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Educar as emoções – por Pablo González Blasco

Cinema | 03/12/2018 | | IFE BRASIL

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Foto por Dan Bøțan no Unsplash.

 

Educar com o Cinema é tema que me tem acompanhado nos últimos anos. Tive ocasião de escrever artigos, publicar livros, dar conferências em congressos internacionais, apresentar-me em programas de TV. E, em quase todos os cenários, a pergunta que surge é similar: “Você não é médico? E isto do cinema, como se encaixa na sua vida?”. A pergunta procede e, até tal ponto, que mesmo quando não a fazem eu mesmo a coloco e respondo. Afinal, é necessário justificar o tempo que se dedica a um trabalho que já ultrapassou de longe as proporções de um simples hobby.

Dizer que os médicos de hoje estão munidos de excelente preparação técnica, não é novidade. Como, infelizmente, também não o é afirmar que carecem, na maioria, da sensibilidade suficiente para lidar com o ser humano doente, que sofre e se confia aos seus cuidados. Fala-se em humanizar a medicina, quando na verdade o que se gostaria é de injetar doses de humanidade nos médicos para ver se o paciente consegue, de algum modo, se fazer entender pelo profissional que está destinado a cuidá-lo e, muito absorvido pela técnica moderna –e necessária- parece esquecer o paciente, ocupando-se apenas com a doença.

Para um professor de medicina –como é o meu caso- trazer o médico de volta ao que realmente importa, o paciente, é um desafio diário e uma necessidade na formação dos jovens profissionais. E os que levamos algumas horas de vôo nesta empreitada formativa sabemos que não é tarefa fácil lembrar aquilo que é óbvio …..e que se esquece: a pessoa que sofre. Recursos assim chamados “humanizantes” não passam de remédios paliativos, que têm tanto de superficial como de ineficaz. Cursos de ética, aulas de psicologia e de relacionamento, grupos de estudo, não conseguem a pesar da imensa boa vontade dos organizadores, o seu objetivo. E o divórcio entre o médico que se diverte com a técnica, e o paciente que caminha em desamparo com a sua moléstia continua.

O Cinema tem se mostrado um recurso eficaz para promover a reflexão, para fazer as pessoas pensar. Estudantes e médicos, profissionais da saúde, são convidados através desta metodologia a refletir sobre as suas atitudes. E o resultado é que a reflexão surge como o verdadeiro núcleo do processo humanizante. De modo talvez excessivamente simples, pode se dizer que humanizar é, em primeiro lugar, lembrar ao médico que ele, médico, é um ser humano, e que o paciente também o é. Algo evidente embora esquecido com muita freqüência. E a reflexão traz isto à tona com vigor. Se o cinema nos ajuda a pensar e a refletir sobre as coisas essenciais da vida, converte-se em recurso educacional de valor para formar pessoas e, naturalmente, para melhorar a formação dos médicos. Aqui está a resposta à pergunta que costuma inaugurar os vários cenários educacionais aos quais sou convocado.

Mas isto que funciona para os médicos, não funcionaria para qualquer pessoa? Evidentemente que sim. Daí que o que se iniciou como uma necessidade docente específica –trazer os estudantes de medicina para o lado humano do enfermo- amplia suas possibilidades educacionais com enorme espectro. A razão é simples: O universo da afetividade – sentimentos, emoções e paixões – vêm assumindo um crescente papel de protagonista no mundo da educação. As emoções do aluno não podem ser ignoradas neste processo. Cabe ao educador contemplá-las e utilizá-las como verdadeira porta de entrada para compreender o universo do estudante. Formar o ser humano requer educar sua afetividade, trabalhar com as emoções. Como fazer isto de modo ágil, moderno, compreensível, eficaz? O Cinema mostra-se particularmente útil na educação afetiva, por sintonizar com o universo do estudante onde impera uma cultura da emoção e da imagem. Educar as atitudes supõe mais do que oferecer conceitos teóricos ou simples treinos; implica promover a reflexão que facilita a descoberta de si mesmo, e permite extrair do núcleo íntimo do ser humano um compromisso por melhorar. Professores, estudantes, líderes empresariais, educadores familiares agentes sociais, recursos humanos e todos os que têm a gestão de pessoas como objetivo profissional encontrarão no meu mais recente livro “A Educação da Afetividade através do Cinema” uma metodologia simples, acessível e divertida para aperfeiçoar seu desempenho. Onde há pessoas querendo melhorar e alguém querendo educar o cinema tem vez.

