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[FILME] “O Mestre dos Gênios” – Um convite ao renascimento da comunicação (por Pablo González Blasco)

Cinema | 19/11/2016 | | IFE BRASIL

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O mestre dos gênios - capaFILME: “Genius”. 2016. 104 min. Dir: Michael Grandage. Colin Firth, Jude Law, Nicole Kidman, Laura Linney

Já me disseram -várias vezes- que os meus comentários de filmes são excessivamente longos. Sim, dizem, são interessantes, destilam conteúdo, mas nem sempre o leitor se anima com tudo o que você escreve. Quem sabe, algo mais curto, direto, objetivo. Afinal, o que as pessoas querem é uma recomendação específica de um bom filme para assistir. Não estou muito convencido de ser esse o meu papel, recomendar filmes. Nunca pretendi ser um crítico de cinema; vejo-me mais como quem pensa em voz alta e escreve as reflexões que um filme proporciona, os desdobramentos. Mesmo assim, é bom seguir os conselhos dos amigos.

Este filme notável brinda-me a ocasião de inaugurar um estilo de comentários mais palatáveis. Não sei quanto vai durar este propósito porque, afinal, para essa conquista -a síntese enxuta das palavras é uma verdadeira conquista- eu precisaria de um editor. Como o protagonista que aparece neste filme de época. Um editor em estado puro: Max Perkins, que enxuga, corta sem piedade páginas e páginas, muda títulos, mesmo não sabendo se com isso transforma os livros em algo melhor ou, simplesmente, em algo diferente.

O mestre dos gênios - 2E as vítimas das suas correções -a mágica do editor- não são outros que Hemingway, F. Scott Fitzgerald e, em primeiro plano, Thomas Wolfe. Jude Law dá vida à personagem do escritor prolixo, uma enxurrada de ideias e palavras, sensações e magníficas descrições estéticas de pessoas e sentimentos. Todas são necessárias -no seu entender- até que caem sob a guilhotina impiedosa de Perkins, incarnado por um Colin Firth em estado de graça.

Escrever não é fácil. Editar o que outro escreveu se me apresenta como muito mais difícil. Eu mesmo não consigo cortar meus textos, e tenho de recorrer aos editores-jornalistas quando me solicitam entrevistas por escrito. Difícil dizer o que tem de ficar, o que deve sair, o que pode mudar e como reduzir vários parágrafos a quatro ou cinco linhas magicamente editadas. Aos que nos atrevemos a escrever pode nos acontecer como a Thomas Wolfe: a cachoeira de ideias, sonhos, pensamentos, embaçam a escrita, desfocam o objetivo. Como se a multidão de árvores nos impedissem de ver o bosque. É preciso de uma poda criteriosa, para que a paisagem aparece diáfana.

O mestre dos gênios - 5Não. Não é fácil escrever, nem bastam as melhores intenções. O recente prêmio Nobel de literatura, adjudicado a Bob Dylan, rendeu um magnífico comentário de um escritor consagrado, o cubano Leonardo Padura. Vale a pena ler com vagar seu texto, e pensar o que significava para Hemingway -que também aparece no filme- mudar quarenta vezes o final de um romance, porque não encontrava a ordem adequada das palavras. E muitos outros exemplos lá citados, assim como a perplexidade dos escritores diante do prêmio da academia Sueca.

Se escrever não e fácil, a mágica da edição parece-me muito mais difícil. Talvez porque requer habilidades específicas que, claramente, eu não possuo. Meu amigo Albert foi durante muitos anos editor associado de uma importante revista médica Americana. Sempre que nos encontramos e passeamos por Washington, surpreende-me a facilidade com que usa as palavras, sem nenhum pedantismo, com elegância comedida e convidativa. Falando com ele, ou vendo o que ele escreve numa simples resposta a um e-mail, sempre tenho a impressão de como a expressão é algo simples, e ao mesmo tempo, tão difícil de encontrar. A palavra certa, le mot juste, dizia, se mal não lembro, Flaubert.

O mestre dos gênios - 6Albert diz que os editores são limpadores de janelas: deixam o vidro transparente para que brilhe a luz do escritor-autor. Até o exemplo é simples, quase simplório. Mas, na prática, como é difícil limpar as janelas, e desaparecer sem fazer barulho. Porque um bom editor sempre desaparece, para que o escritor se projete. Vidros limpíssimos, sem marca pessoal. Se o vidro se transformasse em espelho – o editor estrela- o resultado é catastrófico. Talvez por isso, a postura do editor mistura de modo único uma atitude decidida e enérgica com um respeito que é quase veneração pelo material que lhes chega às mãos.

