Arquivo da tag: Poesia

image_pdfimage_print

Retrato poético de Vinícius de Moraes

Literatura | 15/11/2018 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Imagem: French poet and publisher Pierre Seghers with Brazilian poet Vinícius de Moraes in Paris (Alécio de Andrade, ADAGP, Paris). Wikimedia Commons, link.

 

1. Nem místico, nem homem do cotidiano

Vinícius de Moraes (1913-1978) é um dos poetas mais populares do Brasil. Talvez por esse motivo, sua obra foi vista com certo desdém pela crítica. Ainda persiste a imagem do “poetinha”, do cantor de MPB, do compositor de “Garota de Ipanema”. Por outro lado, há os que reconhecem o talento de Vinícius como poeta. Porém, ainda timidamente e, em alguns casos, ecoando opiniões proferidas pelo próprio poeta.

Sobre o primeiro ponto de vista, não há muito o que dizer. Basta ler a obra poética de Vinícius para perceber tratar-se de um dos grandes poetas da literatura brasileira. Se como Rimbaud, poeta a quem dedica o seu segundo livro, resolveu abandonar a poesia (diga-se que nunca o fez completamente), não é nenhum demérito, antes uma escolha que deve ser respeitada. Talvez tenha dito o que pensava ser importante e passou para a música.

Já em relação à crítica especializada é preciso, antes de tudo, questionar um ponto de vista sobre a sua obra. Segundo muitos teóricos, há dois Vinícius-poeta: um, que nas primeiras obras era “místico”; outro, que era “do mundo”, afastado das questões do espírito. Essa opinião foi divulgada pelo próprio escritor, pois pensava que os dois primeiros livros foram prematuros. Vinícius incluiu apenas um poema dessas obras em antologia de 1960. Desprezou O caminho para a distância e Forma e exegese.

Muitos poetas renegaram as suas primeiras obras, principalmente as publicadas aos 19 e 21, como o presente caso. Porém, para o biógrafo do poeta, José Castelo, além de outros críticos, a espiritualidade das primeiras obras impedia o surgimento de um grande poeta; a nosso ver o problema não estava na espiritualidade, mas sim na imaturidade do escritor. Como disse Otto Lara Rezende no prefácio à edição do Livro de Sonetos: “Em 1936, surge ‘Ariana, a Mulher’, que segundo o próprio autor, encerra ‘a sua fase transcendental, frequentemente mística’. Transcendental, sim; mística, nem tanto, a menos que tome a palavra no sentido vulgar, de ‘alegórico’, ou ‘esotérico’, e que estará mais próxima de um juvenil mistifório do que de um misticismo contemplativo”[1]).

Não há, acredito, dois Vinícius: o idealista e o terreno, pois sua obra é repleta de idealismo. Quando a temática espiritualista – não espiritual, mas simbolista – transforma-se em carnal, não há uma “desidealização”, mas sim uma transferência de ideal. A poesia de Vinícius passa não mais a ver os “céus etéreos” como ideal, mas o prazer. Em seus primeiros livros, não vemos um poeta cristão, mas que se utiliza da simbologia cristã. Portanto, penso ser esse o principal ponto a ser salientado na obra de Vinícius: nunca abandonou o ideal pelo cotidiano, pois sempre foi um idealista. O que mudou foi, como apontou Otto Lara Rezende, a linguagem, o modo de expressão, que é fundamental em poesia. Após desvencilhar-se de uma dicção simbolista e parnasiana, tal como acontecera com Manuel Bandeira, adere à sensibilidade do seu tempo, a saber, ao modernismo. Nesse aspecto há dois Vinícius: o aprendiz e o poeta, não em relação à temática, mas sim à forma, melhor, ao estilo que, como diz o filósofo Luigi Pareyson, “é o modo de formar, o modo de fazer arte, o modo de escolher e conectar as palavras, de configurar os sons, de traçar a linha ou de pincelar, em suma, o ‘gesto’ do fazer”[2]. Assim, temos um poeta que encontra o modo de fazer a sua arte, de formar, de compor um poema. O auge será o livro de 1946, Poemas, sonetos e baladas. 

Antes, porém, há uma luta entre o ideal perdido e a busca por um novo que o substitua. O poeta aposta na fruição do efêmero, como bem atesta o ultrafamoso “Soneto de Fidelidade”, escrito em 1939: “Eu possa me dizer do amor (que tive):/ que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure.” Mas a alma parece não aceitar, como na “Elegia quase uma ode”, belíssimo poema escrito em 1943: “Ó quem dera não sonhar mais nunca/nada de ter tristezas nem saudades/ser apenas Moraes sem ser Vinícius!” ou em outra passagem do mesmo poema: “Que hei de fazer de mim que sofro tudo/anjo e demônio, angústias e alegrias/que peco contra mim e contra Deus”. O Vinícius “aprendiz”, o dos primeiros dois livros, ainda carrega o mesmo problema:

“Os seus sentimentos perante a mulher podem assumir aspectos aparentemente contraditórios: mas, no fundo, ela representa sempre uma entidade complexa, onde nunca deixa de pressentir os dois termos da ‘equação corpo-alma’ que ele próprio não resolveu”, afirma o poeta e crítico português David Mourão-Ferreira[3]. Nas primeiras duas obras, a mulher é espírito:

Branca mulher de olhos claros

Minha alma ainda te deseja

(“Romanza”, em O Caminho para a distância)

 

e o poeta, carne:

Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne”

(“O Incriado”, em Forma e Exegese)

 

contudo, como alguns interpretam, teríamos uma mudança de direção na poesia de Vinícius em Novos Poemas, que marca o seu “encontro com o cotidiano”, mas não é o que acontece:

 

o poeta:

Eu, homem – fruto da terra – eu, homem, fruto da carne

(…)

Eu que carrego o peso da tara e me rejubilo”

(“Invocação à mulher única”)

a mulher:

“Criatura, mais que nenhuma outra porque nasceste fecundada pelos astros – mulher!”

(Idem)

ou em “Sombra e Luz”, de Poemas, Sonetos e Baladas, no qual o conflito está vivo:

 

Minha luz ficou aberta

minha cama ficou feita

minha alma ficou deserta

minha carne insatisfeita.

 

até “Soneto de Espera”, de 1963, no qual já não há combate entre carne e espírito, mas apenas um descontentamento irônico:

 

Dentro em pouco entrarás, ardente e loura

como uma jovem chama precursora

do fogo a se atear entre nós dois

e da cama, onde em ti me dessedento

tu te erguerás como o pressentimento

de uma mulher morena a vir depois.

 

Aliada à simplicidade da expressão, talvez um dos motivos da popularidade da sua poesia resida no fato de que, além de ser um problema de todos os tempos, o conflito carne e espírito é um das questões mais urgentes do nosso tempo. O tal encontro do cotidiano de Vinícius só o é se for visto sob um ponto de vista que acaba por rebaixar o cotidiano. Seria o lugar da intranscendência, da matéria surda-muda, em oposição ao mundo do sonho, do “ideal”. Mesmo que seja essa a posição adotada em relação ao cotidiano, não penso, como exposto anteriormente, ser essa a visão de mundo presente na obra de Vinícius.

No caso do amor, nota David Mourão Ferreira que o poeta carioca tematiza a questão da infelicidade no amor, como diversos poetas na história: “Este aspecto é, como se sabe, comum a grandes poetas do amor: um Camões, um Catulo, uma Safo. Mas, ao contrário do que acontece com qualquer destes, nunca, em Vinícius de Moraes, a infelicidade amorosa é produzida pela não-correspondência da pessoa amada: a infelicidade vem de dentro dele; não é, pois, gerada por circunstâncias exteriores”[4].

Na poética viniciana a problemática ideal-cotidiano não será resolvida, já que estão separadas de forma radical. Não há, como apontou o próprio poeta, uma fase de “sentimento do sublime” e outra de “encontro do cotidiano”´. E esse é o motivo de que, escondido sob uma musicalidade “assoviante” e despreocupada de seus versos, encontramos um drama que o poeta raramente conseguirá conciliar, talvez apenas no “Soneto de Domingo”:

 

Em casa há muita paz por um domingo assim.

A mulher dorme, os filhos brincam, a chuva cai…

Esqueço de quem sou para sentir-me pai

e ouço na sala, num silêncio ermo e sem fim,

um relógio a bater, e outro dentro de mim…

Olho o jardim úmido e agreste: isso distrai

vê-lo, feroz, florir mesmo onde o sol não vai

a despeito do vento e da terra que é ruim.

