsáveis por honrar essa natureza em todas as nossas obras. A história do mundo moderno termina com uma nota que não é de cinismo nem de resignação, mas de esperança e responsabilidade.

Copyright © 2008 First Things (dezembro de 2008).

 Rein Staal é professor de Ciências Políticas no William Jewell College.

Tradução de Grace Guimarães Mosquera, bacharel em Lingüística pela FFLCH-USP.

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 3, Jun/2009. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/a-historia-esquecida-da-pos-modernidade/

The end of the modern world (resenha)

Sem Categoria | 03/12/2014 | |

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Sem título

 

 

The End of The Modern World

Intercollegiate Studies Institute (ISI Books), New York, 2008, 220 págs., US$ 13,62

Translated from the original “Das Ende der Neuzeit. Ein Versuch zur Orientierung” by Joseph Theman and Herbert Burke

 

 

 

Esta nova edição da famosa obra de Guardini, datada de 1956, O fim do mundo moderno (1956), é, na verdade, a soma de dois livros em um. A primeira parte, intitulada A procura por orientação, é uma vasta apreciação da história da cultura, concretamente, do Cristianismo, trazida para a realidade de nossos dias, terminando com uma densa questão sobre nosso futuro. A segunda parte, subintitulada Poder e Responsabilidade, começa por sugerir uma resposta a esta questão, delineando um esboço rudimentar do que “o novo arquiteto humano” do (nosso) novo mundo deve parecer.

Muito da análise de Guardini, agora com quase sessenta anos de idade, é profética. Nós agora estamos numa posição histórica de decidir se as esperanças por ele expressadas têm algum potencial para serem realizadas em nossos dias e se o seu novo homem pode ser encontrado em algum lugar.

Na primeira parte, Guardini dá uma análise teológica do suceder das culturas desde a Idade Média até os Tempos Modernos, tendo a Idade Média como um cume.  A questão central de cada época é a questão central frente ao indivíduo: é aquela de proferida por Cristo, “Quem vós dizeis que eu sou?”. A questão é tão antiga quanto o próprio homem ou quanto a escolha catastrófica de Adão e Eva, os quais, movendo seus olhos para longe de Deus e para dentro deles mesmos, procuraram ser iguais a Ele.

A Idade Média foi caracterizada por um movimento cultural próprio, longe da visão de mundo clássica (inerente aos gregos) e radicalmente voltada para uma visão centrada na fé: “Nesta fé, o mundo nasceu de novo, mas não nasceu da mitologia nem da filosofia. Os vínculos míticos que ligavam o homem ao universo foram destruídos. Na história, raiou uma nova liberdade para o espírito humano.

Desvinculado agora do mundo, o homem estaria apto, pela primeira vez, a encarar todas as coisas a partir de uma nova perspectiva, de um ponto privilegiado que não dependia nem da superioridade intelectual nem da cultura. Assim, estava forjada uma transfiguração do ser totalmente impossível para o velho mundo pagão.”.

Assim, a Idade Média, diferenciada de uma cultura clássica que era definitivamente incapaz de transcendência (no sentido cristão da palavra), foi um ponto alto da história. Guardini discute este ápice do Cristianismo em termos de várias sínteses que compilam este tempo irrepetível. A Suma de Teologia, de São Tomás de Aquino, foi um exemplo notável entre aquelas várias sínteses, mas não foi a única.

O período posterior que Guardini delineia é separado da cultura medieval por uma extensa fissura. Com o século XIV, uma perceptível Sturm und Drang (do alemão, chuvas e trovões, uma forte turbulência existencial, no sentido proposto pelo autor) entra em cena. Guardini assinala um certo “anseio germânico em abarcar a totalidade do ser”, o qual ele então identifica com o “dirigir-se para a transcendência” que veio a ser historicamente associado a Göethe.

Segundo a visão de Guardini, Göethe personifica o movimento do Romantismo, cuja primeira característica é uma mudança de foco: o homem, não Deus, é agora o centro da cultura. O Zeitgeist – ou espírito do tempo – do Romantismo equivale a nada mais do que o desejo humano primordial de onipotência divina: é um prelúdio para um Götterdämmerung ou crepúsculo.

