Arquivo da tag: Paris

image_pdfimage_print

[FILME] “Casablanca” (por Pablo González)

Cinema | 19/11/2018 | | IFE BRASIL

image_pdfimage_print

(Casablanca). Diretor: Michael Curtiz. Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Reins.USA. l943. l02 min.

A sessão mensal do Cinema para Todos pedia um clássico. E um clássico é muitas vezes aquele filme do qual todos falam, muitos citam diálogos e até alguma cena consagrada…..mas nunca viram o filme inteiro. Era preciso preencher essa lacuna cultural. Colocamos Casablanca na tela, a pipoca por perto, e deixamos rodar.

Quem não conhece Casablanca? Em conversas de cinema, mesmo entre os pouco versados, é passagem obrigatória. E os afiados na arte fílmica citam de cor os diálogos, e até colocam na boca de Bogart palavras que nunca chegou a pronunciar. Os clássicos têm isso; manipulação indiscriminada, direitos autorais vencidos. São como patrimônio da humanidade. “As times goes by” -o tema musical que ninguém toca como Sam- envolve em papel de presente o celuloide, tornando-o apetitoso. A voz arranhada de Sam golpeia as lembranças de Bogart que tem cheiro de Paris; os dedos arrancam das notas a melodia, e dos espectadores todo um universo de saudades na tentativa de congelar momentos passados de tempos melhores. Os tempos de cada um, as recordações boas que todos guardamos no coração.

Por isso, falar de Casablanca é sentir-se à vontade em tema que todos conhecem. Não há o perigo de “contar o filme” quando passeamos pelas cenas, recreando-nos mais uma vez, em tudo o que nos é grato. Quando se assiste a primeira vez, presta-se atenção no argumento. Na segunda, são os diálogos -riquíssimos, deliciosamente sutis- os que chamam a atenção. Na primeira passada fugiram à nossa observação, pois a agilidade das cenas é grande, e o conteúdo denso. Mas é depois, nas sucessivas apreciações, quando reparamos que cada cena, cada quadro, é simplesmente redondo, acabado. Passamos a ver o filme como um conjunto de miniaturas preciosas, onde vamos nos detendo, ganhando intimidade com ele, como um álbum de família. É o momento da sintonia, de entrar em ressonância com o filme, vivê-lo junto com as personagens numa aventura que é desabrochar de emoções ocultas.

Todos conhecem Casablanca, mas poucos sabem explicar o magnetismo que encerra. Lembro de um fato esclarecedor. Foi no início da década dos 80, quando o Vídeo Cassete aparecia no mercado brasileiro, e os cinéfilos corriam à procura dos clássicos, daqueles que não passavam na TV, ou pelo menos em horário compatível com o dos cidadãos comuns, que acordam cedo e trabalham ganhando o leite das crianças. Naquela época a pirataria de fitas de vídeo era a praxe, sem selos de qualidade e toda essa regulamentação que vivemos hoje.

Vamos ao fato. O local: um vídeo clube nos Jardins. Os protagonistas: um rapaz jovem, novo cliente, fascinado pelas descobertas dos clássicos da sétima arte e leigo no assunto; uma moça, gerente do clube; um outro cliente que, passivo, observa o diálogo entre os dois primeiros. “Formidável este Casablanca que você me recomendou” – diz o rapaz, enquanto devolve a fita. “Naturalmente -exclama a moça- trata-se de um clássico. Pena que tenha esse final. Deveriam ter dado um jeitinho…”. “É mesmo: se não fosse esse final…” – acrescenta o jovem. O terceiro personagem entra em cena: “Minha filha, não seja superficial. O filme é famoso pelo final que tem. Você não repara que um final diferente lhe tiraria toda a força? Murcharia tudo, querida!” Perplexidade. O que murchou foi a conversa, que se encerrou ali mesmo.

Assisti Casablanca muitas vezes. As suficientes para perder a conta e conhecer de cor a maioria dos diálogos. O desfecho final, na clássica cena do aeroporto, é magistral. O magnetismo de que falávamos cativou os cineastas e os amantes do cinema que gostam, vez por outra, de saborear cada um dos fotogramas, envolvidos na neblina do aeroporto. A sequência temperada com duas lágrimas escorrendo na sombra do chapéu de Ilsa, inclinado com charme.  E tudo isto, sem saberem explicar o porquê. São os valores que o filme destila os que lhe conferem toda a força e encanto. Como o vinho, melhor a cada ano que passa.

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, Rick e Ilsa, acompanham o desenrolar do cinema neste século, atrás das cortinas do escritório de Rick. Um cinema que cada vez mais carece de valores, órfão de romantismo. Ou talvez, como na janela de “La Belle Aurore”, quando Paris é invadido, olham-nos com receio, surpreendidos destes novos invasores que chamam de cinema a qualquer metro de celuloide impresso. Algo grave está para acontecer, pensam. E como toda resposta: “Beije-me, beije-me como se fosse a última vez”. A taça de Champagne cai. A tinta do bilhete escorre com a chuva na estação de Paris. Definitivamente, é preciso rever Casablanca, de vez em sempre, para que o coração do cinema não perca o seu marca passo.