Na verdade é o infinito essa casa pequena

que me amortalha o sonho e abriga a desventura

e a mão de uma mulher fez simples e amena.

Deus que és pai como eu e a estimas, porventura:

quando for minha vez, dá-me que eu vá sem pena

levando apenas esse pouco que não dura.

 

Aqui há o encontro do cotidiano, lugar em que corpo e espírito estão unidos, em que o homem se destaca das coisas podendo contemplá-las, talvez até mesmo em uma correspondência entre homem e natureza:

 

Olho o jardim úmido e agreste: isso distrai

vê-lo, feroz, florir mesmo onde o sol não vai

a despeito do vento e da terra que é ruim.

 

Contudo, essa intuição da existência, do cotidiano transcendente – “é o infinito essa casa pequena”- é passageira, já que o poeta pensa que o “infinito” que é aquela casa, amortalha, mata o seu sonho. Acredito residir neste ponto a contradição corpo-alma de que falava Mourão Ferreira. Como pode o infinito ser limitado? Uma questão ilógica jamais resolvida, como apontamos, na poética de Vinícius.

Para finalizar, podemos fazer uma ligação entre o citado poema “Elegia quase uma ode”, de 1943, no qual diz “Ó quem dera não sonhar mais nunca/nada de ter tristezas nem saudades/ser apenas Moraes sem ser Vinícius!” com o poema “O haver”, escrito na década de sessenta e reelaborado posteriormente:

 

Resta (…) essa inércia cada vez maior perante o infinito

Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível

Essa irredutível recusa à poesia não vivida

(…)

Essa lenta decomposição poética em busca de uma só vida,

Uma só morte, Um só Vinícius

(…)

Essa tristeza diante do cotidiano

(…)

Resta

Essa faculdade incoercível de sonhar e transfigurar a realidade

Dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como ela é

(…)

 

Sua poética foi, a nosso ver, sempre a mesma. No poema citado, aponta para essa cisão do poeta, que sente tristeza perante o cotidiano e inércia perante o infinito, causada pela falta de unidade no homem.

Em relação à poética, ao que é dito em sua obra, pode-se dizer que Vinícius é popular porque essa fissura na personalidade não é só um “mote próprio”, mas um drama do ser humano, cantado desde tempos imemoriais, mas parece ter se acentuado no nosso tempo.

 

2. O reinventor do Soneto

Como sabemos, o soneto passou por uma campanha de difamação no Modernismo brasileiro. Cassiano Ricardo, com bom-humor, proclamou haver uma doença nacional, o sonetoccocus brasiliensis[5]. Por ser uma forma tradicional muito utilizada no Parnasianismo e mesmo no Simbolismo, embora nesse último com uma liberdade execrada pelos primeiros, o soneto mostrava, de fato, sinais de esgotamento. Como conciliar o seu esquema rígido de catorze versos e certo esquema de rimas com a nova poética moderna?

O soneto parecia estar morto nas décadas de 1920-1930: Carlos Drummond estreara sem um único soneto em Alguma Poesia (1928) e Manuel Bandeira, de forte tradição no verso tradicional, publicara em 1930 Libertinagem, no qual também é marcante a ausência dessa forma. Se a poética moderna pregava a abolição do assunto elevado em favor do cotidiano, da linguagem coloquial em favor da culta, é claro que o soneto seria tido como marca de uma poética ultrapassada, a do parnasianismo.

Parece ser essa a crítica que Eduardo Portella dirige a Vinícius no primeiro ensaio das obras completas do poeta: “Como literato, é responsável por uma das mais sólidas construções líricas da nossa poesia, embora possamos incriminá-lo por ter sido a estação central de ‘45’, na medida em que foi o restaurador implacável das formas poemáticas exoneradas pela nova ordem de ‘22’”.[6] Advoga o crítico uma “leitura não modernista de sua obra”[7]. A visão aqui exposta procura o contrário: uma leitura modernista de Vinícius, visto acreditarmos que, com a publicação de Novos Poemas, em 1938, o poeta carioca provou a validade do soneto mesmo em terreno modernista. Um Vinícius que ainda não encontrara o seu estilo escreverá em seu primeiro livro, de 1930, quando contava vinte anos:

 

Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste

O mundo é bom, o espaço é muito triste…

Talvez tu possas ser feliz um dia

 

Caso fosse essa a contribuição de Vinícius para o soneto, poderíamos dizer se tratar de um neo-parnasiano com as suas rimas ricas e sonetos com chave de ouro. Contudo, após o seu encontro com a linguagem moderna, possivelmente devido à sua amizade com Manuel Bandeira, que se iniciou em 1936, publica em 1938, como dissemos, o livro Novos Poemas. E o que faz Vinícius nesse livro? Mostra que o soneto não é uma forma morta e que pode perfeitamente conviver com a poética modernista. Vejamos o “Soneto de Intimidade” que, apesar de certo gosto duvidoso, típico do poeta, é exemplar sobre o que estamos discorrendo[8]:

 

Nas tardes da fazenda há muito azul demais.

Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora

Mastigando um capim, o peito nu de fora

No pijama irreal de há três anos atrás.

 

Desço o rio no vau dos pequenos canais

Para ir beber na fonte a água fria e sonora

E se encontro no mato o rubro de uma amora

Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

 

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume

Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme

E quando por acaso uma mijada ferve

Seguido de um olhar não sem malícia e verve

Nós todos, animais, sem comoção nenhuma

Mijamos em comum numa festa de espuma.

 

Assunto nem um pouco elevado, um passeio de pijama velho pelo campo não para contemplar distâncias, mas para seguir os apelos de uma outra natureza…, linguagem coloquial, como no pleonasmo “de há três anos atrás” ou na redundância “muito azul demais”, e até mesmo chula e tudo isso em alexandrinos a la Olavo Bilac! Difícil dizer que o poeta poderia se tornar símbolo de um neo-parnasianismo após tal afronta ao modelo daquela escola.

Esse soneto de Vinícius é uma demonstração prática de que é possível usar as formas tradicionais e ser moderno ao mesmo tempo. Não é a forma que mata a poesia, não é a regra, visto que mesmo o verso mais “livre” tem as suas regras, ao menos em relação ao ritmo. O que prejudicou a poesia parnasiana foi a pose, o querer ser francês em terras brasileiras, não o soneto alexandrino ou qualquer outra forma pré-estabelecida. Embora hoje a lição de Vinícius possa ter sido esquecida, pois ainda o soneto encontra resistência, em sua época, foi fecunda: Bandeira voltou a fazer sonetos e, na década de 1950, o grande nome do modernismo, Carlos Drummond de Andrade, também publicaria os seus.

Para Vinícius, essa reinvenção do soneto é responsável pela imensa fama que ainda possui entre o público, sendo que um deles se tornou “patrimônio nacional”. Quase impossível encontrar alguém que não saiba alguns versos de “Soneto de Fidelidade”: “eu possa me dizer do amor (que tive”/ que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure.” Ao lado de “Canção do Exílio”, “Vou-me embora pra Pasárgada”, “José”, o “Soneto de Fidelidade”, por si só, já garante a imortalidade daquele que reinventou essa forma tão tradicional, utilizada com esmero por grandes nomes das literaturas portuguesa e brasileira.

Eduardo Gama é professor, membro do IFE-Campinas e mestre em Literatura pela USP.

 

NOTAS

[1] “O caminho para o soneto”, in Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, p.717.

[2] Os problemas da estética, São Paulo Martins Fontes, 2001, p. 62.

[3] “A descoberta do amor” in Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, p. 731.

[4] Idem, p.725.

[5] Mário da Silva Brito, História do Modernismo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997, Civilização Brasileira, p. 195.

[6] Eduardo Portella, Do verso solitário ao canto coletivo in Vinícius de Moraes – Poesia completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, p. 15.

[7] Op.cit. 16.

[8] Devo essa observação ao poeta Bruno Tolentino, que chamou à atenção para esse soneto.

[cinema] Paterson: A poesia no quotidiano

Cinema | 02/12/2017 | | IFE BRASIL

image_pdfimage_print

Fazia tempo que não publicávamos uma crítica de cinema. Pois bem, voltamos com uma crítica de nosso parceiro Pablo González Blasco.

