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Caminhada autômata ou consciente?

Opinião Pública | 17/07/2019 | | IFE BRASIL

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Stanley Hauerwas uma vez afirmou que tudo o que se precisa saber sobre alguém pode ser apreendido da resposta a uma pergunta: o que você venera? Isto é, o que tem maior valor, o que é mais importante para você?

Esse alguém a quem questionar deve ser, antes de mais ninguém, a si próprio: o que eu venero? Não se trata de uma pergunta teórica a respeito do que o homem, em abstrato, deveria venerar. Trata-se de um exame concreto a respeito do que eu efetivamente venero, o que implica examinar como tenho vivido o último ano, mês, semana, dia de minha vida. Com o que dedico tempo e energia? O que me move a meus objetivos? Família, Deus, amigos, trabalho, festas, esporte, política, bem estar, prazer, honra, poder? A vida de uma pessoa costuma estar ordenada ao redor dessa resposta.

Evidentemente, nos dedicamos a diversas áreas de nossa vida e a elas temos diferentes motivações, mas seria ilusório acreditar que a todas damos a mesma importância. Basta que sejam confrontadas que se coloca a necessidade de escolher uma a outra, estabelecendo-se uma hierarquia. Ressalte-se que os citados exemplos de possíveis objetos de veneração são todos bens. Portanto, ao se tratar de uma hierarquização entre bens, cabe se questionar se o bem que elejo como prioridade – concretamente, nos últimos episódios com os quais me defrontei – será capaz de satisfazer a necessidade de sentido para a minha vida.

A avaliação do psiquiatra Viktor Frankl é de que, em razão de sua autotranscendência, todo ser humano é um ser em busca de sentido. No entanto, grandes massas da população experienciam a frustração existencial, isto é, um sentimento de ausência de sentido da própria existência. “São cada vez mais numerosos os pacientes que recorrem a nós, os psiquiatras, acometidos de um sentimento de vazio. Este sentimento de vazio tornou-se, em nossos dias, uma neurose de massa”, alega ele em sua obra ‘O sofrimento de uma vida sem sentido’.

A tentativa de dominar o vazio existencial se manifesta no ritmo acelerado e na fuga do silêncio, tão característicos da modernidade, pelo temor de se defrontar com questões existenciais. “Quanto menos conhece o homem a finalidade de sua vida, mais ele acelera o ritmo com o qual a segue”, afirma Frankl. E, nos momentos de potencial silêncio interior, decide-se sair para uma festa, assistir uma série, entrar nas redes sociais, ligar o som, qualquer coisa que não permita defrontar-se diretamente com o vazio existencial. São tentativas vãs que simplesmente acobertam tal frustração, a qual não se sana com nenhum prazer passageiro.

Toda vida tem um sentido. Sentido este, que é extrínseco, isto é, não pode ser produzido, criado, tem de ser encontrado; pessoal, enquanto particular para cada ser humano; e concreto, na medida em que se manifesta nas situações concretas, na “exigência do momento”. Nenhum psiquiatra ou psicoterapeuta pode dizer qual o sentido da vida para seu paciente, mas é a consciência – enquanto capacidade intuitiva de descobrir o rastro de sentido escondido em cada situação –, que conduz o homem em sua busca. Somente ao encontrar o sentido de sua existência é que o homem poderá delinear objetivos consciente do valor de sua vida e deixar de ser um autômato.

“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui?” “Isso depende bastante de onde você quer chegar”, disse o Gato. “O lugar não importa muito…”, disse Alice. “Então não importa o caminho que você vai tomar”, respondeu o Gato. Neste famoso diálogo entre Alice e o Gato, Lewis Carroll evidencia precisamente isso: diante da falta de sentido, qualquer caminho serve; mas quando se tem um destino, um sentido último, luzes desse sentido se revelam na caminhada.

Beatriz Rezende é bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e membro do IFE Campinas (beatriz.rezende@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 17 de Julho de 2019, página A2 – Opinião.