Ingrid Bergman, com 28 anos, sempre elegante, com postura e classe, sóbria nos modos, cheia de dramatismo quando necessário. Bogart vive o papel com credibilidade porque é ele mesmo, como sempre. Cínico, indiferente, com metódico desprezo por tudo e por todos. Cercado de um ar “não partidário”, como recurso para encobrir os sentimentos nobres de fundo. Comenta-se nos bastidores que o final de filme foi escolhido por ele: não surpreende. É bem o seu estilo, auto desprezo, querendo ser frio, mas não consegue ocultar que tem coração e grande.

Não poderiam ser outros os atores deste clássico embora -sempre conversa de bastidores- inicialmente, nomes diferentes pairavam entre os candidatos. Hoje seria difícil imaginar quem encaixaria melhor. Michael Curtiz, húngaro de nascimento, passaria a posteridade mesmo que tivesse dirigido apenas Casablanca. As personagens secundárias estão maravilhosamente cuidadas, e aqui vai mais um mérito para o diretor deste filme antológico. Os valores de fundo atuam como arcabouço para toda a tecelagem das cenas. São estes valores, os que o público, sem perceber, vai descobrindo cada vez que assiste, entrando em ressonância, identificando-se com eles.

Passeemos de novo pelas cenas. Estamos no quarto de Rick. Ilsa exige, revolver em mão, as carta de trânsito. “Dispare, me fará um favor”. É Rick falando. Ilsa titubeia, cede e cai nos braços de Rick. “Já não sei mais o que é direito. Você terá de pensar por nós dois. Por todos nós”. O público identifica-se com Ilsa que hesita. Está falando o sentimento.

Agora estamos no aeroporto. Rick pede ao inspetor Renault que preencha as cartas de trânsito. Ilsa vira-se surpresa: “Eu não entendo. Ontem à noite…” Rick fala com convicção: “Ontem à noite pensei muito e decidi que você vai com Lazlo nesse avião. Se fica talvez não se arrependa hoje, nem amanhã, mas algum dia acabaria fazendo-o e pelo  resto da sua vida”. É a lealdade, o sentido do dever, a nobreza do coração de Rick que deixa ir a mulher que admira, que respeita – sim, que ama!!- por sabê-la esposa de outro. Decisão impregnada de lealdade e bom senso que Bogart assina, sem dar-se importância, de modo característico: “Não quero parecer nobre; mas não é preciso muito para ver que os problemas de três pessoas não passam de um punhado de feijão neste mundo nosso”. Em tradução livre, é mais ou menos isso.

O sentimento se debate e o espectador com ele. Ilsa pede uma explicação que satisfaça o coração: “Mas…e nós?” E Rick: “Nos teremos sempre Paris”. Isto é, teremos sempre a lembrança do nosso ideal, de um amor nobre, claro, sem subterfúgios, livre de culpa. Ilsa vai-se consolada. E o espectador segura o coração -juiz cego- e assente para o que sabe ser correto.

É essa experiência de atravessar o dilema guiado apenas pelo coração, hesitando nos sentimentos de Ilsa até perder a noção da verdade -“não sei mais o que é direito; você terá de pensar por nós dois”- para depois ser confirmado na opção certa por Rick, uma vez e outra, o que me faz rever Casablanca sem enjoar. Rick, que pensou por eles dois, por nós todos, nos oferece a solução certa. O cínico, o indiferente, aquele que não sabíamos em que time jogava, mostra-nos que joga no nosso; ou melhor, que nós jogamos no dele, porque ele é indiscutivelmente o líder. Sentimos, com o inspetor Renault, que “é o começo de uma grande amizade”, com Rick, naturalmente.

A cena do aeroporto, que passei inúmeras vezes nas minhas aulas e conferências para ilustrar a necessidade da reflexão -alguém tem que pensar, e nos ajudar a pensar- teve muitos desdobramentos. Lembro de uma aluna, há muitos anos, que me disse: “O difícil, professor, é subir no avião. Ninguém pode subir por nós. E muitas vezes, sabemos que é o certo, mas custa, custa demais”. Quando apresentei a tese doutoral -sobre cinema e educação médica, que continha na capa uma foto de Casablanca- lembro que essa mesma aluna, me deu de presente um pequeno pôster com a cena do aeroporto. Não sei o que foi feito da aluna, perdi a pista, mas o pôster está lá na parede do nosso terraço.

Quem sabe revendo sempre Casablanca, os homens -os que fazem e os que assistem cinema- aprendam a degustar os valores impressos no filme. Repararíamos -entre muitos outros recados- que deixar-se levar apenas pelo sentimento é solução pouco madura, injusta com os semelhantes. Que o final feliz, o da vida de cada um, entranha decisões custosas que, como no filme, se lembram com carinho especial. E que deixar-se levar pelo que apetece, colocar a lealdade e o compromisso no arquivo morto, é saída fácil. Podemos até gostar “hoje, amanhã, mas algum dia…”

Se apesar de tudo, os homens do cinema são impermeáveis aos ideais nobres -razoes deste teor não convencem quem procura apenas lucro- revendo Casablanca aprenderão, no mínimo, a produzir um cinema de classe. Esse cinema que o público precisa, que o engrandece arrancando-o da mediocridade. Um cinema dedicado a ele, ao público, como somente Ilsa e Rick sabiam fazê-lo. Here’s looking at you kid, quer dizer, “pensando sempre em você”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em http://www.pablogonzalezblasco.com.br, em 28/05/2018.