Paterson. (2016). Diretor: Jim Jarmusch. Adam Driver, Golshifteh Farahani, Kara Hayward, Sterling Jerins, William Jackson Harper. 112 min.

Paterson - coverTinha lido a crítica no jornal e chamou-me a atenção o motorista poeta. Depois chegou um desafio desses que, como sem querer, te lançam no grupo de colegas da faculdade, por ter criado uma fama imerecida de crítico de cinema. Dizia mais ou menos assim: “Assisti a um filme minimalista do Jim Jarmusch “Paterson” que indico. Curiosamente, pelo site de cinema ImDb acessei uma crítica do filme em espanhol cujo resenhista se chama Pablo Blasco…embora sei que não é você”. Recolhi a luva, e a guardei para ver a melhor ocasião para o duelo. Pouco depois outro amigo me espetou: “Tenho o filme para você. Paterson. Veja e me diga o que lhe parece”. Não havia mais o que esperar, agora com duas luvas no bolso. O duelo -um modo de dizer- estava lançado, quase que em simultânea, como aquele primeiro onde D’Artagnan enfrenta os três mosqueteiros, chegam os guardas de Richelieu e acaba conquistando a confiança de Athos, Porthos e Aramis.

Sentei para ver o filme e respondi a estocada da segunda luva, de bate pronto. “Assisti Paterson. Impactante. Mas para público seleto. A poesia do quotidiano. A rotina que vira verso. Desprendimento e simplicidade contundente. E a força da vocação e da arte que nunca morre. Páginas em branco são sempre excelentes oportunidades”. Depois continuei pensando sobre o filme, e os pensamentos cristalizam nestas linhas, atrasadas, mas decantadas na serenidade rodeada da poesia que nos cuida e nos cura.

Paterson - 1Não sei se o filme seria a poesia no quotidiano ou melhor, transformar o afazer quotidiano em poesia, o que é muito mais difícil. Fazer da prosa diária poesia, como dizia um santo contemporâneo. Em qualquer caso, temos diante um ensaio que faz pensar, mas não é um filme intelectual, porque o quotidiano -a rotina mais chã- inunda todos os fotogramas. Um motorista de ônibus, interpretado por um ator de sobrenome Driver. Coincidência? O nome do protagonista é o mesmo da cidade onde vive e dirige o seu ônibus: Paterson. Também é o mesmo nome de uma série de poemas de William Carlos Williams que era nascido na região e, naturalmente, um ícone admirado pelo motorista.

Paterson - 2Rotinas tremendas, que se sucedem dia após dia, com uma meticulosidade que dá para ajustar o relógio. Tempos curtos, espremidos, do horário de trabalho, para alinhavar alguns versos no caderno que Paterson carrega sempre consigo. Enquanto esquenta o ônibus, depois do almoço, numa parada ao voltar para casa. E em casa está Laura, a esposa, sempre mudando o visual, mas sem sair dos tons em branco e preto. Uma variedade desafiante do que é possível fazer apenas com duas cores. A mulher que quer mudar tudo, transforma, mas não sai do bicolor. Como um avião na pista, corre, supera o carro de fórmula 1, mas falta-lhe puxar do mancho para decolar. O mancho é justamente a poesia, que permite ver as coisas com perspectivas diferentes, com altura, volume, relevo, enfim, profundidade insuspeitada.

Paterson - 3Houve conversas sobre o filme, que acabam decantando nestas linhas. Alguém me disse: “E o que você achou do contraste entre ele (sempre a mesma rotina) e a esposa (constante mutação), do tipo Parmênides X Heráclito?” Confesso que o touché que me chegou nesta comparação com os filósofos pré-socráticos fez-me pensar. E tive de responder à estocada com o primeiro que me veio à cabeça, também em moldes filosóficos:  “Sim, o branco e preto constante da Laura (que tem o nome da mulher ideal de Petrarca, não por acaso) é algo que me fez pensar. Ela muda, sim; mas conserva o padrão branco e preto, e com ele transforma absolutamente tudo. Não sei se é Heráclito e Parmênides, ou mais Aristóteles e Tomás de Aquino com a essência, substancia e os acidentes. Tem o que permanece e o que muda. Mas o fundo está lá”.

Paterson - 4Diz Fernando Pessoa, que muito entendia de poesia: “A vida é terra, e vive-la é lodo / Tudo é maneira, diferença ou modo/ Em tudo quanto faças sé só tu/ Em tudo quanto faças sé tu todo”. Somos rotina, pouca coisa, terra que os primeiros pingos das adversidades, transformam os sonhos em barro, nos melecamos por inteiro. Não há como evitar a condição de que somos pó, um recado bíblico, e voltaremos ao pó. A diferença é por nossa conta, a atitude que consegue transformar o pó rotineiro em verso romântico. A poesia conduz à reflexão que busca sentido no que faz diariamente, e justamente porque o encontra, dedica-se com afinco. A rotina -disse alguém- não é fazer as coisas de sempre, mas fazê-las ‘como sempre’. O que nos arranca da modalidade -do ‘como sempre’- é justamente o olhar poético. E essa atitude nos protege das vicissitudes -do lodo- que sempre chega, dos imprevistos, porque conseguimos chegar mais longe com a perspectiva poética.

Paterson - 5Sem perder a condição de pó sofredor, de poeira que outros pisam ao caminhar, mas com a dignidade de quem sabe se elevar por cima do rasteiro e trivial. Vem à minha mente -esse é o risco da poesia, que uma puxa outra- os versos do poeta espanhol, Quevedo, quando fala da morte, e que estampo no original pela força que leva dentro: “Cerrar podrá mis ojos la postrera sombra que me llevare el blanco día (…)Alma a quien todo un Dios prisión ha sido, venas que humor a tanto fuego han dado/ médulas que han gloriosamente ardido, su cuerpo dejará, no su cuidado/ serán cenizas, mas tendrán sentido/ polvo serán, mas polvo enamorado”. Reduzidos a pó, após a morte, mas com o palpitar presente que fazem dos restos pó enamorado, cinzas com sentido, nas que permanece o mesmo cuidado estético e apaixonado.

Paterson - 6A poesia do quotidiano, o caderno do motorista Paterson, evoca aqueles flash-mobs que encontramos no Youtube, onde no meio de uma praça, no mercado municipal, começam a soar acordes e de repente surge o brinde de La Traviata, o coro dos peregrinos de Nabuco, o Hino da Alegria, da nona sinfonia de Beethoven. E lá, entre o açougue e a peixaria, com roupas do ofício, marcadas e fétidas, tenores, sopranos e barítonos configuram um cenário lírico impensável em aquelas circunstâncias. E some o cheiro a peixe, a sujeira, enquanto o gari se transforma em Alfredo que convida a Violeta (até o momento a feirante de frutas) a abandonar a vida frívola e acompanha-lo nas aventuras do amor. Sem trocar de roupa, sem cenários, ao natural, porque a enxurrada artística releva os detalhes da rotina.

Paterson - 7Houve quem disse que depois de Auschwitz a poesia não teria vez. E outros que, diante das carências humanas, se perguntavam qual o sentido da poesia em tempos de miséria, pois não enche as barrigas. Vendo Paterson e sentindo a dimensão da poesia fica claro que a colocação é justamente a contrária: a poesia nos salva do naufrágio no quotidiano, da miséria humana -própria e alheia- porque é alavanca que permite levantar-se sobre a poeira que nos cega e irrita. Outra lembrança abre-se espaço na memória: a figura de Mandela preso na cela, naquele filme superior de Clint Eastwood, Invictus, enquanto se escutam os versos de Henley: “Eu sou o mestre do meu destino, eu sou o capitão da minha alma”.

Paterson - 8

Os clássicos afirmavam que o homem é um ser que esquece. E para remediar esta quase amnésia vital, Zeus, o rei dos deuses, criou as musas e as artes como recurso para recordar. Esquecemos sim, mas não dos detalhes e das bobagens, nem das ofensas que levamos com cuidadosa contabilidade no coração que vai se azedando. Esquecemos do essencial: quem somos, para que servimos, qual é o sentido da nossa vida. E nos redemoinhos da desorientação, buscamos absurdamente respostas no Google, mendigamos consolos nas redes sociais, corremos sem nos perguntar onde vamos. “Bene curris, sed extra viam” -dizia Santo Agostinho, em frase de impacto que dispensa a tradução. E esquecemos que as respostas estão no poema, no quadro, na música.

