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Somos todos Ilitch

Opinião Pública | 27/03/2019 | | IFE CAMPINAS

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Dez mortos em Suzano, três mortos em atentado na Holanda, 35 mortos em protestos na Venezuela, 209 mortos em Brumadinho… Diariamente nos deparamos com notícias que retratam mortes devidas a diferentes circunstâncias. Quase inevitavelmente, porém, focamos nossas atenções (ou indignações) nas circunstâncias da morte e não na realidade da morte. A dizer, tendemos a nos voltar para as causas que nelas resultaram e nos possíveis meios de as evitar – o que é justo e fundamental que façamos – mas, poucas vezes, refletimos sobre a própria morte.

A reflexão sobre a inevitabilidade da morte tende a surgir quando perdemos uma pessoa próxima, especialmente se de forma repentina. Mas, quando distante e referida em grandes números, depreendemos da morte reflexões sobre a violência, sobre a infraestrutura do sistema de saúde, sobre a corrupção, sobre a guerra, mas não sobre a morte em si.

Apesar de se tratar da realidade mais certeira que possuímos, parecemos não compreender a dimensão de sua fatalidade. Tolstói, genialmente, expressa tal incompreensão no momento em que Ilitch depara-se com sua morte: “Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo. O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais (…)”

A mera leitura desse trecho, assim como as corriqueiras matérias em jornal, não são suficientes para internalizarmos a realidade da morte. Como coloca Gustavo Corção, em sua obra Lições do Abismo, é possível ler tal página de Tolstói, e apreciar sua pungente beleza do alto de nossa imortalidade, afinal não somos Caio, nem Ilitch. Logicamente, sabemos que o silogismo permanece verdadeiro se substituído por nosso próprio nome. Mas há uma diferença substancial entre alegar a veracidade de nossa inevitável fatalidade e efetivamente assumi-la em nossa vida.

Refletir sobre a morte nos leva a repensar a própria vida e a nos deparar com questões fundamentais: O que significa a minha existência? Qual o sentido da vida? Para onde vou quando morrer? Há vida após a morte? Deus existe? Questões estas que comumente procuramos postergar, pelo incômodo de adentrar um terreno cujas respostas não se encontram no plano material, palpável, tão mais seguro e certeiro.

As respostas a estas e outras questões existenciais não são um mero exercício de elucubração filosófica. Ao contrário, queiramos ou não, respondemos a elas com nossas vidas. A diferença entre refletir ou deixar de refletir sobre elas é que, no primeiro caso, as respostas são frutos de decisões pessoais, no segundo, as respostas são frutos das circunstâncias. Optar por não refletir, destacadamente sobre a morte e os inerentes questionamentos referentes à percepção da fugacidade da vida, é terceirizar a decisão para as circunstâncias, isto é, abrir mão do atributo caracterizador do ser humano: sua liberdade.

Refletir sobre a morte pode parecer mórbido, deprimente ou um exercício que torna a vida sem sentido. Mas é precisamente o oposto que ocorre. Encarar a realidade da morte permite repensar as prioridades da vida, estabelecer o justo valor às coisas e perceber que, no fundo, em nada satisfaz substituir a falta de sentido por excesso de sensações.

Talvez, se Ilitch tivesse enfrentado os questionamentos mais essenciais de sua existência antes do seu leito de morte, não tivesse concluído que “quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo”. Talvez, pensar na morte seja o remédio que cada pessoa, individualmente, e a sociedade, coletivamente, precisamos para viver de forma autenticamente mais humana.

 

Beatriz Figueiredo de Rezende é bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e membro do IFE Campinas (beatriz.rezende@gmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 27 de Março de 2019, Página A2 – Opinião.