A abordagem pedagógica clássica costuma dividir os objetivos educacionais em três grandes categorias: assim os cognitivos, os psicodinâmicos e os afetivos, implicando respectivamente a aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de habilidades e a educação da afetividade. Enquanto os dois primeiros são de fácil avaliação ou, pelo menos, passíveis de uma avaliação objetiva –através de provas, testes e desempenho de aptidões- avaliar a qualidade da educação afetiva é tema que entranha muito maior complexidade. Não há como medir com “objetividade” o crescimento ou a correta orientação da dinâmica afetiva do educando; e como sempre acontece com aquilo que é difícil medir, corre o risco de ser esquecido, ou colocado no âmbito da pura arbitrariedade. Em outras palavras: cada educador avalia a educação afetiva como quer, ou como pode, ou simplesmente deixa fazê-lo. Isto significa que, na prática, muitas vezes nem é levada em consideração ao estabelecer os objetivos educacionais. Pretender uma avaliação objetiva –análoga á praticada com os conhecimentos técnicos de física ou de história e geografia, por colocar um exemplo- é desconhecer a natureza do fenômeno, querer juntar litros com metros, ou medir o amor por quilogramas. A dificuldade na medida, na avaliação, é porque talvez não se trate tanto de medir como de fomentar e promover a afetividade.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Texto publicado no site de Pablo González Blasco, em 25/08/2007, link: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2007/08/25/educar-as-emocoes/.

[FILME] “Casablanca” (por Pablo González)

Cinema | 19/11/2018 | | IFE BRASIL

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(Casablanca). Diretor: Michael Curtiz. Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Reins.USA. l943. l02 min.

A sessão mensal do Cinema para Todos pedia um clássico. E um clássico é muitas vezes aquele filme do qual todos falam, muitos citam diálogos e até alguma cena consagrada…..mas nunca viram o filme inteiro. Era preciso preencher essa lacuna cultural. Colocamos Casablanca na tela, a pipoca por perto, e deixamos rodar.

Quem não conhece Casablanca? Em conversas de cinema, mesmo entre os pouco versados, é passagem obrigatória. E os afiados na arte fílmica citam de cor os diálogos, e até colocam na boca de Bogart palavras que nunca chegou a pronunciar. Os clássicos têm isso; manipulação indiscriminada, direitos autorais vencidos. São como patrimônio da humanidade. “As times goes by” -o tema musical que ninguém toca como Sam- envolve em papel de presente o celuloide, tornando-o apetitoso. A voz arranhada de Sam golpeia as lembranças de Bogart que tem cheiro de Paris; os dedos arrancam das notas a melodia, e dos espectadores todo um universo de saudades na tentativa de congelar momentos passados de tempos melhores. Os tempos de cada um, as recordações boas que todos guardamos no coração.

Por isso, falar de Casablanca é sentir-se à vontade em tema que todos conhecem. Não há o perigo de “contar o filme” quando passeamos pelas cenas, recreando-nos mais uma vez, em tudo o que nos é grato. Quando se assiste a primeira vez, presta-se atenção no argumento. Na segunda, são os diálogos -riquíssimos, deliciosamente sutis- os que chamam a atenção. Na primeira passada fugiram à nossa observação, pois a agilidade das cenas é grande, e o conteúdo denso. Mas é depois, nas sucessivas apreciações, quando reparamos que cada cena, cada quadro, é simplesmente redondo, acabado. Passamos a ver o filme como um conjunto de miniaturas preciosas, onde vamos nos detendo, ganhando intimidade com ele, como um álbum de família. É o momento da sintonia, de entrar em ressonância com o filme, vivê-lo junto com as personagens numa aventura que é desabrochar de emoções ocultas.

Todos conhecem Casablanca, mas poucos sabem explicar o magnetismo que encerra. Lembro de um fato esclarecedor. Foi no início da década dos 80, quando o Vídeo Cassete aparecia no mercado brasileiro, e os cinéfilos corriam à procura dos clássicos, daqueles que não passavam na TV, ou pelo menos em horário compatível com o dos cidadãos comuns, que acordam cedo e trabalham ganhando o leite das crianças. Naquela época a pirataria de fitas de vídeo era a praxe, sem selos de qualidade e toda essa regulamentação que vivemos hoje.

Vamos ao fato. O local: um vídeo clube nos Jardins. Os protagonistas: um rapaz jovem, novo cliente, fascinado pelas descobertas dos clássicos da sétima arte e leigo no assunto; uma moça, gerente do clube; um outro cliente que, passivo, observa o diálogo entre os dois primeiros. “Formidável este Casablanca que você me recomendou” – diz o rapaz, enquanto devolve a fita. “Naturalmente -exclama a moça- trata-se de um clássico. Pena que tenha esse final. Deveriam ter dado um jeitinho…”. “É mesmo: se não fosse esse final…” – acrescenta o jovem. O terceiro personagem entra em cena: “Minha filha, não seja superficial. O filme é famoso pelo final que tem. Você não repara que um final diferente lhe tiraria toda a força? Murcharia tudo, querida!” Perplexidade. O que murchou foi a conversa, que se encerrou ali mesmo.

Assisti Casablanca muitas vezes. As suficientes para perder a conta e conhecer de cor a maioria dos diálogos. O desfecho final, na clássica cena do aeroporto, é magistral. O magnetismo de que falávamos cativou os cineastas e os amantes do cinema que gostam, vez por outra, de saborear cada um dos fotogramas, envolvidos na neblina do aeroporto. A sequência temperada com duas lágrimas escorrendo na sombra do chapéu de Ilsa, inclinado com charme.  E tudo isto, sem saberem explicar o porquê. São os valores que o filme destila os que lhe conferem toda a força e encanto. Como o vinho, melhor a cada ano que passa.