Anota Wittgenstein que daquilo que não se pode falar, melhor é calar. Do que não se pode falar de maneira científica, é melhor calar e mostrar: o amor, a piedade, a luta pelo bem, a mística. Calar-se para viver com obras, com sentimentos, com alegrias e tristezas, todo esse capítulo humano para o qual não existe ciência, mas sim sabedoria. Essa é a dimensão que a poesia nos oferece. Essas são as páginas em branco do caderno de Paterson, que vai recheando no meio do tedioso itinerário do ônibus, e as que cada um de nós tem de preencher para fazer da nossa vida, simples, um belo poema que encante, anime os outros, e faça um mundo melhor. Sim, precisamos de poesia, justamente hoje: essa é a diferença e o modo que Pessoa nos recomenda para safar-se do lodo. Uma decisão que vale a pena -diz ele- se temos magnanimidade, se a alma não é pequena.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2017/12/01/paterson-a-poesia-no-quotidiano/> Acesso em 01/12/2017.

Vida que se recolhe ao invisível: notas sobre Rilke – Juliana P. Perez

Literatura | 07/07/2017 | | IFE BRASIL

image_pdfimage_print

Um retrato de Rilke pintado dois anos depois de sua morte por Leonid Pasternak.

Em 1917, em um de seus textos críticos fundamentais, Tradition and Individual Talent, T. S. Eliot escreve que o significado da obra de um poeta só pode ser percebido no contraste e na comparação com escritores e artistas já falecidos. E acrescenta:

  “…quando se cria uma nova obra de arte, ao mesmo tempo acontece algo com todas as obras de arte que a precederam. Os monumentos existentes formam entre eles uma ordem que é modificada pela introdução da obra de arte nova (realmente nova). Antes de a nova obra chegar, a ordem existente está completa; e para que essa ordem persista após a chegada da novidade, toda ela tem de ser modificada, mesmo que seja de maneira quase imperceptível. Assim, as relações, proporções e valores de cada obra para com o todo reajustam-se; e isto é conformidade entre o velho e o novo”.

Não por acaso cito Eliot no início de um breve ensaio sobre a poesia de Rainer Maria Rilke (1875-1927): a aguda observação do poeta americano serve aqui como critério para a leitura dos textos de Rilke e explica por que, a meu ver, Neue Gedichte (“Novos poemas”), Sonette an Orpheus (“Sonetos a Orfeu”) e Duineser Elegien (“Elegias de Duíno”) são livros que ainda despertam o interesse de um leitor atento. A eles juntam-se Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge (“Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”), Rodin, Briefe über Cézanne (“Cartas sobre Cézanne”), escritos no mesmo período.

O aparecimento de uma novidade real, no sentido de uma transformação no interior de um conjunto de textos que constituem uma “tradição”, explica por que 1922, ano em que Rilke publica Sonetos a Orfeu e Elegias de Duíno, tornou-se uma data de referência na história da literatura: esse também foi o ano de publicação de textos como The Waste Land, de Eliot, e Ossi di Sepia, de Eugenio Montale, por exemplo. Entre nós, 1922 apenas tentou ser um ano importante. No primeiro caso, os livros citados não só alteraram significativamente sua respectiva tradição literária, como provocaram mudanças em literaturas de outras línguas. No caso brasileiro, uma certa agitação no Teatro Municipal pode ter sido, para quem o queira, até mesmo divertida – mas não alteraria de fato as “relações e proporções” no interior de nossa literatura. O melhor de Machado de Assis, para citar apenas um exemplo, faz-nos reavaliar não somente José de Alencar, mas também Eça de Queiroz, Gustave Flaubert… E assim por diante.

Quando Rilke publica, em 1899, Die Weise von Liebe und Tod des Cornets Christoph Rilke (“A canção de amor e morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke”), e quando, seis anos mais tarde, lança Das Stunden-Buch (“O livro das Horas”), sem dúvida já se revela como uma das grandes vozes da poesia de língua alemã. Ambos os livros tiveram grande êxito junto ao público leitor. Mas, até ali, Rilke não fizera nada além de selecionar seus motivos e trabalhar com um repertório de imagens caras à poesia alemã, sob a inquietação que as leituras de Nietzsche, a relação com Lou Andreas-Salomé e a forte impressão das viagens feitas à Rússia lhe provocavam. Embora tanto a relação com Lou quanto a experiência na Rússia permaneçam presentes em textos posteriores, seus primeiros livros não representam mais do que o momento do encontro entre tais experiências e uma certa tradição lírica. No âmbito de língua francesa, que Rilke conhecia muito bem, era a época em que a poesia de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé era exaltada sob o (questionável) nome de “simbolismo”; no âmbito de língua alemã, Nietzsche determinava a verdade como uma rede de metáforas e iniciava sua filosofia “com o martelo”, Fritz Malthner escrevia sobre o fracasso da linguagem e Lorde Chandos, personagem de um texto Hugo von Hofmannsthal, observava a desintegração da mesma.

Como nos autores citados, a busca de uma nova linguagem, em Rilke, já se opunha, com maior ou menor sucesso, às estreitezas da razão cartesiana. Mas somente quando ele vai a Paris, em 1902, encontra um rumo claro para sua criação artística. Rilke passara um breve período na pequena cidade de Worpswede, na qual moravam vários pintores alemães do início do século XX; ali conhece a pintora Paula Modersohn-Becker e sua amiga Clara Westhoff, através da qual entra em contato com Rodin. A convivência com artistas plásticos não só reforça o gosto de Rilke pela história da arte, mas também desperta nele a paixão por “ver” e a busca pela exatidão da representação artística. Sua ida para Paris dará vigor ao novo ethos: desaparece o gesto do eu que “sente” para dar lugar a um olhar objetivo da vida. Embora a celebração da vida em si mesma, alternada com uma certa queda pela decadência, estivesse presente em muitos textos da época, aqui se trata de uma tentativa de conhecimento: apreender a vida em movimento.

Em Rilke, o conhecimento do real se dá por meio da literatura: ele não acontece “antes” do texto literário, como se um conteúdo filosófico devesse ser “traduzido” em forma poética, tampouco “depois” que o texto está terminado, como se a criação artística fosse apenas um intervalo entre dois pontos. Rilke, admirador confesso de Valéry, é um poeta ligado ao entretempo, ao “processo” de escrever. Mas, ao contrário do poeta francês, Rilke não valoriza o “processo” em si mesmo, isolado de seu resultado, apenas o observa como condição de possibilidade para alcançar um objeto fora de si, somente acessível ao sujeito por meio da linguagem. Quando se desviam desse ímpeto cognitivo, os textos de Rilke parecem resvalar num patético quase insustentável. Um verso como “Ela já era raiz” (“Sie war schon Wurzel”), do poema Orpheus, Eurydike, Hermes, nada acrescenta, por exemplo, ao de resto impressionante texto – talvez apenas aumente a impaciência de Orfeu para sair do mundo dos mortos. Em si mesmo, é apenas um verso de efeito duvidoso, como tantos outros, devidamente satirizados ao longo da recepção de Rilke.

O desafio de conhecer a própria vida por meio da literatura viria a implicar, necessária e paradoxalmente, um retorno à morte como uma experiência vital. Assim se iniciam as anotações parisienses de Malte Laurids Brigge:

“É então aqui que as pessoas vêm viver; eu antes diria que é aqui que se morre. Hoje saí. E vi: hospitais. Vi um homem que cambaleava e caiu. Juntaram-se pessoas em volta, e isso poupou-me o resto. Vi uma mulher grávida. […] Depois vi uma casa singularmente cega, cega de gota serena, não estava registrada no plano, mas por sobre a porta via-se ainda bem legível: Asyle de nuit[1].

As primeiras coisas vistas pelo protagonista do romance estão todas ligadas à doença e morte; os parágrafos se alternarão entre o que Malte vê e o que ouve, mas é ainda logo no início que ele escreve:

 “Aprendo a ver. Não sei por que, tudo penetra mais fundo em mim e não pára no lugar onde até agora acabava sempre. Tenho um interior de que não sabia. Tudo lá vai dar agora. Não sei o que ali acontece. […] Já disse? Aprendo a ver. Sim, estou a começar. Ainda vai mal. Mas vou aproveitar o meu tempo. Por exemplo: que nunca tenha tido consciência de quantas caras há. Há muitas pessoas, mas há ainda muitas mais caras, pois cada uma tem várias”.