Isso me comentava outra amiga, que além de editora é escritora e poeta. Johanna, assim se chama, utiliza um inglês elegante e ao mesmo tempo compreensível, porque desempoeira termos de raiz latina, e te surpreende com a claridade. “Sempre trato com muito respeito os textos que me chegam, quando quero ajudar os outros a se expressarem. Um respeito que aumenta quando sei que eles escrevem numa língua que não é a deles”. Esse foi o delicado comentário que acompanhava a correção do primeiro artigo que publiquei em inglês, após maravilhar-me com a forma que ela conseguiu dar à minha escrita tosca. Pedindo licença, é claro, para ver se eu concordava com as mudanças!

O mestre dos gênios - 7Comentando sobre o filme com outro amigo, leitor voraz, me fez chegar uma entrevista onde a escritora e jornalista Janet Malcolm descreve o trabalho do seu marido, Gardner Botsford, que era seu editor na revista The New Yorker. Utilizando as palavras que ela mesmo disse no funeral de Botsford, Malcolm relata como ele cortava, marcava, sublinhava sem piedade os textos da escritora. E o resultado era algo romântico, como um quadro que emergia, ou uma ária de ópera, enfim, uma obra de arte. “Sinto-me desamparada sem ele. Como é difícil escrever sem este apoio”. Naturalmente, enviei a entrevista para Albert, e a recomendação do filme que nos ocupa e do qual quase nada comentamos.

Na verdade, há pouco que comentar. Sigamos o exemplo de eficaz low profile dos grandes editores, e apontemos: um belíssimo filme, uma interpretação magnífica, em todos os registros. Uma experiência estética, que começa visualmente e se desdobra num apetitoso convite para ler, e mergulhar no mundo dos livros. Quem sabe esse é o primeiro passo para tentar escrever.

O mestre dos gênios - 8As pessoas cada vez escrevem menos, e escrevem pior. Emitem grunhidos e interjeições nas redes sociais, veiculados em alta tecnologia e velocidade supersônica, mas numa linguagem equiparável aos seres pré-históricos. Também não leem, passeiam os olhos pelas telas e pensam estarem informados. E quando o espasmo da emoção lhes alcança, tem de fazer uso de emoções fast-food, congeladas em forma de “emoticons”, para dar a entender o que sentem, embora também não tenham muita certeza. Uma penúria cultural lamentável. O que um editor teria a fazer com esse menu de expressões? Nada sobraria, seria uma debacle com sabor bárbaro, como a queima da biblioteca de Alexandria.

Quem sabe se este filme, como um convite a um renascimento da comunicação humana, pode frear -nem que seja em pequena medida- o analfabetismo digital que nos rodeia, e nos embrutece. Mesmo sendo –como dizia um famoso professor de filosofia – um analfabetismo bilíngue ou trilíngue.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em http://www.pablogonzalezblasco.com.br, em 15/11/2016.

Medos privados em lugares públicos (por Túlio Sousa Borges)

Cinema | 19/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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A good scare is worth more to a man than good advice.
Edgar Watson Howe

This suspense is terrible. I hope it will last.
Oscar Wilde

Alfred Hitchcock (1889-1980) é, indubitavelmente, um dos grandes do cinema: mestre do suspense (mas também do romance) e dono de apurado senso de humor; popular (e justamente por isso) muito controverso; inimitável, ainda que incessantemente imitado. Britânico em várias acepções da palavra, transformou-se em artista universal, contribuindo mais do que qualquer outro para o desenvolvimento do caráter cosmopolita – porquanto visual – da sétima arte.

Quando cruzou o Atlântico rumo à América, o cineasta já havia rodado alguns de seus melhores filmes, conquistando uma reputação invejável. Nasceu em Leytonstone, Londres, em uma família católica. Sua educação jesuítica no Saint Ignatius College – bem como a severidade do pai, um atacadista de frutas e verduras sem qualquer inclinação artística – acabaria por exercer influência decisiva em sua obra.

Aprendeu o ofício, narrar por meio de imagens, na época do cinema mudo. Formado em engenharia e habilidoso desenhista, iniciou sua carreira como designer de títulos na Famous Players – Lasky de Londres, produtora que se tornaria a Paramount. Foi se envolvendo cada vez mais com a produção de filmes do estúdio, acumulando diversas funções. Por lá conheceu Alma Reville, sua esposa e eterna colaboradora. Dirigiria seu primeiro filme, The Pleasure Garden (1925), na Alemanha, onde conheceu o Expressionismo, que seria, ao lado do Cinema Soviético, a principal influência em seu estilo de direção. Até 1939, véspera de sua ida a Hollywood, ele viu-se obrigado a recorrer à engenhosidade técnica para driblar o problema dos poucos recursos à sua disposição e transformou-se aos poucos em um mestre.

No thriller The Lodger (1927), seu terceiro trabalho de direção, ele encontra sua vocação. Trata-se, coincidentemente, da primeira vez que aparece em um dos filmes – “para mobiliar a tela”, conforme dizia. O gérmen de seu estilo está lançado. Blackmail (1929) seria o primeiro filme sonoro britânico, além da primeira ocasião em que Hitchcock utilizaria um monumento nacional como palco do clímax – nesse caso, o teto do British Museum. Não obstante, sua experiência será relativamente frustrante até 1934, quando a primeira versão de The Man Who Knew Too Much inaugura quatro anos de êxito, marcados por outros cinco filmes que estabeleceriam sua fama como um ótimo diretor de thrillers, sobretudo de espionagem.