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, Rick e Ilsa, acompanham o desenrolar do cinema neste século, atrás das cortinas do escritório de Rick. Um cinema que cada vez mais carece de valores, órfão de romantismo. Ou talvez, como na janela de “La Belle Aurore”, quando Paris é invadido, olham-nos com receio, surpreendidos destes novos invasores que chamam de cinema a qualquer metro de celuloide impresso. Algo grave está para acontecer, pensam. E como toda resposta: “Beije-me, beije-me como se fosse a última vez”. A taça de Champagne cai. A tinta do bilhete escorre com a chuva na estação de Paris. Definitivamente, é preciso rever Casablanca, de vez em sempre, para que o coração do cinema não perca o seu marca passo.

Ingrid Bergman, com 28 anos, sempre elegante, com postura e classe, sóbria nos modos, cheia de dramatismo quando necessário. Bogart vive o papel com credibilidade porque é ele mesmo, como sempre. Cínico, indiferente, com metódico desprezo por tudo e por todos. Cercado de um ar “não partidário”, como recurso para encobrir os sentimentos nobres de fundo. Comenta-se nos bastidores que o final de filme foi escolhido por ele: não surpreende. É bem o seu estilo, auto desprezo, querendo ser frio, mas não consegue ocultar que tem coração e grande.

Não poderiam ser outros os atores deste clássico embora -sempre conversa de bastidores- inicialmente, nomes diferentes pairavam entre os candidatos. Hoje seria difícil imaginar quem encaixaria melhor. Michael Curtiz, húngaro de nascimento, passaria a posteridade mesmo que tivesse dirigido apenas Casablanca. As personagens secundárias estão maravilhosamente cuidadas, e aqui vai mais um mérito para o diretor deste filme antológico. Os valores de fundo atuam como arcabouço para toda a tecelagem das cenas. São estes valores, os que o público, sem perceber, vai descobrindo cada vez que assiste, entrando em ressonância, identificando-se com eles.

Passeemos de novo pelas cenas. Estamos no quarto de Rick. Ilsa exige, revolver em mão, as carta de trânsito. “Dispare, me fará um favor”. É Rick falando. Ilsa titubeia, cede e cai nos braços de Rick. “Já não sei mais o que é direito. Você terá de pensar por nós dois. Por todos nós”. O público identifica-se com Ilsa que hesita. Está falando o sentimento.

Agora estamos no aeroporto. Rick pede ao inspetor Renault que preencha as cartas de trânsito. Ilsa vira-se surpresa: “Eu não entendo. Ontem à noite…” Rick fala com convicção: “Ontem à noite pensei muito e decidi que você vai com Lazlo nesse avião. Se fica talvez não se arrependa hoje, nem amanhã, mas algum dia acabaria fazendo-o e pelo  resto da sua vida”. É a lealdade, o sentido do dever, a nobreza do coração de Rick que deixa ir a mulher que admira, que respeita – sim, que ama!!- por sabê-la esposa de outro. Decisão impregnada de lealdade e bom senso que Bogart assina, sem dar-se importância, de modo característico: “Não quero parecer nobre; mas não é preciso muito para ver que os problemas de três pessoas não passam de um punhado de feijão neste mundo nosso”. Em tradução livre, é mais ou menos isso.

O sentimento se debate e o espectador com ele. Ilsa pede uma explicação que satisfaça o coração: “Mas…e nós?” E Rick: “Nos teremos sempre Paris”. Isto é, teremos sempre a lembrança do nosso ideal, de um amor nobre, claro, sem subterfúgios, livre de culpa. Ilsa vai-se consolada. E o espectador segura o coração -juiz cego- e assente para o que sabe ser correto.

É essa experiência de atravessar o dilema guiado apenas pelo coração, hesitando nos sentimentos de Ilsa até perder a noção da verdade -“não sei mais o que é direito; você terá de pensar por nós dois”- para depois ser confirmado na opção certa por Rick, uma vez e outra, o que me faz rever Casablanca sem enjoar. Rick, que pensou por eles dois, por nós todos, nos oferece a solução certa. O cínico, o indiferente, aquele que não sabíamos em que time jogava, mostra-nos que joga no nosso; ou melhor, que nós jogamos no dele, porque ele é indiscutivelmente o líder. Sentimos, com o inspetor Renault, que “é o começo de uma grande amizade”, com Rick, naturalmente.

A cena do aeroporto, que passei inúmeras vezes nas minhas aulas e conferências para ilustrar a necessidade da reflexão -alguém tem que pensar, e nos ajudar a pensar- teve muitos desdobramentos. Lembro de uma aluna, há muitos anos, que me disse: “O difícil, professor, é subir no avião. Ninguém pode subir por nós. E muitas vezes, sabemos que é o certo, mas custa, custa demais”. Quando apresentei a tese doutoral -sobre cinema e educação médica, que continha na capa uma foto de Casablanca- lembro que essa mesma aluna, me deu de presente um pequeno pôster com a cena do aeroporto. Não sei o que foi feito da aluna, perdi a pista, mas o pôster está lá na parede do nosso terraço.