Somos todos Ilitch

Opinião Pública | 27/03/2019 | | IFE CAMPINAS

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Dez mortos em Suzano, três mortos em atentado na Holanda, 35 mortos em protestos na Venezuela, 209 mortos em Brumadinho… Diariamente nos deparamos com notícias que retratam mortes devidas a diferentes circunstâncias. Quase inevitavelmente, porém, focamos nossas atenções (ou indignações) nas circunstâncias da morte e não na realidade da morte. A dizer, tendemos a nos voltar para as causas que nelas resultaram e nos possíveis meios de as evitar – o que é justo e fundamental que façamos – mas, poucas vezes, refletimos sobre a própria morte.

A reflexão sobre a inevitabilidade da morte tende a surgir quando perdemos uma pessoa próxima, especialmente se de forma repentina. Mas, quando distante e referida em grandes números, depreendemos da morte reflexões sobre a violência, sobre a infraestrutura do sistema de saúde, sobre a corrupção, sobre a guerra, mas não sobre a morte em si.

Apesar de se tratar da realidade mais certeira que possuímos, parecemos não compreender a dimensão de sua fatalidade. Tolstói, genialmente, expressa tal incompreensão no momento em que Ilitch depara-se com sua morte: “Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo. O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais (…)”

A mera leitura desse trecho, assim como as corriqueiras matérias em jornal, não são suficientes para internalizarmos a realidade da morte. Como coloca Gustavo Corção, em sua obra Lições do Abismo, é possível ler tal página de Tolstói, e apreciar sua pungente beleza do alto de nossa imortalidade, afinal não somos Caio, nem Ilitch. Logicamente, sabemos que o silogismo permanece verdadeiro se substituído por nosso próprio nome. Mas há uma diferença substancial entre alegar a veracidade de nossa inevitável fatalidade e efetivamente assumi-la em nossa vida.

Refletir sobre a morte nos leva a repensar a própria vida e a nos deparar com questões fundamentais: O que significa a minha existência? Qual o sentido da vida? Para onde vou quando morrer? Há vida após a morte? Deus existe? Questões estas que comumente procuramos postergar, pelo incômodo de adentrar um terreno cujas respostas não se encontram no plano material, palpável, tão mais seguro e certeiro.

As respostas a estas e outras questões existenciais não são um mero exercício de elucubração filosófica. Ao contrário, queiramos ou não, respondemos a elas com nossas vidas. A diferença entre refletir ou deixar de refletir sobre elas é que, no primeiro caso, as respostas são frutos de decisões pessoais, no segundo, as respostas são frutos das circunstâncias. Optar por não refletir, destacadamente sobre a morte e os inerentes questionamentos referentes à percepção da fugacidade da vida, é terceirizar a decisão para as circunstâncias, isto é, abrir mão do atributo caracterizador do ser humano: sua liberdade.

Refletir sobre a morte pode parecer mórbido, deprimente ou um exercício que torna a vida sem sentido. Mas é precisamente o oposto que ocorre. Encarar a realidade da morte permite repensar as prioridades da vida, estabelecer o justo valor às coisas e perceber que, no fundo, em nada satisfaz substituir a falta de sentido por excesso de sensações.

Talvez, se Ilitch tivesse enfrentado os questionamentos mais essenciais de sua existência antes do seu leito de morte, não tivesse concluído que “quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo”. Talvez, pensar na morte seja o remédio que cada pessoa, individualmente, e a sociedade, coletivamente, precisamos para viver de forma autenticamente mais humana.

 

Beatriz Figueiredo de Rezende é bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e membro do IFE Campinas (beatriz.rezende@gmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 27 de Março de 2019, Página A2 – Opinião.

130 anos de abolição?

Opinião Pública | 31/01/2018 | | IFE CAMPINAS

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Neste ano, comemoram-se 130 anos da Lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888, que decretou a abolição da escravidão no Brasil. Apesar da corrente visão de que a escravidão é algo pertencente ao passado ou de que atualmente existem apenas alguns casos isolados dessa prática, a realidade demonstra que se trata de um problema sistêmico, ainda que oculto. Estima-se que, atualmente, há 161 mil escravos no nosso país (Global Slavery Index 2016).