Dois anos antes de seu falecimento, Rilke ainda escreverá sobre o protagonista:

 “[…] o jovem M. L. Brigge sente necessidade de tornar apreensível para si mesmo, por meio de fenômenos e imagens, a vida que continuamente se vai recolhendo ao invisível; encontra estes fenômenos e imagens ora nas próprias recordações da infância, ora no seu ambiente parisiense, ora nas suas reminiscências de leituras. E tudo isso tem, onde quer que ele o tenha vivido, a mesma validade para ele, a mesma duração e a mesma presença”[2].

 Em seu ensaio sobre Rodin, escrito e publicado em 1902, Rilke descreve o impulso que movia o escultor, sem disfarçar que este é também o seu ideal de arte:

 “Com essa descoberta [da superfície] começa o autêntico trabalho de Rodin. […] Não havia poses, nem grupos, nem composição. Havia somente incontáveis superfícies vivas, havia somente vida […]. Rodin percebia a vida, que estava em toda parte, em qualquer lugar que olhasse. Ele a percebia em todos os lugares, observava-a, dirigia-se a ela. Ele a esperava onde ela hesitava, na sua superação; ele a pegava onde ela corria, e encontrava-a em todos os lugares em seu tamanho original, com a mesma força que a impelia. Não havia então nenhuma parte do corpo diminuta ou sem significado: ele era vivo” [3].

 Pouco depois de redigir o ensaio, Rilke começa a escrever os poemas de Neue Gedichte (“Novos poemas”) – “Der Panther” (“A pantera”) foi escrito em novembro de 1902; Der neuen Gedichte anderer Teil (“A outra parte dos novos poemas”) também acompanha a redação de um novo “Relato” sobre a obra de Rodin, publicado em 1907, a quem Rilke dedica seu livro. Ignorar os nexos entre os escritos de Rilke e a inegável relação de seus poemas com o real equivaleria a fazer de Rilke um pré-concretista chique. Considerá-los em seu conjunto e em seu ímpeto de conhecimento do real nos oferece a chave de leitura não só de Novos poemas, mas de toda sua obra. A mudança do visível, do olhar – atitude que caracteriza Novos poemas/ A outra parte dos novos poemas para o invisível, a escuta – atitude que caracteriza Sonetos a Orfeu e Elegias de Duíno –, não é mais do que o desenvolvimento que o próprio Rilke previu para o jovem Malte: “a vida que se recolhe ao invisível”, uma vez que a tarefa de captar em um só fôlego a vida e a morte e registrá-las em todas as suas variações estaria fadada ao insucesso.

Mas, antes de seguir rumo ao invisível, Rilke – na imitação do mestre Rodin, que continuou a admirar mesmo após o conflito entre os dois – deixa de lado a abstração transcendente do Livro das horas para se deter em cada um dos objetos ao seu redor: obras de arte, animais, plantas, figuras históricas, legendárias ou bíblicas, impressões de viagem, cidades – e cada um dos fenômenos, figuras ou objetos é apresentado como a vida em ato. “A pantera” torna-se, nos termos de Eliot, o “correlato objetivo” de uma experiência, mas não a “expressão” de um eu que se dilata até a natureza.

DER PANTHER

Im Jardin des Plantes, Paris

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden, dass er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein großer Wille Steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
Sich lautlos auf. – Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille –
und hört im Herzen auf zu sein.

 

A PANTERA [trad. Geir Campos]

Varando a grade, a nada mais se agarra
o olhar tomado de um torpor profundo:
para ela é como se houvesse mil barras
e, atrás dessas mil barras, nenhum mundo.

Seu firme andar de passos gráceis, dentro
dum círculo talvez muito apertado,
é uma dança de força em cujo centro
ergue-se um grande anseio atordoado.

De raro em raro, só, o véu das pupilas
abre-se sem ruído – e deixa entrar
a imagem, que sobe, pelas tranqüilas
patas, ao coração, para aí ficar.

 

Neste poema, em que o “eu” não comparece em nenhuma forma verbal ou nominal, todos os versos acontecem em terceira pessoa e descrevem movimentos: dos olhos, dos passos, de uma imagem captada pelo olhar. Na forma lingüística, nada trai aqui o estado de ânimo do eu que escreve; a identificação também é evitada pela comparação explícita do “como se”, tão característico dos poemas de Rilke. Entretanto, a tentativa de apreensão do real – que quase obriga o poema ao enjambement – é o ápice de tensão da subjetividade.

É o encontro com o real, a busca do movimento da vida – visível ou invisível, como no poema “Archaïscher Torso Apollos” (“Torso arcaico de Apolo”) – que interpela o eu, devolvendo-lhe o olhar que este lhe dedicara. Os dois últimos versos do poema, na insuperável tradução de Manuel Bandeira, dizem: “… pois ali ponto não há / que não te mire. Força é mudares de vida”. A descoberta da subjetividade – com sua conseqüente implicação ética – deve-se ao olhar atento ao real.

A passagem da abstração transcendente à objetividade apaixonada de Novos poemas é sintetizada pelo próprio Rilke em 1907:

“… a natureza era para mim, então [em Livros das Horas], um ensejo geral, uma evocação, um instrumento em cujas cordas minhas mãos se reconheciam; eu ainda não sentava diante dela; me deixava levar pela alma que dela emanava; ela incidia sobre mim com sua vastidão, com sua grande e exagerada existência, como o profetizar vinha a Saul; exatamente assim. Eu caminhava ao redor e via, mas não via a natureza, e sim a história que ela me inspirava. Teria aprendido muito pouco, naquela época, diante de Cézanne e de Van Gogh. Por isso, por Cézanne ter tanto a ver comigo agora, noto como me tornei diferente” [4].

A objetividade apaixonada, quase obcecada por um motivo em constante mudança, como o Mont Sainte-Victoire seria para Cézanne, implica uma nova transição, que Rilke formulará nesse mesmo ano, mas que só finalizará após longos anos de crise criativa:

“As coisas da arte são sempre resultado de ter estado em perigo, de ter ido até o fim de uma experiência, até um ponto que ninguém consegue ultrapassar. Quanto mais se avança, tanto mais própria, tanto mais pessoal, tanto mais singular torna-se uma vivência, e a coisa da arte é enfim a expressão necessária, irreprimível e o mais definitiva possível desta singularidade […]. Aí está a enorme ajuda das coisas da arte para a vida daquele que tem que fazê-las […]” [5].

Em 1912, após duas longas visitas ao castelo de Duíno, em 1910 e 1911, Rilke escreve as duas primeiras elegias. Ao contrário do que boa parte da crítica afirmou, as Elegias de Duíno, publicadas somente em 1922, estão impregnadas pelos sofrimentos da Primeira Guerra Mundial: talvez fosse possível dizer que o sentimento de abandono, o medo, a angústia da cidade grande – que caracterizam as vivências de Malte – são levadas a seu extremo após a guerra, quase como se Rilke não pudesse ter escrito as Elegias antes do término do confronto mundial. Em carta a um amigo, Rilke escreve:

“Passei todos os anos da guerra, par hasard plutôt, esperando em Munique, pensando sempre, tem que ter um fim, sem compreender, sem compreender, sem compreender. Não compreender: sim, esta foi toda a minha atividade nesses anos, posso lhe assegurar que não foi fácil!” [6]

A partir de 1919, Rilke passa a ser hóspede de amigos na Suíça, mora por alguns meses em um pequeno castelo em Irchel; em seguida, um amigo aluga para o poeta a torre de Muzot, que Rilke habitará até seu falecimento. Somente então consegue retomar a criação iniciada em 1912 em Duíno. Enquanto ainda escreve as Elegias, no início de 1922, Rilke redige, em menos de 20 dias, os Sonetos a Orfeu.

Como antes as Cartas sobre Cézanne, os Sonetos são a homenagem de um artista a outro, um diálogo entre o cantor mítico e o novo Orfeu. As Elegias são o canto fúnebre de um mundo que desaparecera por causa da guerra, as palavras de um Orfeu moderno que perdeu Eurídice e tudo o mais e que, no entanto, sobreviveu às Mênades e conseguiu reintegrar, na estreita razão cartesiana, a vida e a morte: “A afirmação da vida e da morte mostram-se como um nas Elegias” [7], escreve o autor em 1925. No mesmo sentido, a imagem do anjo representa, nas palavras de Rilke:

“… aquela criatura em que a transformação do visível no invisível, que realizamos, já aparece completa. Para o anjo das Elegias todas as torres e palácios antigos são existentes, porque há muito são invisíveis, e as torres e pontes do nosso ser ainda existentes são invisíveis, embora ainda durem corporalmente (para nós). O anjo das Elegias é aquele Ser, que é responsável por reconhecer no invisível um grau mais elevado da realidade. – Por isso, ‘terrível’ para nós, pois nós, seus transformadores e amantes, ainda dependemos do visível” [8].