Quem sabe revendo sempre Casablanca, os homens -os que fazem e os que assistem cinema- aprendam a degustar os valores impressos no filme. Repararíamos -entre muitos outros recados- que deixar-se levar apenas pelo sentimento é solução pouco madura, injusta com os semelhantes. Que o final feliz, o da vida de cada um, entranha decisões custosas que, como no filme, se lembram com carinho especial. E que deixar-se levar pelo que apetece, colocar a lealdade e o compromisso no arquivo morto, é saída fácil. Podemos até gostar “hoje, amanhã, mas algum dia…”

Se apesar de tudo, os homens do cinema são impermeáveis aos ideais nobres -razoes deste teor não convencem quem procura apenas lucro- revendo Casablanca aprenderão, no mínimo, a produzir um cinema de classe. Esse cinema que o público precisa, que o engrandece arrancando-o da mediocridade. Um cinema dedicado a ele, ao público, como somente Ilsa e Rick sabiam fazê-lo. Here’s looking at you kid, quer dizer, “pensando sempre em você”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em http://www.pablogonzalezblasco.com.br, em 28/05/2018.

 

[cinema] Paterson: A poesia no quotidiano

Cinema | 02/12/2017 | | IFE BRASIL

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Fazia tempo que não publicávamos uma crítica de cinema. Pois bem, voltamos com uma crítica de nosso parceiro Pablo González Blasco.

Paterson. (2016). Diretor: Jim Jarmusch. Adam Driver, Golshifteh Farahani, Kara Hayward, Sterling Jerins, William Jackson Harper. 112 min.

Paterson - coverTinha lido a crítica no jornal e chamou-me a atenção o motorista poeta. Depois chegou um desafio desses que, como sem querer, te lançam no grupo de colegas da faculdade, por ter criado uma fama imerecida de crítico de cinema. Dizia mais ou menos assim: “Assisti a um filme minimalista do Jim Jarmusch “Paterson” que indico. Curiosamente, pelo site de cinema ImDb acessei uma crítica do filme em espanhol cujo resenhista se chama Pablo Blasco…embora sei que não é você”. Recolhi a luva, e a guardei para ver a melhor ocasião para o duelo. Pouco depois outro amigo me espetou: “Tenho o filme para você. Paterson. Veja e me diga o que lhe parece”. Não havia mais o que esperar, agora com duas luvas no bolso. O duelo -um modo de dizer- estava lançado, quase que em simultânea, como aquele primeiro onde D’Artagnan enfrenta os três mosqueteiros, chegam os guardas de Richelieu e acaba conquistando a confiança de Athos, Porthos e Aramis.

Sentei para ver o filme e respondi a estocada da segunda luva, de bate pronto. “Assisti Paterson. Impactante. Mas para público seleto. A poesia do quotidiano. A rotina que vira verso. Desprendimento e simplicidade contundente. E a força da vocação e da arte que nunca morre. Páginas em branco são sempre excelentes oportunidades”. Depois continuei pensando sobre o filme, e os pensamentos cristalizam nestas linhas, atrasadas, mas decantadas na serenidade rodeada da poesia que nos cuida e nos cura.

Paterson - 1Não sei se o filme seria a poesia no quotidiano ou melhor, transformar o afazer quotidiano em poesia, o que é muito mais difícil. Fazer da prosa diária poesia, como dizia um santo contemporâneo. Em qualquer caso, temos diante um ensaio que faz pensar, mas não é um filme intelectual, porque o quotidiano -a rotina mais chã- inunda todos os fotogramas. Um motorista de ônibus, interpretado por um ator de sobrenome Driver. Coincidência? O nome do protagonista é o mesmo da cidade onde vive e dirige o seu ônibus: Paterson. Também é o mesmo nome de uma série de poemas de William Carlos Williams que era nascido na região e, naturalmente, um ícone admirado pelo motorista.

Paterson - 2Rotinas tremendas, que se sucedem dia após dia, com uma meticulosidade que dá para ajustar o relógio. Tempos curtos, espremidos, do horário de trabalho, para alinhavar alguns versos no caderno que Paterson carrega sempre consigo. Enquanto esquenta o ônibus, depois do almoço, numa parada ao voltar para casa. E em casa está Laura, a esposa, sempre mudando o visual, mas sem sair dos tons em branco e preto. Uma variedade desafiante do que é possível fazer apenas com duas cores. A mulher que quer mudar tudo, transforma, mas não sai do bicolor. Como um avião na pista, corre, supera o carro de fórmula 1, mas falta-lhe puxar do mancho para decolar. O mancho é justamente a poesia, que permite ver as coisas com perspectivas diferentes, com altura, volume, relevo, enfim, profundidade insuspeitada.

