130 anos de abolição?

Opinião Pública | 31/01/2018 | | IFE CAMPINAS

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Neste ano, comemoram-se 130 anos da Lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888, que decretou a abolição da escravidão no Brasil. Apesar da corrente visão de que a escravidão é algo pertencente ao passado ou de que atualmente existem apenas alguns casos isolados dessa prática, a realidade demonstra que se trata de um problema sistêmico, ainda que oculto. Estima-se que, atualmente, há 161 mil escravos no nosso país (Global Slavery Index 2016).

Referir-se a escravos no século XXI é, frequentemente, tido como exagero. Infelizmente, ao contrário do que se acredita, escravidão contemporânea não é um disfemismo para condições precárias de trabalho. Ser escravo hoje é, em essência, o mesmo que ser escravo em qualquer outra época da história da humanidade. Escravidão caracteriza-se pelo controle de uma pessoa por outra, exercido por meio de violência ou de ameaça da mesma, cuja finalidade é a exploração econômica, sexual ou psicológica.

A escravidão, por constituir um crime contra a humanidade, é uma problemática que ultrapassa fronteiras nacionais. Reforça essa alegação o fato de a mão de obra escrava, ao integrar-se às cadeias globais de produção, estar presente em insumos utilizados por empresas e, consequentemente, em mercadorias que consumimos diariamente. Globalmente, a escravidão atinge 40 milhões de pessoas (Alliance 8.7, 2017). Pessoas com nomes, rostos, famílias e sonhos. Pessoas que, enquanto escravos, têm seus nomes esquecidos, seus rostos apagados, suas famílias desagregadas, seus sonhos extintos.

São escravos, hoje, os refugiados nigerianos vendidos em leilão na Líbia a 400 dólares (CNN, novembro 2017). São escravas as crianças traficadas na África Ocidental para trabalharem em fazendas de cacau que exportam 68% do cacau mundial (O Lado Negro do Chocolate, Miki Mistrati, 2010). São escravos os imigrantes encarcerados por anos em navios de pesca na Tailândia, 3º maior exportador de pescado do mundo (Sold to the Sea, EJF, 2013). São escravos os trabalhadores rurais desempregados no Brasil que são trapaceados por promessas de emprego e passam a viver em regime de servidão por dívida (Aprisionados por Promessas, CPT, 2006). Há escravos, ainda, na indústria têxtil, na construção civil, no trabalho doméstico e na prostituição. Como afirmou Kevin Bales, presidente e fundador da ONG Free the Slaves: “Em todo lugar que procurei, encontrei escravidão”.

Além de condições degradantes, jornadas exaustivas e violências físicas e psicológicas, as histórias de libertos da escravidão revelam que o estado constante de uma pessoa escravizada é o medo. Medo de agressões e penalidades desumanas cuja humilhação resulta em cicatrizes eternas de quem teve destituída sua dignidade.

Entre as medidas de combate à escravidão, está a divulgação e conscientização através de sites (como o Repórter Brasil), documentários e cobertura televisiva (como o CNN Freedom Project); medidas visando a transparência empresarial (como a “lista suja” brasileira – atualmente suspensa – que consistia em cadastro de empregadores flagrados utilizando mão de obra análoga à escrava); mudanças legislativas (como o UK Modern Slavery Act 2015, que passou a exigir que empresas inglesas divulguem os esforços que realizam para erradicar a escravidão em suas cadeias de suprimento).

Tais medidas devem ser aprimoradas, repensadas e adaptadas às diferentes realidades. Mas, se visamos mudanças concretas, é preciso que lutemos acima de abstrações, acima de partidarismos, acima de ideologias políticas vazias. Só assim será possível enfrentar as grandes injustiças deste século. A escravidão, assim como as demais atrocidades da humanidade, se dá pela perversidade de poucos e a indiferença de muitos. Faço, pois, minhas as palavras do grande abolicionista William Wilberforce “Você pode escolher olhar em outra direção, mas nunca mais poderá dizer que não sabia.” Do contrário, comemorar 130 anos da abolição da escravatura será um ato vazio.

Beatriz Figueiredo de Rezende é bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e membro do IFE Campinas (beatriz.rezende@gmail.com)