Referir-se a escravos no século XXI é, frequentemente, tido como exagero. Infelizmente, ao contrário do que se acredita, escravidão contemporânea não é um disfemismo para condições precárias de trabalho. Ser escravo hoje é, em essência, o mesmo que ser escravo em qualquer outra época da história da humanidade. Escravidão caracteriza-se pelo controle de uma pessoa por outra, exercido por meio de violência ou de ameaça da mesma, cuja finalidade é a exploração econômica, sexual ou psicológica.

A escravidão, por constituir um crime contra a humanidade, é uma problemática que ultrapassa fronteiras nacionais. Reforça essa alegação o fato de a mão de obra escrava, ao integrar-se às cadeias globais de produção, estar presente em insumos utilizados por empresas e, consequentemente, em mercadorias que consumimos diariamente. Globalmente, a escravidão atinge 40 milhões de pessoas (Alliance 8.7, 2017). Pessoas com nomes, rostos, famílias e sonhos. Pessoas que, enquanto escravos, têm seus nomes esquecidos, seus rostos apagados, suas famílias desagregadas, seus sonhos extintos.

São escravos, hoje, os refugiados nigerianos vendidos em leilão na Líbia a 400 dólares (CNN, novembro 2017). São escravas as crianças traficadas na África Ocidental para trabalharem em fazendas de cacau que exportam 68% do cacau mundial (O Lado Negro do Chocolate, Miki Mistrati, 2010). São escravos os imigrantes encarcerados por anos em navios de pesca na Tailândia, 3º maior exportador de pescado do mundo (Sold to the Sea, EJF, 2013). São escravos os trabalhadores rurais desempregados no Brasil que são trapaceados por promessas de emprego e passam a viver em regime de servidão por dívida (Aprisionados por Promessas, CPT, 2006). Há escravos, ainda, na indústria têxtil, na construção civil, no trabalho doméstico e na prostituição. Como afirmou Kevin Bales, presidente e fundador da ONG Free the Slaves: “Em todo lugar que procurei, encontrei escravidão”.

Além de condições degradantes, jornadas exaustivas e violências físicas e psicológicas, as histórias de libertos da escravidão revelam que o estado constante de uma pessoa escravizada é o medo. Medo de agressões e penalidades desumanas cuja humilhação resulta em cicatrizes eternas de quem teve destituída sua dignidade.

Entre as medidas de combate à escravidão, está a divulgação e conscientização através de sites (como o Repórter Brasil), documentários e cobertura televisiva (como o CNN Freedom Project); medidas visando a transparência empresarial (como a “lista suja” brasileira – atualmente suspensa – que consistia em cadastro de empregadores flagrados utilizando mão de obra análoga à escrava); mudanças legislativas (como o UK Modern Slavery Act 2015, que passou a exigir que empresas inglesas divulguem os esforços que realizam para erradicar a escravidão em suas cadeias de suprimento).

Tais medidas devem ser aprimoradas, repensadas e adaptadas às diferentes realidades. Mas, se visamos mudanças concretas, é preciso que lutemos acima de abstrações, acima de partidarismos, acima de ideologias políticas vazias. Só assim será possível enfrentar as grandes injustiças deste século. A escravidão, assim como as demais atrocidades da humanidade, se dá pela perversidade de poucos e a indiferença de muitos. Faço, pois, minhas as palavras do grande abolicionista William Wilberforce “Você pode escolher olhar em outra direção, mas nunca mais poderá dizer que não sabia.” Do contrário, comemorar 130 anos da abolição da escravatura será um ato vazio.

Beatriz Figueiredo de Rezende é bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e membro do IFE Campinas (beatriz.rezende@gmail.com)

Reformistas conformistas

Opinião Pública | 01/02/2017 | | IFE CAMPINAS

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Uma das maiores reivindicações das mulheres atualmente – expressa não apenas publicamente nos movimentos feministas, mas também em confidências sobre relacionamentos – diz respeito à objetificação da mulher. As propagandas de cerveja, a indústria pornográfica e os casos de estupro comprovam, de forma explícita, o fenômeno. No entanto, a questão não se restringe a tais abomináveis situações, também se apresenta, de forma menos patente, nas relações pessoais.