Paterson - 3Houve conversas sobre o filme, que acabam decantando nestas linhas. Alguém me disse: “E o que você achou do contraste entre ele (sempre a mesma rotina) e a esposa (constante mutação), do tipo Parmênides X Heráclito?” Confesso que o touché que me chegou nesta comparação com os filósofos pré-socráticos fez-me pensar. E tive de responder à estocada com o primeiro que me veio à cabeça, também em moldes filosóficos:  “Sim, o branco e preto constante da Laura (que tem o nome da mulher ideal de Petrarca, não por acaso) é algo que me fez pensar. Ela muda, sim; mas conserva o padrão branco e preto, e com ele transforma absolutamente tudo. Não sei se é Heráclito e Parmênides, ou mais Aristóteles e Tomás de Aquino com a essência, substancia e os acidentes. Tem o que permanece e o que muda. Mas o fundo está lá”.

Paterson - 4Diz Fernando Pessoa, que muito entendia de poesia: “A vida é terra, e vive-la é lodo / Tudo é maneira, diferença ou modo/ Em tudo quanto faças sé só tu/ Em tudo quanto faças sé tu todo”. Somos rotina, pouca coisa, terra que os primeiros pingos das adversidades, transformam os sonhos em barro, nos melecamos por inteiro. Não há como evitar a condição de que somos pó, um recado bíblico, e voltaremos ao pó. A diferença é por nossa conta, a atitude que consegue transformar o pó rotineiro em verso romântico. A poesia conduz à reflexão que busca sentido no que faz diariamente, e justamente porque o encontra, dedica-se com afinco. A rotina -disse alguém- não é fazer as coisas de sempre, mas fazê-las ‘como sempre’. O que nos arranca da modalidade -do ‘como sempre’- é justamente o olhar poético. E essa atitude nos protege das vicissitudes -do lodo- que sempre chega, dos imprevistos, porque conseguimos chegar mais longe com a perspectiva poética.

Paterson - 5Sem perder a condição de pó sofredor, de poeira que outros pisam ao caminhar, mas com a dignidade de quem sabe se elevar por cima do rasteiro e trivial. Vem à minha mente -esse é o risco da poesia, que uma puxa outra- os versos do poeta espanhol, Quevedo, quando fala da morte, e que estampo no original pela força que leva dentro: “Cerrar podrá mis ojos la postrera sombra que me llevare el blanco día (…)Alma a quien todo un Dios prisión ha sido, venas que humor a tanto fuego han dado/ médulas que han gloriosamente ardido, su cuerpo dejará, no su cuidado/ serán cenizas, mas tendrán sentido/ polvo serán, mas polvo enamorado”. Reduzidos a pó, após a morte, mas com o palpitar presente que fazem dos restos pó enamorado, cinzas com sentido, nas que permanece o mesmo cuidado estético e apaixonado.

Paterson - 6A poesia do quotidiano, o caderno do motorista Paterson, evoca aqueles flash-mobs que encontramos no Youtube, onde no meio de uma praça, no mercado municipal, começam a soar acordes e de repente surge o brinde de La Traviata, o coro dos peregrinos de Nabuco, o Hino da Alegria, da nona sinfonia de Beethoven. E lá, entre o açougue e a peixaria, com roupas do ofício, marcadas e fétidas, tenores, sopranos e barítonos configuram um cenário lírico impensável em aquelas circunstâncias. E some o cheiro a peixe, a sujeira, enquanto o gari se transforma em Alfredo que convida a Violeta (até o momento a feirante de frutas) a abandonar a vida frívola e acompanha-lo nas aventuras do amor. Sem trocar de roupa, sem cenários, ao natural, porque a enxurrada artística releva os detalhes da rotina.

Paterson - 7Houve quem disse que depois de Auschwitz a poesia não teria vez. E outros que, diante das carências humanas, se perguntavam qual o sentido da poesia em tempos de miséria, pois não enche as barrigas. Vendo Paterson e sentindo a dimensão da poesia fica claro que a colocação é justamente a contrária: a poesia nos salva do naufrágio no quotidiano, da miséria humana -própria e alheia- porque é alavanca que permite levantar-se sobre a poeira que nos cega e irrita. Outra lembrança abre-se espaço na memória: a figura de Mandela preso na cela, naquele filme superior de Clint Eastwood, Invictus, enquanto se escutam os versos de Henley: “Eu sou o mestre do meu destino, eu sou o capitão da minha alma”.

Paterson - 8

Os clássicos afirmavam que o homem é um ser que esquece. E para remediar esta quase amnésia vital, Zeus, o rei dos deuses, criou as musas e as artes como recurso para recordar. Esquecemos sim, mas não dos detalhes e das bobagens, nem das ofensas que levamos com cuidadosa contabilidade no coração que vai se azedando. Esquecemos do essencial: quem somos, para que servimos, qual é o sentido da nossa vida. E nos redemoinhos da desorientação, buscamos absurdamente respostas no Google, mendigamos consolos nas redes sociais, corremos sem nos perguntar onde vamos. “Bene curris, sed extra viam” -dizia Santo Agostinho, em frase de impacto que dispensa a tradução. E esquecemos que as respostas estão no poema, no quadro, na música.