“Para o novo homem da Idade Moderna, as insuspeitadas regiões deste mundo seriam um desafio a ser encontrado e conquistado. Dentro de si, ele ouvia o chamado à aventura sobre o que parecia uma terra sem fim, para tornar-se o seu dono. Mas o diabo tem suas regras e, como um Prometeu, faz o homem perder seu lugar na ordem criacional: “Angústia, violência, ganância, rebelião contra a ordem – mais imperiosos do que nunca – estes primitivos impulsos incitaram a alma humana…”.

Começamos a encontrar de frente todas estas familiaríssimas feições do nosso próprio tempo e suas raízes se inserem na história (de certa forma) recente: a era moderna (com nossa era pós-moderna) não foi nem a era de Deus nem a do homem, mas da máquina. Guardini nota que o referente à pessoa é um dom que o homem descobre quando ele se antepõe a Deus; nosso desenvolvimento longe de Deus tem dado lugar ao homem moderno, que não é humano, e à uma natureza moderna, que não é natural.

Alienação e ansiedade existencial (angústia niilista) marcaram a visão de mundo da primeira metade do Século XX, ao menos tão longe quanto a inteligência podia conceber. E, na análise de Guardini, o mais horrendo cume destas forças culturais (e psicológicas) foi a Segunda Grande Guerra Mundial. A história tem mostrado que o profundo sentido do homem (e de sua própria humanidade) deteriorou-se e o homem moderno está suscetível à escravização do poder bem mais do que os seus ancestrais. O homem está incapaz de dar conta de seu próprio progresso e ele é agora estranho a si mesmo, exatamente como a criação que ele habita não mais harmoniza com ele. O que – se algo – podemos fazer?

A resposta a esta questão, ou melhor, abordagem de Guardini para uma resposta preliminar, vem na segunda metade do trabalho aqui resenhado. Ele observa que nossos espíritos estão doentes e que nosso mal é um mal religioso. Mas ele diz: “Exatamente neste ponto, a esperança emerge, a qual não pode ser facilmente definida. Pois, numa coisa sua forma é puramente religiosa: ela expressa que Deus é maior do que todos os processos históricos; que estão em Suas Mãos, portanto em Sua Graça…”.

Guardini então postula que uma verdadeira metanóia (conversão) é obrigatória. Mas deve ser uma conversão apropriada à situação na qual nos encontramos. “O que, então, deve parecer, o novo arquiteto humano deste mundo emergente?”. “(Ele) terá que redescobrir que o poder está no autocontrole; que o sofrimento aceito interiormente transforma o sofrimento; e todo aquele crescimento existencial depende do sacrifício livremente oferecido.”.

A mais descritiva é, talvez, a seguinte passagem: “O novo homem estaria apto para ver através das ilusões que imperam no meio científico e no desenvolvimento tecnológico: a decepção por trás da idolatria da cultura “liberal”, por trás das utopias totalitárias, do pessimismo tragicista; por trás do misticismo moderno e do mundo hermafrodita da psicanálise. Ele verá e saberá por si mesmo (que) a realidade não é tão simples assim!”.

Guardini prescreve para o nosso mal (pós) moderno a única verdade e a derradeira cura que o espírito pode experimentar, seja ele o espírito do homem ou o espírito da era. Ele chama por um retorno a Cristo em profunda humildade e fé, ainda que nós carreguemos conosco a pesada bagagem de nosso passado cultural. Guardini finalmente nos implora a responder à questão de Nosso Senhor (“Quem vós dizeis que eu sou?”) com a réplica de São Pedro: “Tu és O Cristo, O Filho do Deus Vivo.”.

Escrito há tempos, Guardini sugere como devemos nos conduzir nesta importante tarefa de redescobrir nosso destino religioso e que carismas serão exigidos de nossa liderança. Hoje, podemos ler a análise de Guardini à luz da liderança oferecida por alguém que nunca cessou de nos implorar a sermos sinais de contradição em meio à loucura do nosso tempo: João Paulo II.

O papa polonês certamente encontrou os requisitos esboçados acima, porque ele, em vida, soube, como poucos, personificar a condição de que “o sofrimento interiormente aceito transforma o sofrimento”. E, na encíclica Veritatis Splendor, por exemplo, ele propõe uma correta relação para a verdade das coisas. Mas, já passados alguns anos, estaríamos ainda abertos à oitiva dos ecos daquele documento pastoral?