Apesar de se creditar a objetificação da mulher à mentalidade machista, seu fundamento é anterior, tem como princípio os ideais utilitários. O utilitarismo, que configura hoje um sistema filosófico, se manifesta – usualmente de maneira inconsciente – na forma de conduta da sociedade moderna. Ao considerar o prazer como único e maior bem ao qual o ser humano aspira e, por conseguinte, como o fim de sua existência, concebe-o também como único parâmetro da norma moral das ações humanas. Dessa forma, tudo é tido como meio para atingir o fim máximo do prazer, inclusive a pessoa humana.

A despeito de sua presença em diversas épocas, a mentalidade utilitarista assumiu uma forma especialmente perniciosa no campo da sexualidade, principalmente com a chamada “liberação sexual”. Tornamo-nos “livres” para usar e sermos usados. Desse modo, o “amor” converte-se numa fusão de egoísmos: cada um defende o próprio egoísmo e aceita servir ao egoísmo alheio, sob a exigência de que o outro se disponha a satisfazer o seu. A pessoa rebaixa-se à condição de instrumento, uma vez que trata o outro como tal. A reciprocidade no egoísmo – cujos interesses podem ser a satisfação sexual, afetiva ou qualquer outra – em certo momento, revela seu caráter frágil de conveniência passageira.

Como antítese ao ideal utilitarista, está o princípio personalista, segundo o qual a pessoa é um bem que não se coaduna com a utilização e, portanto, não pode ser tratada como um objeto de prazer. O valor da pessoa não está, pois, subordinado à sua utilidade. O prazer desfrutado não é um fim em si, mas uma consequência da única atitude à altura do valor da pessoa humana: o amor. “Não basta desejar a pessoa como um bem para si mesmo, é preciso, além disso e sobretudo, querer o bem para ela. Esta orientação da vontade e dos sentimentos, altruísta por excelência, é chamada por S. Tomás de “amor benevolentiae” ou simplesmente “benevolentia”. O amor de uma pessoa por outra deve ser benevolente para ser verdadeiro, caso contrário, não será amor, só egoísmo.”, assinala um dos principais propagadores do personalismo, Karol Wojtyla – posteriormente Papa e hoje São João Paulo II.

Na luta interior de todo ser humano, a comodidade de voltar-se para si e, por consequência, usar-se dos demais, promove satisfações momentâneas, mas corrói as relações, que se tornam fugazes e descartáveis. Por outro lado, optar por fazer-se dom para o outro exige sacrifícios mas, ao contrário, além de suscitar alegria duradoura, constrói relações verdadeiras e maduras.

O combate à objetificação da mulher, e da pessoa humana no geral, requer, evidentemente, a recriminação da indústria pornográfica, cinematográfica, da moda e do marketing que mercantilizam o corpo feminino. Porém, reclama também o questionamento de nossa inserção enquanto agentes atuantes desta realidade cultural, e não como entes externos, alheios ao problema ou meras vítimas do “sistema”.

Parece cômodo ignorar que a objetificação consentida, permanece objetificação – o consentimento pode tornar o ato juridicamente legal, mas moralmente persiste como uma afronta à dignidade da pessoa. Parece conveniente desprezar nossa condescendência com formas menos evidentes de objetificar ou ser objetificado e culpabilizar tão somente instituições ou ideologias, sem que isso demande uma mudança de conduta própria. Mas, infelizmente, de reformistas em relação à sociedade e conformistas em relação a si mesmos, o mundo já está repleto. Revolucionários de passeata há muitos, estão em falta revolucionários no amor.

Beatriz Figueiredo de Rezende é graduanda em Ciências Econômicas na Unicamp e membro do IFE Campinas.

Reflexões de Auschwitz

Opinião Pública | 03/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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Durante a semana da Jornada Mundial da Juventude, em Cracóvia, o museu de Auschwitz ficou restrito para visita dos quase dois milhões de peregrinos – entre eles, o mais querido peregrino, Francisco, que foi até lá rezar e se encontrar com os poucos ex-prisioneiros ainda vivos. O silêncio do papa nesse episódio expressa o que todos experimentamos: naquele local, as palavras falham.