 

Sempre terei Paris

Opinião Pública | 29/06/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Cada vez que estou em Paris, um assombro anímico toma meu ser. Uma sensação feita de nostalgia de um tempo ainda não vivido e de reminiscências ainda não sedimentadas nos porões da existência. As lembranças da primeira viagem – que fluem como uma torrente de verão tropical a tomar conta de suas antigas vielas, hoje bem reduzidas, quando ainda se chamava Lutécia, nome de batismo dado pelos romanos – sobrepõem-se aos novos olhares que a cidade-luz oferece aos seus citadinos. E, também, aos estrangeiros com um coração gaulês.

Já viajei para muitos lugares e, com exceção de Roma, essa sensação não se repete nas outras paragens. Certamente, porque nunca tenha desejado tanto Paris, uma espécie de fruto destilado das leituras juvenis de Verne e Dumas, alimentado pelas fascinantes estórias da tia Maria Helena, mãe de um verdadeiro amigo de ginásio e sempre disposta a nos fazer um delicioso cachorro quente com mostarda Dijon. E, também, pela oitiva dos causos de um primo de meu pai que, como embaixador aposentado, servira em Paris por muitos anos.

Tudo isso me motivou, aos doze anos, a escolher a diplomacia como minha profissão: achava, ingenuamente, que poderia lançar raízes ali e que só vivendo em Paris minha alma naturalmente cosmopolita alcançaria sua plenitude. Mal sabia que isso me causaria dois problemas imediatos. A centelha nativista, idealizada por um pai militar, havia se apagado pelo ardor do desejo parisiense e o orçamento doméstico precisou ser rearranjado para contemplar aulas de francês, tal era minha obstinação em deixar Pindorama.

Contudo, não contava com as artimanhas do destino que, ao me “obrigar” a fazer Direito, como condição para se ingressar no Itamarati, fez com que meu coração ficasse preso às arcadas do Largo de São Francisco. Foi estudando a magistratura francesa que me encantei com a carreira de juiz e, por viver enfornado nas bibliotecas dos departamentos de Filosofia do Direito e de Direito Internacional Público, acabei por conhecer uma caloura, que estagiava como bibliotecária, e que, anos depois, casou-se comigo. Enfim, devo ao Largo minha esposa e minha formação profissional. Não necessariamente nessa ordem…

O sonho diplomático esfacelou-se e ficará para a outra vida. Entretanto, a alma parisiense ainda resta bem viva. Com a tia Maria Helena aprendi o gosto pelos vinhos e por toda a arte que o cerca, sempre explicado pelo tio François, entre uns goles aqui e acolá. Se, com meu pai, fui educado a ler muito, com o primo dele, fui incentivado, aos poucos, a ler obras de literatura e história na língua francesa. Toda vez que leio – não para resolver problemas processuais –, faço-o acompanhado de um bom vinho e, sentado ao ar livre, espiritualmente, sinto-me num café parisiense.

Sem dúvida, olho para o lado e não vejo o Sena. Aliás, uma das coisas que primeiro me impressionou em Paris foi justamente esse “detalhe” geográfico: as proporções parisienses são fenomenais graças às dimensões humanas desse silencioso rio que corre placidamente no coração agitado da cidade. Ao contrário das superfícies imponentes do Tâmisa em Londres ou do Tibre em Roma, o Sena é bem mais estreito. Causa-me a impressão de que este dado natural impactou a paisagem urbana de alguma forma, cujas consequências mais notáveis são suas construções pequenas, equilibradas e agradáveis.

De longe, a construção que mais me atrai não é a Torre ou seus incontáveis palácios e jardins. Nem mesmo seu famoso teatro, o Arco ou suas românticas pontes. É a igreja de Notre Dame. Contemplar, por dentro e por fora, num giro panorâmico, sua arquitetura gótica cercada pela água do rio, seus vitrais, seus portais, suas arquivoltas, seus arcobotantes, sua abóbada e sua rosácea é sempre uma experiência transcendente das agruras do cotidiano rumo ao divino escondido que habita dentro de cada um de nós.

Meus sentimentos voltam-se para Paris, na iminência de visitá-la novamente. Não me recordo de nenhum poema francês para expressá-los. Pouco importa, já que a cidadela da poesia é tão cosmopolita quanto Paris. Então, vou atrás do meu português favorito: “Tenho tanto sentimento/ Que é frequente persuadir-me/ De que sou sentimental/ Mas reconheço, ao medir-me/ Que tudo isso é pensamento / Que não senti afinal”. Ao cabo, Paris só se define tautologicamente: Paris é Paris.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular de Campinas, edição 29/6/2016, Página A-2, Opinião.