Anota Wittgenstein que daquilo que não se pode falar, melhor é calar. Do que não se pode falar de maneira científica, é melhor calar e mostrar: o amor, a piedade, a luta pelo bem, a mística. Calar-se para viver com obras, com sentimentos, com alegrias e tristezas, todo esse capítulo humano para o qual não existe ciência, mas sim sabedoria. Essa é a dimensão que a poesia nos oferece. Essas são as páginas em branco do caderno de Paterson, que vai recheando no meio do tedioso itinerário do ônibus, e as que cada um de nós tem de preencher para fazer da nossa vida, simples, um belo poema que encante, anime os outros, e faça um mundo melhor. Sim, precisamos de poesia, justamente hoje: essa é a diferença e o modo que Pessoa nos recomenda para safar-se do lodo. Uma decisão que vale a pena -diz ele- se temos magnanimidade, se a alma não é pequena.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2017/12/01/paterson-a-poesia-no-quotidiano/> Acesso em 01/12/2017.

[FILME] “Lembranças de um amor eterno” (‘La Corrispondenza’): uma avalanche de conteúdo rebatendo a banalidade da comunicação – por Pablo G. Blasco

Cinema | 21/04/2017 | | IFE BRASIL

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(La Corrispondenza), 2016. Diretor: Giuseppe Tornatore. Música: Ennio Morricone.  Intérpretes: Jeremy Irons, Olga Kurylenko, Simon Johns, James Warren.116 min;

La correspondenza - capaAs tais lembranças de amor eterno é mais um caso desastroso de tradução doméstica. Por que não manter o nome original italiano em tradução literal -embora o filme seja falado em inglês- A Correspondência? Mania de inventar moda, e de colocar em risco algo que não te pertence, e que pode desestimular a assistir este filme especial. Um filme dirigido por Tornatore, com música de Ennio Morricone, e interpretado por Jeremy Irons é algo que, no mínimo, é preciso ver. Um filme em inglês, mas com alma italiana. Daí a importância do título, que forma parte de todo o pacote, ou melhor, da obra de arte.

Um título peculiar, simbólico, representativo de um filme repleto de surpresas. Um verdadeiro mano a mano -nada mais lógico em se tratando de uma correspondência- entre a atriz ucraniana, que segura com pulso mais de 70% das cenas, e o ator britânico que aparece com ritmo regular… na tela do computador! Estender os comentários sobre o argumento seria colocar em risco o filme, já ameaçado pela infeliz tradução do título.

La correspondenza - 4Mas as reflexões que destilam são muitas e apetitosas. Temos aqui um elogio rasgado aos recursos técnicos de comunicação moderna: mídia eletrônica, redes sociais, e-mails, mensagens por celular, e muitos outros. E todos eles comandados por um velho professor de astronomia, alguém profundamente humano, com uma cultura notável, experimentado na vida, que sabe e gosta de viver bem. Vale a pena entender este aparente paradoxo, porque hoje critica-se dos velhos que não estão atualizados na tecnologia moderna, que lhes custa acompanhar os próprios alunos -uma geração que parece nutrida com aplicativos dissolvidos no leite materno.

La correspondenza - 1Um paradoxo que, na verdade, não existe. O que Jeremy Irons faz nas aparições na tela do computador -ou quando acusa presença por outros recursos- é um maravilhoso exemplo de conteúdo: quando há densidade e substância naquilo que se comunica, os recursos inovadores tornam-se extremamente úteis. Imaginemos, por exemplo, o que Cervantes ou Shakespeare no século XVI, Tomás de Aquino no XIII ou Agostinho de Hipona no V, poderiam ter feito se dispusessem de um computador. Ou o Cardeal Newman, que escreveu mais de 30 mil cartas, teria feito com os e-mails. É um exercício de imaginação interessante, que raramente as pessoas fazem, embora admirem toda a produção literária destes e de tantos autores…com tão poucos recursos.

Na verdade, o importante seria perguntar-se quais são os recursos para produzir conteúdo na comunicação. Não precisa ser Hamlet, nem D. Quixote, mas sim algo que tenha começo, meio e fim. O relato de uma experiência, algo que em tempos não tão distantes as pessoas costumavam contar-se nas cartas, ou uma simples conversa à mesa de um bar, ou em família, ou entre amigos.