Ainda que a superação do visível também seja um dos paradoxos iniciados na modernidade, não é possível negar que a busca da vida em movimento – da vida que se recolhe ao invisível – é o que concede aos textos de Rilke sua grandeza.

Juliana P. Perez é doutora em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo. Foi professora da UFRJ de 2006 a 2009; desde abril de 2009, é professora de Literatura Alemã da FFLCH/USP.

NOTAS:


[1] Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Tradução de Paulo Quintela. Coimbra: Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1955, pp. 3; 5.

[2] Carta de Rilke a Witold Hulewicz, Muzot sur Sierre (Valais), 10 de novembro de 1925. In: Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Tradução de Paulo Quintela. Coimbra: Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1955, pp. 265-266.

[3] Rodin. Trad. Daniela Caldas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995, pp. 31-32.

[4] Cartas sobre Cézanne. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p. 63.

[5] Idem, p. 24.

[6] Carta de Rilke a Leopold von Schlözer, 21 de janeiro de 1920, apud  Hans Ego Holthusen. Rilke. Hamburg: 1998, p. 127.

[7] Carta de Rilke a Witold Hulewicz, 13 de novembro de 1925, apud Holthusen, p. 152.

[8] Idem.

Três poemas do livro “O impossível e depois”

Literatura | 09/12/2016 | | IFE BRASIL

image_pdfimage_print

poetry-720609_1920-pixabay

Os dias impossíveis

Os gritos, os golpes,
Os gestos desconexos,
Os pés escalando a sala,
As mãos espalmadas na vidraça.

Os gritos, os golpes,
Os gestos desconexos,
A espera da palavra,
A longa noite, a madrugada.

Os gritos, os golpes,
A noite, a madrugada,
As dores, as feridas,
O corpo, a alma.

Os gritos, a sala
revirada, a noite
a noite, a madrugada
os gestos, a solidão,

os olhos vermelhos,
as lágrimas enxutas
e exaustas. O sol,
a noite, a esperança
perplexa e amedrontada.

Lírica

Sopro os rios que vão
Solitários desaguar
Em alguma praia
De longeveres mar.

Sentada à beira
A criança brinca.
Sorri travessa,
Para ela-outra menina
No espelho refletida.

Não conhece desgosto,
Não viu águas turvas,
Apenas pingos de chuva
Na pureza do seu rosto.

Tudo é frágil, tudo acaba
Nem sempre em bom termo.
Ela dança os pés n’água
Contra a corrente do tempo.

Geração Perdida

O que sabeis do amanhã? O que é a vossa vida? Sois uma névoa que aparece por um instante e logo desaparece.
Deveríeis antes, dizer: “Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo”. Ao contrário, agora vos gloriais alardeando. E toda jactância dessa espécie é má.
Quem sabe fazer o bem e não o faz é culpado.

(Carta de São Tiago, cap. 4, 14- 17)

Geração Perdida

os filhos dos marxistas
estamos todos perdidos
os filhos dos militares
estamos todos perdidos
os filhos dos hippies
estamos todos perdidos
os filhos dos niilistas
estamos todos perdidos

inquestionavelmente
inapelavelmente
impreterivelmente

talvez algum sábio
revendo o passado
dirá
pasmado:
O que foi feito
daquela geração fim de século?
filhos de ideologias natimortas
não ousaram
pereceram
nas apáticas águas mornas
do “estamos conosco satisfeitos”

estamos perdidos, perdidos, perdidos!
por isso urramos nas madrugadas
nos embebedamos
concordamos errado os verbos
temos preguiça
pensamos inútil
a busca por algo que esteja certo

dessa indolência
formamos um mundo
um mundo de bolhas egocêntricas
sentados sobre uma falsa inocência
chorando as consequências

do que não fizemos
do que não podíamos
do que não queremos
do que desejaríamos

multidão amedrontada
à força retirada da própria concha
pelas mãos da violência
pagamos preço de sangue
pela nossa indiferença

se a essa geração
pode ser dada qualquer escusa
foi a de que não tivemos culpa
nós não tivemos culpa
somos apenas os filhos
das filosofias de sepultura

se um dia pudéssemos
abrir as nossas portas
saltar os nossos muros
escancarar nossa revolta

seria um gemido
quase inaudível
da dor mais pura

em olhos baços
de funda amargura
suspiraremos

não temos culpa
nenhum culpa
nós
não temos
culpa
alguma
Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, Jornalista, Publicitário, poeta e membro do IFE – Campinas.

Indagações sobre o verso livre (por Carlos Felipe Moisés)

Literatura | 03/10/2016 | | IFE BRASIL

image_pdfimage_print

Caso alguém se interesse em saber o que é “verso livre”, a resposta possível será: “É o verso não metrificado”, ou seja, definição pela negativa, definição que não define, que no entanto parecerá suficiente, enquanto registro simbólico de certos fatos, certa história. Que fatos? Que história? A história segundo a qual, ao longo de séculos, tratadistas dedicaram-se com afinco à codificação do verso metrificado, até que, na virada do século XIX para o XX, este foi dado como obsoleto e sumariamente abolido. Desde então, “verso livre” tem sido moeda franca, a ponto de poucos julgarem pertinente buscar, para o fato, uma definição que, em vez de negar, afirme. É que isso equivaleria a caminhar no encalço de um “Tratado de não-versificação”, rival daquele famoso, assinado pelo príncipe dos nossos poetas. Será que os poetas de hoje precisariam de um manual que lhes ensinasse a não metrificar? Mas só o nonsense de um tratado de não-versificação permitiria enfrentar o dilema que é lidar com algo cuja definição ou conceito ignoramos.

Comecemos por indagar: “livre” de quê? Da métrica, já se vê, ou da lei tirânica que subordina os versos ao capricho de um número pré-determinado de sílabas, umas tônicas, outras átonas, não arbitrariamente, mas cada qual no seu devido lugar. Mesmo desobrigado de tais regras, verso livre continua a ser verso, do qual é só mais uma modalidade ou variante. Mas se tanto versos como não-versos podem igualmente abrigar “poesia”, somos forçados a concluir que esta tem pouco a ver com um e outro. A tradição estaria inteiramente equivocada ao atrelar (para o sim e para o não) poesia e verso.

Para os tratadistas ortodoxos, o que se deu foi exatamente a morte da poesia, segundo o pressuposto de que esta se confunde com “metrificação”. Mas o verso liberado de medidas pré-estabelecidas não foi rebeldia passageira e acabou por prevalecer, de modo que, mais de um século depois, já não há quem defenda a idéia de que verso livre seja sinônimo de não-poesia. Para a maioria de poetas, leitores, críticos e estudiosos em geral, no mundo moderno, o verso livre é um verso genuíno e legitimado. Se assim é, a dúvida passa a ser outra: como distinguir entre verso livre e não-verso? O fato é que, quando topamos com “verso livre”, damos excessiva importância ao adjetivo e descuramos do substantivo. Maliciosamente modernos, sabemos bem que verso não é ou não deve ser apenas determinado número de sílabas. Isso nos obriga a indagar: “Então, que é verso?”.

Apesar de inviável, a hipótese de um tratado de não-versificação poderia lançar alguma luz. Que tratado seria esse? A resposta é simples: o mapeamento geral dos tipos e espécies de “verso livre”, tal como tem sido praticado, seja pelos poetas que aderiram à novidade, na virada do XIX para o XX, seja pelos seus sucessores, que o foram adotando, em escala crescente, geração após geração. Ao fim, constataríamos o óbvio: longe de ser um fenômeno padronizado, o verso livre adquire feições peculiares em cada poeta, e por vezes em livros ou poemas do mesmo poeta… a não ser que nosso tratado detectasse padrões recorrentes, partilhados por “famílias” de poetas… Neste caso, chegaríamos a dizer que os poetas modernos são tão apegados a escolas, modelos e modismos como os antigos?