Ao passar por Auschwitz me recordei dos escritos de um dos seus sobreviventes, Viktor Frankl. O psiquiatra, em seu livro “Em Busca de Sentido”, além de relatar o cotidiano dos prisioneiros no campo e todas as brutalidades que enfrentavam, suscita profundas e atuais reflexões sobre a liberdade humana. O tema é uma constante na história da humanidade: podemos citar o lema da Revolução Francesa, ou motes como “liberdade de expressão”, “liberdade de escolha”, “liberdade sexual” etc. Trata-se de um valor universal, de um desejo intrínseco do homem. No entanto, há uma carência na concepção de liberdade – inclusive nos citados motes – cujas consequências são, e tendem a ser cada vez mais, desastrosas.

Tem-se a visão de que liberdade consiste em livrar-se de todos os limites e autoridades. Para tanto, seria necessário eliminar obrigações impostas pela sociedade, sujeições a hierarquias e limitações culturais. Nessa concepção, a liberdade de um indivíduo está subordinada às circunstâncias exteriores em que se encontra. Tal perspectiva fundamenta-se em duas ideias características da sociedade moderna: a visão de que o ser humano é um ser completamente condicionado e a crença de que as fontes de felicidade são a comodidade e o prazer.

Em relação à primeira ideia, não houve maior “laboratório vivo” – como Frankl denomina – que o campo de concentração para comprovar que o ser humano determina se cede aos condicionantes que o cercam ou se lhes resiste. Com propriedade, ele pontua: “Sendo professor em dois campos, neurologia e psiquiatria, sou plenamente consciente de até que ponto o ser humano está sujeito às condições biológicas, psicológicas e sociológicas. Mas além de ser professor nessas duas áreas, sou um sobrevivente de quatro campos [de concentração] e como tal também sou testemunha da surpreendente capacidade humana de desafiar e vencer até mesmo as piores condições concebíveis.” Superar coações aparentemente absolutas é um chamado extremamente exigente, mas sempre possível, como nos provam os “heróis dos campos”, dentre eles o franciscano polonês, Maximillian Kolbe, que deu sua vida para salvar a vida de outro prisioneiro de Auschwitz.

No que concerne à segunda ideia, sabiamente disse o papa Francisco na ocasião da JMJ: “Quando escolhemos a comodidade, por confundir felicidade com consumo, o preço que pagamos é muito, mas muito caro: perdemos a liberdade. (…) É certo que as drogas fazem mal, mas há muitas outras drogas socialmente aceitas, que acabam por nos tornar tanto ou mais escravos.” Penso que o “laboratório vivo” desse contexto tem sido a sociedade moderna com seu tão disseminado fenômeno: o vazio existencial. No limite, a falta de sentido para a vida leva ao suicídio. Mas, comumente, a frustração existencial é mais sutil e transparece sob máscaras que tentam compensá-la, como a busca desenfreada por dinheiro, por poder ou por prazer sexual.

Mesmo no campo de concentração, onde os prisioneiros sentiam-se “cadáveres vivos”, não deixou de existir um resquício de liberdade interior no homem, isto é, a capacidade de escolher a atitude pessoal que se assume frente ao ambiente. Atualmente, ao perder de vista essa dimensão interior e tratar da liberdade apenas como uma realidade exterior, acaba-se refém das circunstâncias e, ao invés de libertar, a liberdade escraviza: busca-se a liberdade e torna-se escravo do dinheiro, escravo de drogas, escravo da pornografia.

Evidentemente, há inúmeras situações exteriores que necessitam de transformações e é nosso dever, enquanto seres humanos, lutar por elas. A questão é que há outras inúmeras situações em que acusamos as circunstâncias, quando o verdadeiro problema, assim como sua solução, está em nós mesmos. “A rigor, jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas exclusivamente o que a vida espera de nós.” escreveu Frankl. Assim, quando retiramos o foco da nossa existência de nós mesmos, e colocamos nos demais, a vida configura-se de outra maneira e percebemos que, ao invés de sermos escravos de nosso egoísmo, somos sempre livres para amar.

Beatriz Figueiredo de Rezende é graduanda em Ciências Econômicas na Unicamp e membro do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 03/08/2016, Página A2 – Opinião.