La correspondenza - 2Vivemos momentos de uso compulsivo de redes sociais e recursos de comunicação, para não comunicar absolutamente nada. Relacionam-se com multidões sem ligar o mais mínimo para ninguém em particular. Um uso descaradamente banal da capacidade de interagir com o próximo. Falta conteúdo pessoal -algo que eu quero dizer a alguém – e acaba-se importando de Power points melífluos e tediosos, filmes de WhatsApp embrulhados em canções de ninar, e ainda solicitam que enviem para todos os amigos. Misericórdia. Tenha amigos para isso. Na verdade, o buraco é mais fundo: as pessoas podem ter o que dizer, mas são incapazes de se exprimir, um analfabetismo preocupante da própria interioridade que recorre a emoticons, e outros produtos servidos nas prateleiras da internet, para ver se encaixam com a sua necessidade de transmitir algo: um pensamento, um desejo, um grunhido que seja….

Recebi de um amigo há algumas semanas -recebi por e-mail, claro, e o texto é um link que está na web- algo sobre se o Google nos estava tornando estúpidos.

La correspondenza - 5Vale a pena ler o artigo… se o leitor for capaz. Porque lá se adverte que mesmo leitores vorazes estão perdendo a capacidade e o fôlego para leitura. O modo como a informação nos chega, formata não somente o conteúdo (quando existe) mas molda os hábitos do pensamento. Escritores, que sempre são os que mais leem, reconhecem que não conseguem enfrentar Guerra e Paz. E mesmo nos formatos eletrônico, os olhos surfam com rapidez, sem assimilar conteúdos.

Quer dizer, se isto acontece com quem tem intimidade profissional com o conteúdo -escritores, jornalistas, críticos- o que podemos esperar do resto da humanidade submetida à avalanche técnica, com absoluta subnutrição de ideias, e felizes porque conseguem ter milhares -milhões? – de amigos (?) curtindo -outro termo que ressoa como um estertor animalesco- o que eles manifestam espasmodicamente. E o pior é que os interessados -a juventude turbinada em tecnologia- mal desconfia desta carência tremenda. Surge um modelo novo de autismo, imbuídos no próprio mundo, isolados da realidade. Um mundo ….. da comunicação que isola e não permite comunicar-se como seres humanos!

La correspondenza - 7Mas, a culpa não é deles. É dos velhos. “A juventude está perdida com todos esses celulares, com a internet, ninguém presta atenção na aula, nem à mesa, nem fala mais”. A condenação da tecnologia não resolve nada. Não é possível postular um retorno às cavernas, ou ao pombo correio, ou andar em jegue. O desafio é mesmo o conteúdo, e cabe aos velhos injetar a tecnologia moderna com experiência e sabedoria. Mostrar que tudo o que a modernidade nos oferece, pode ser magnífico quando existe substância, densidade, gosto, estética e até transpira humanidade.

La Corrispondenza. Um filme impactante, necessário, que obriga a pensar, sobretudo aos velhos. Um exemplo maravilhoso do que é possível fazer com a tecnologia quando há uma avalanche de conteúdo. Assim, sim, a comunicação tem sentido. E com música de Morricone, e um Jeremy Irons que destroça com sua presença qualquer mediocridade de rede social. Um colosso do conteúdo!

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2017/04/09/lembrancas-de-um-amor-eterno-uma-avalanche-de-conteudo-rebatendo-a-banalidade-da-comunicacao/>. Acesso em 21/04/2017.

“O Esgrimista”: A Paixão por Ensinar – por Pablo González Blasco

Cinema | 30/12/2016 | | IFE BRASIL

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The fencer(Miekkailija). Finlandia, Alemanha, 2015. Diretor: Klaus Härö. Intérpretes: Märt Avandi, Liisa Koppel, Ursula Ratasepp, Lembit Ulfsak, Joonas Koff, Marvel Leesment, Kirill Käro. Duração: 93 min.

Eis um pequeno grande filme nórdico. Dirigido por um Finlandês, e situado na Estônia, o pais que fica bem em frente no mar báltico. Existe uma cultura comum entre ambos povos e algo que também lhes une: a repulsa pelo colonialismo russo-soviético. Estive este ano em Helsinque por conta de umas conferencias que me solicitaram. Encontrei-me lá com uma velha amiga, uma professora da faculdade de medicina da Universidade de Helsinque, que também dirige um grupo de humanidades médicas: Lux Humana, lhe chamam, em latim, o que se agradece porque o finlandês é absolutamente incompreensível para os mortais comuns. Mostrou-me a Igreja Russa, símbolo do colonialismo imposto ao povo finlandês. E também muitas outras coisas. Agradou-me a hospitalidade da Finlândia, e pude palpar a cordialidade deste povo. E, quando de regresso ao Brasil, tropecei com este filme, mergulhei de cabeça, e desfrutei. Escrevi para Martina (assim se chama a médica finlandesa) recomendando-o: “Lembrei de você, pela linguagem que falam, pelos russos…e pela paixão por ensinar”. Mas ela já estava de sobre aviso….