O que podemos saber é que o mapeamento daria atenção, em primeiro lugar, aos pioneiros, que em sua maioria começaram por versificar à maneira tradicional, em seguida rebelaram-se contra o espartilho da forma e mais tarde, em grande número, voltaram a contar as sílabas e a ordenar, disciplinadamente, aqui as tônicas, ali as átonas. Em seguida, localizaria os sucessores, que já não tinham mais de que se libertar, já que seus versos nascem alforriados. E teríamos ainda, além dos casos intermediários, os que tomaram ao pé da letra e radicalizaram o espírito libertário, passando a chamar “verso” (livre, não é verdade? [1]) a qualquer ajuntamento de palavras, arbitrariamente jogadas no papel. “Verso livre” correu sempre o risco de servir de álibi a verso frouxo, embora o bem medido e escandido, à moda antiga, nunca tenha servido de antídoto contra a frouxidão.

Nosso tratado mostraria, enfim, que a prática do verso, “preso” ou livre, implica sempre um fazer deliberado, intencional, subordinado à vontade criadora; e que “espontaneidade” ou “naturalidade” podem ser princípios desejáveis na vida cotidiana, mas não têm espaço quando se trata de arte (artefato, artesanato, artifício), compromisso a que a nenhum verso é dado furtar-se.

II

“Verso” provém do latim versus, que por sua vez deriva do particípio passado de vertere (voltar, virar, desviar), e significa linha, fileira, renque. Na origem, o termo se aplica à ação do arado, no cultivo da terra (Virgílio: In versum distulit ulmos, “Plantou olmeiros em linha”), mas é aplicável também, já agora como adjetivo, a um tipo especial de discurso, a poesia, que se interrompe a intervalos regulares, e volta, e torna a se interromper, e torna a voltar, em movimentos sucessivos, formando igualmente linhas, renques ou alamedas (Apuleio: Versa oratio, “Poesia”, simplesmente; ao pé da letra, “oração virada ou desviada”) [2]. Tais “viradas” resultam da intervenção do poeta, que impõe ao discurso um andamento determinado pelas sonoridades, as pausas, as cadências; pelo ritmo geral das orações, em suma, e não pelo fluxo lógico-ideativo, como é o caso da prosa.

“Verso” é, pois, um fato de vigência predominantemente acústico-auditiva, massa sonora, sucessão de vozes ou sílabas, deliberadamente arranjadas pelo poeta, segundo algum propósito “artístico” bem definido, ao qual o “conteúdo” deve estar subordinado. Acresce que a prosódia latina conhecia dois tipos de sílabas, as longas e as breves, assim consideradas em razão da quantidade ou da duração, questão de tempo – noção que, na passagem para as línguas modernas, se perdeu ou se diluiu, sendo substituída pela de intensidade: sílabas tônicas (fortes) ou átonas (fracas). Em razão disso, nossa versificação, assim como nossa não-versificação, é meramente silábica. A sílaba é, para nós, a unidade mínima, formadora da estrutura do verso, daí nossa preocupação excessiva com a aritmética, insuficiente para dar conta do ritmo, aspecto mais decisivo do que o simples número, na estruturação do verso. Não assim na versificação latina.

Para gregos e romanos, o número de sílabas importava menos que a natureza dos subconjuntos formados pelas seqüências de duas ou três, em cada verso: uma longa e uma breve, ou vice-versa; duas breves, ou duas longas; uma breve, uma longa, outra breve; uma longa seguida de duas breves, ou duas breves seguidas de uma longa; e assim por diante. A essas seqüências dava-se o nome de “pés”, como os descritos acima (na ordem: troqueu, iambo, pirríquio ou díbraco, espondeu, anfibraco, dátilo e anapesto), e os versos se formavam da combinação de dois, três ou mais deles. Assim, a estrutura rítmica do verso, e do poema como um todo, era extremamente flexível, modulada por cadências que se prolongavam ou se encolhiam, com liberdade, para além ou para aquém da clave limitadora dos padrões mecanicamente repetidos da nossa metrificação baseada no número de sílabas e na intensidade.

Um breve exemplo talvez permita vê-lo, ou ouvi-lo, com a nitidez que a explanação teórica mal consegue sugerir. Ponhamos a atenção na primeira estrofe de “Abriu-se um cravo no mar”, do baiano Sosígenes Costa:

A noite vem do mar cheirando a cravo.

Em cima do dragão vem a sereia.

O mar espuma como um touro bravo

e como um cão morde a brilhante areia [3].

Os dois primeiros versos abrem com a mesma sucessão fraca+forte (a noi | te; em ci | ma), seguida de três sílabas fracas – compasso de espera que antecede a segunda pausa, imposta pela tônica (mar; dra | gão); fechando a sequência, outra série de três fracas, antes do acento final (cheirando a cra | vo; vem a serei | a). Repartida em três segmentos, a cadência é lenta, e isso parece ter o propósito de prolongar o instante mágico em que a noite surge sobre ou do mar, imagem a ser eternizada nas retinas, na sugestão de fluidez do cheiro a cravo e nas pausas forçadas pela estratégica posição das tônicas.

Compare-se tal efeito à cadência sutil mas firmemente distinta que comanda os versos três e quatro. Em ambos, a primeira pausa é afastada para a quarta sílaba (o mar espu | ma; e como um cão); esse movimento se repete em seguida, com outra série de três sílabas fracas mais uma forte, e, no fecho, uma breve sucessão fraca+forte (…ma como um tou | ro bra | vo; morde a brilhan | te arei | a).
Vale dizer os mesmos três segmentos dos versos anteriores, invertida a ordem (2+4+4 e 4+4+2), o que torna a cadência ligeiramente mais acelerada, para dar representação à pressa com que é preciso livrar-se primeiro do dragão, depois da sereia, em seguida do touro, do cão e da areia – elementos intrusos, figurações paralelas, que vieram intrometer-se no âmago da tríade que forma a imagem-alvo (noite, mar, cravo), à qual cumpre voltar, com alguma urgência. Por isso a estrofe seguinte, omitida acima, abre com o mesmo verso inicial do poema, repetido ad litteram.

Teria sido mais fácil constatar que se trata de versos decassílabos, os dois primeiros (“clássicos”) com acento na 2ª, 6ª e 10ª sílabas; os outros dois (“sáficos”) com acento na 4ª, 8ª e 10ª. Mas com isso teríamos a atenção desviada para o número de sílabas e perderíamos a noção (acústica) de cadência, compasso, modulação; perderíamos, em suma, oritmo, significativamente distinto em uns e outros. Embora o metro seja o mesmo, trata-se de cadências peculiares, casadas com os sentidos específicos que os versos transmitem.

Estamos lidando, assim, antes de mais nada, com massas sonoras e não com representações visuais, daí então que essa falsa unidade chamada “verso” (artifício criado principalmente para o olho, com o prestimoso endosso da rima) poderia ser substituída, com vantagem, por outra espécie de unidade, os segmentos de sílabas arranjadas como subconjuntos, à semelhança dos “pés” da métrica latina, vale dizer as “células métricas”, na terminologia proposta por Cavalcanti Proença [4],
realidades acústicas bem marcadas, formadoras do verdadeiro ritmo do poema, só captável pelo ouvido, não pelo olho viciado em contar sílabas nas pontas dos dedos.

Mas, dirá o leitor atento, esses versos de Sosígenes Costa são metrificados. E o verso livre, alvo de nossa especulação – como fica? A resposta será: não fica. Bem vistas (e ouvidas) as realidades com que lidamos, a conclusão é inevitável: não há diferença substancial entre verso livre e verso metrificado, salvo a regularidade deste e a irregularidade daquele. Um e outro são formados pelas mesmas breves sucessões de duas, três e eventualmente quatro sílabas, responsáveis pelo ritmo, que não poderia ser dado pela mera repetição do total de sete, dez ou quantas sílabas tenha cada verso.

Para além do número de sílabas, e suas combinações, o que de fato conta é o ritmo, que resulta sempre da integração, às vezes harmoniosa, às vezes áspera, entre estrato sonoro, estrato semântico, modulação emocional e articulação sintática, que comandam, em regime colegiado, as palavras (sílabas, vozes) escolhidas pelo poeta – do mais conservador ao mais rebelde – para dar expressão à sua visão de mundo. De fato, a métrica está longe de garantir a presença da poesia. Qualquer fieira de palavras, extraída da prosa mais banal, pode ser tecnicamente escandida, e ali encontraremos as mesmas combinações de sílabas fracas e fortes, em número variável [5], mas não teremos a integração dos vários estratos, acima lembrada. No verso livre, tal como na prosa, a uniformidade não é considerada, a assimetria prevalece e não há padrões repetitivos – a não ser que nosso tratado de não-versificação chegasse a detectá-los… Verso livre, então, é o mesmo que prosa, vale dizer não-poesia? Em absoluto. O breve exercício em torno dos decassílabos de Sosígenes Costa deve tê-lo demonstrado.

III

Dizer de um poeta que é um exímio artesão ou que tem excelente domínio técnico é quase um insulto. Se não traduzir um simplório entendimento do que seja poesia, a observação esconderá um juízo severo: é um mau poeta, conhece algumas fórmulas e receitas mas não sabe bem o que fazer com elas e usa-as como fim em si. Mas isso não deixa de gerar ambigüidades e mal-entendidos, já que o bom poeta é, de fato, sempre, um exímio artesão, exímio a ponto de fazer que isso passe despercebido. O fato é que a recíproca não é verdadeira.

Observe-se o fecho do poema “Lembrança rural”, de Cecília Meireles:

Flores molhadas. Última abelha. Nuvens gordas.

Vestidos vermelhos, muito longe, dançam nas cercas.

Cigarra escondida, ensaiando na sombra rumores

de bronze.

Debaixo da ponte, a água suspira, presa…

Vontade de ficar neste sossego toda a vida:

bom para ver de frente os olhos turvos das palavras,

para andar à toa, falando sozinha, enquanto as formigas caminham nas árvores [6].

A métrica é irregular, mas há um esboço de uniformidade (estrofes de quatro versos, rimas toantes), isto é, algum senso de ordem e disciplina, em meio à descontração do olhar devaneante, que passeia pela paisagem – e na segunda estrofe esse olhar se voltará para dentro, em sintonia com a variação do jogo das formas e a mudança de ritmo. “Flores molhadas. Última abelha. Nuvens gordas”: três pausas fortes, bem demarcadas. No restante da primeira estrofe, os versos mantêm o mesmo arranjo tripartite mas perdem o andamento sincopado do inicial, ganhando uma fluidez que atinge sua expressão máxima, reforçada pela ausência de sinais de pontuação, na abertura da segunda estrofe: “Vontade de ficar neste sossego toda a vida”. Repare-se que esse verso-chave esconde em seu recesso um legítimo alexandrino: após uma breve pausa inicial (vonta | de), segue-se uma suave sucessão de três vezes quatro sílabas, em sequências regulares de três fracas e uma forte: “…de de ficar | neste sosse | go toda a vi | da”. Verifica-se, afinal, que a cadência ternária da primeira estrofe cede lugar, na segunda, a largos movimentos, emblemáticos do encontro daquele olhar devaneante consigo mesmo: a paisagem exterior devém estado de espírito.

Alguém imaginaria que tão bem engendrados recursos técnicos são fruto da inspiração ou do acaso? O leitor ingênuo, talvez, mas os demais saberão que tais expedientes foram recolhidos da tradição versificatória e retrabalhados com liberdade pela escritora, que, graças a seu elevado saber de ofício, faz com que estes passem despercebidos. Criado o poema, o leitor pode então desfrutar da mágica experiência da espontaneidade e do acaso… convincentemente encenada.

O fato de o leitor ingênuo imaginar o ato criador como espontâneo brotar de “inspirações” não causa grande mal aos destinos da poesia: mais cedo ou mais tarde, os mais atentos acabam por perceber o que se passa. Mal bem maior resulta do grande número de poetas que endossam esse simplório entendimento, apegando-se à suposta “facilidade” do verso livre. Tais poetas ignoram advertências como a de um Geir Campos, para quem o verso livre deixa “o poeta numa espécie de regime de livre-arbítrio muitas vezes mais árduo que a aparente dificuldade das formas convencionais” [7].

Antes da rebeldia dos pioneiros, o amplo arsenal versificatório à disposição dos poetas, com sua inumerável variedade de células métricas, andamentos e cadências, é predominantemente regular e uniforme. Mas longe de significar idiossincrasia ou imposição arbitrária, as antigas formas fixas, em seu conjunto e em seu espírito genuíno, valem como representação metafórica de um mundo estável. Tais formas já contêm em si uma visão de mundo. O poeta anterior à rebeldia verseja, rima e conta as sílabas, para conferir à sua criação o status simbólico de microuniverso coeso, na medida em que acredita estar inserido em (e integrado a) um universo igualmente ordenado e coeso. O poeta moderno, por sua vez, “condenado” a usufruir da suposta liberdade do versilibrismo, continua a metrificar, e até a rimar, e a escandir e a acentuar, servindo-se basicamente das mesmas células métricas tradicionais (cujo limite é a própria língua), à procura dos mesmos ritmos integradores dos vários estratos de sua fala, já agora em regime de irregularidade, assimetria e imprevisibilidade, para dar representação metafórica a um mundo analogamente irregular e heterogêneo, instável, esvaziado de qualquer valor ou verdade inquestionáveis. A pluralidade das formas já é, em si, figuração de outra visão de mundo.

O verso livre, afinal, faz parte de um amplo pacote de rebeldias e insurreições [8] que, na virada do século XIX para o XX (nas artes, na literatura, na política, nas ciências, no comércio, na guerra e em tudo o mais), desabou sobre a sociedade, como um bólido que se expande e se multiplica, até os nossos dias, imprimindo à vida contemporânea um ritmo cada vez mais acelerado – espasmos aparentemente revolucionários, cada vez menos espaçados, no encalço da Grande Revolução libertária, que vem sendo sonhada há mais de duzentos anos. Nesse quadro, o que pudesse haver de insurreição no verso livre reduziu-se, há muito, a um pequeno jogo inofensivo, tão forte é a relação de dependência que a ousadia versificatória mantém com a tradição da qual pretende, mas na verdade não quer nem teria como se livrar. Em 1917, a afirmação com que T.S. Eliot encerra suas reflexões sobre vers libre talvez soasse como excentricidade ou provocação. Hoje, passado quase um século, será apenas um lembrete, objetivo e isento, quase neutro, a apontar para uma verdade de que há décadas estamos cansados de saber, mas às vezes esquecemos, ou simulamos ignorar, segundo a qual “a divisão entre verso conservador e vers libre não existe; só o que existe é bom verso, mau verso e caos” [9].

Carlos Felipe Moisés é poeta (Noite nula, 2008), ensaísta (Poesia e utopia, 2007) e tradutor (O poder do mito, 1990). Seu livro Conversa com Fernando Pessoa (2007) recebeu recentemente o Selo de Qualidade da FNLIJ, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. É mestre e doutor em letras clássicas pela USP.


[1] Já em 1917, T. S. Eliot advertia: “Vers libre é um grito de guerra em nome da liberdade, mas em arte não existe liberdade” (“Reflections on Vers Libre”, ed. cit., p. 184). Décadas depois, a advertência será reforçada por William Carlos Williams: “Sendo uma forma de arte, o verso não pode ser ‘livre’, não no sentido de que não tenha limitações ou princípios norteadores”. (Verbete “Free verse”, in Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, org. Alex Preminger, Princeton, Princeton University Press, 1974, p. 289).

[2] F.R. dos Santos Saraiva, Novíssimo diccionario latino-portuguez (Rio de Janeiro, Garnier, 1924, p. 1268).

[3] S. Costa, Obra poética (Rio de Janeiro, Leitura, 1959, p. 20).

[4] M.C. Proença, Ritmo e poesia (Rio de Janeiro, Organizações Simões, 1955, p. 17).

[5] “Qualquer linha pode ser dividida em pés e acentos, até o pior dos versos pode ser escandido” (T.S. Eliot, “Reflections on Vers Libre”, ed. cit., pp. 185 e 189).

[6] C. Meireles, Obra poética (2ª ed., Rio de Janeiro, Aguilar, 1967, p. 191).

[7] G. Campos, Pequeno dicionário de arte poética (Rio de Janeiro, Conquista, 1960, p. 120).

[8] W.C. Williams observa, não sem ironia, que “o verso livre […] tem sido frequentemente descrito, embora nem sempre, como intrinsecamente ‘democrático’ ou até revolucionário” (Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, ed. cit., p. 289).

[9] T.S. Eliot, “Reflections on Vers Libre”, ed. cit., p. 189.

Artigo publicado originalmente na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro de 2009.