Um filme, dizia uma crítica do informativo que assino, feito com gelo, madeira, aço e alma. Os ingredientes pareceram-me perfeitos, pois são de fato a guarnição que rodeia o fator humano, que é o ponto alto do filme, o que te conquista. O argumento nos situa na Estônia em 1945, recém acabada a segunda guerra mundial, quando o terror de Stalin propõe-se purificar todos os países que caíram sob a bota soviética. A Estônia, um dos países bálticos é alvo de estreito controle. Lá chega nosso protagonista, até uma pequena aldeia, vindo de Leningrado (hoje e antes, S. Petersburgo) com um passado às costas. A escola local admite-o, com receio, como professor de educação física. Mas não existe material para treinar, a aldeia é paupérrima, e o nosso professor tem como único capital um florete de esgrima. Aí decola este filme atraente.

The Fencer - 1Um clube de esgrima, com espadas de madeira, para crianças interioranas, algumas muito pequenas. Rapazes de calça curta, meninas de saia xadrez e trancinhas, um professor esgrimista, e um sonho. Está servido o filme. É que na verdade, como muito bem sabem o que se dedicam a educar, o conteúdo do que tem de ser ensinado é mero detalhe: o que realmente conta e faz toda a diferença, é a paixão por ensinar, a vontade de saber tirar dos alunos o seu melhor.

The Fencer - 2A Finlândia como pais moderno não e alheio a isto. Contou-me um amigo há algum tempo, que foi até lá para comprovar o que na Europa se denomina o milagre da Finlândia. “Em que consiste isso -lhe perguntei”. Ele disse-me que há uns 30 anos o índice de suicídios juvenis era muito alto nesse pais. Decidiram então fazer um pacto de estado priorizando a educação. P que aspira ao prêmio Nobel. E, quando os professores se aposentam, as empresas privadas lutam encarniçadamente por eles, porque ter um professor como diretivo é um verdadeiro privilégio. Esse é o milagre da Finlândia. Embora o nosso filme se situe algumas décadas antes de este cenário, já pode apalpar-se o gosto que desperta ser professor.

The Fencer - 3Não apenas gosto e privilégio, mas responsabilidade, porque educar é de fato embarcar num projeto -no mesmo barco, afinal estamos à beira do Báltico- junto com o aluno. Remamos todos juntos, conseguem-se as conquistas em grupo, o trabalho em equipe é fundamental, e ninguém pode abandonar o barco antes da hora. Marta, a jovem protagonista encara o professor que desapareceu por alguns momentos durante o concurso de esgrima: “Nunca mais nos abandone. Não podemos lutar sozinhos”. A presença do professor, silenciosa e serena, é condição para que o aluno possa dar o seu melhor.

The Fencer - 4Educar te complica a vida, não é atividade isenta de riscos, asséptica, onde o professor toma suas precauções para que aquilo não ultrapasse os limites razoáveis de um emprego. Em teoria, é assim, mas todos os filmes de professores mostram o encanto de arriscar, de ser criativo, de ir além -muito além – do razoável, do cumprir tabela. O esgrimista é mais um exemplo daquilo consegue se livrar nunca desta atividade. Não é um emprego, mas uma atitude.

The Fencer - 5Andava eu na rua, pensando com os meus botões nestas ideias, quando me deparei com uma patrulha da prefeitura cortando árvores que se inclinavam perigosamente. Aproximei-me deles e sugeri que podassem também uma árvore torta que ameaçava cair em cima da nossa casa: “Tem que fazer um ofício e esperar a vez”. Logo entendi que aquele grupo não tinha nada da criatividade docente que ocupava a minha cabeça. Desisti, e o comentei com o guarda do modestíssimo hotel que está do lado da casa. Ele me disse: “Isso é porque plantam as árvores muito grandes”. “Como assim? ”-perguntei-lhe. “Sim, quando a árvore é plantada pequena, tem tempo de que a copa cresça ao mesmo ritmo que as raízes. Mas se ela é já alta, as raízes não têm tempo de se desenvolver, e por isso entorta fácil.”. Sorri, e voltei satisfeito: a passividade que tomava conta dos funcionários públicos e que me deprimiu, foi desarticulada rapidamente pelo comentário sábio, de um homem de limitada cultura, mas observador.

The Fencer - 6A educação, pensei, tem de ser fisiológica, desde pequenos, como as crianças do filme. Dar tempo a que cresçam e de que as raízes mergulhem, para garantir solidez. Querer ultrapassar etapas -uma educação fast-food, ou suplementar com toneladas de informação, até em formato de aplicativos- não renderá árvores solidas. Com o passar do tempo, e as inclemências, acabarão entortando, ou mesmo serão arrancadas, e causarão desastres. Precisamos de tempo fisiológico para desenvolver raízes. O que significa paciência, serenidade, criatividade e acompanhar: estar sempre por perto, não os deixar lutar sozinhos.

De tudo isto, e de muitas coisas mais nos fala esta produção encantadora. Um filme redondo, agradável, bonito, que destila valores e virtudes. E deixa um ótimo sabor de boca que pede um bis. Eu mesmo, o revi três vezes, para apreciar melhor esta experiência estética, deliciar-me com ela, ao tempo que revisava minha própria paixão por ensinar..

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em 18/12/2016 em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/12/18/o-esgrimista-a-paixao-por-ensinar/>