O mal é presença constante ao longo de sua filmografia. Apesar disso, Hitchcock parece guiar-se antes de qualquer outra coisa pela reação emocional que deseja obter – normalmente uma variação do medo. É um grande manipulador. Daí a importância da montagem, influência soviética, no seu trabalho. Numa entrevista a Peter Bogdanovich, ele comenta: “Sabe, no que me concerne, o conteúdo é secundário em relação ao manejo; o efeito que sou capaz de provocar no público, e não o assunto.” Conseqüentemente, o que em geral lhe interessa é a existência de uma ameaça, seja ela representada por maus indivíduos ou por um universo amoral.

Com estilo único, Hitchcock constrói um mundo próprio, estranho e perigoso, onde impera a lógica dos pesadelos. O cineasta acaba fazendo as vezes de um demiurgo perverso, que vez por outra lança uma irônica piscadela para o outro lado da tela. Ao mesmo tempo, não passa de um menino assustado que compartilha seus maiores medos.

O diretor tenciona perturbar a sensação de segurança dos espectadores. Segundo Bogdanovich, por exemplo, seus filmes alertam para os perigos da complacência. Um exemplo notável seria Lifeboat (1944), que o próprio Hitchcock descreveu como um “microcosmo da guerra”, onde ele contrasta, de maneira magistral, a organização e implacabilidade dos nazistas com a pusilanimidade dos Aliados, estes enfraquecidos por disputas internas. O inimigo é representado pelo capitão de um submarino alemão, um homem relativamente simpático e, exatamente por isso, muito traiçoeiro e duplamente perigoso. Interpretado por Walter Slezak, faz parte de uma extensa e ilustre galeria de memoráveis personagens hitchcockianas.

Há pouco espaço para a vida real nos filmes de Hitchcock, que nunca são tediosos, constituindo, desse modo, formidáveis possibilidades de evasão. Ennui, esse tema moderno por excelência, surge como trampolim para o incomum, servindo como parte da motivação dos dois psicopatas de Rope (1948) e daquele de Strangers on a Train(1951) – filme que sinaliza o início da fase áurea do diretor.

Não nos esqueçamos tampouco do início de Shadow of a Doubt (1943), quando se introduz a conexão telepática entre a adolescente Charlie (Teresa Wright) e seu tio de mesmo nome (Joseph Cotten). Entediada pela vida em sua pacata cidade na Califórnia, a jovem invoca emoção e perigo. No já mencionado Spellbound, Ingrid Bergman – em desempenho soberbo – é uma psiquiatra aparentemente frígida que acaba se apaixonando por um paciente amnésico suspeito de assassinato. Dr. Petersen dá então lugar a Constance, que decide “fugir com um par de iniciais”- “brincando com uma arma carregada”, no dizer de seu velho mentor.

Na mesma linha, Hitchcock gosta de mostrar pessoas comuns inadvertidamente envolvidas em situações extraordinárias. Tem-se, por exemplo, a clássica trama do homem injustamente acusado, que persegue os verdadeiros malfeitores enquanto tenta escapar da polícia.  Em Saboteur (1942), por exemplo, a rotina desaparece logo no início do filme, envolta por um mar de chamas, fazendo com que o protagonista, um simples operário, se veja obrigado a empreender uma longa e maravilhosa jornada ao redor dos Estados Unidos para desmantelar uma rede de subversivos.

As mesmas coordenadas são visitadas no simplesmente brilhante North by Northwest (1959) – que, como bem observa Truffaut, sintetiza a carreira americana do diretor. Na primeira seqüência do filme, o executivo de publicidade Roger Tornhill (Cary Grant) elabora sua agenda com a secretária enquanto se dirige a um de seus corriqueiros almoços de negócio. A situação, comicamente banal, contrasta marcadamente com o vertiginoso clima dos créditos iniciais, estabelecido, entre outras coisas, pela superlativa trilha sonora de Bernard Herrmann. Ao deixar a secretária, Tornhill percebe que ela não poderá cumprir a tarefa de ligar para a mãe dele, pois esta joga cartas em um apartamento sem telefone. Pouco tempo depois, uma curiosa confusão de identidades irá catapultar o protagonista para o centro de uma aventura kafkiana. Com fina ironia, Hitchcock demonstra que nossos planos podem ser inesperadamente arruinados pelo acaso.

Retomamos aqui um instigante paradoxo[1], pois estamos falando de um diretor muito minucioso, que planejava todas as tomadas até os últimos detalhes no período de gestação do filme. Com o tempo, passou a desenvolver storyboardspara todas as cenas. Utilizava a câmera cirurgicamente, a fim de obter o efeito desejado. Insistia, por exemplo, na importância de não se desperdiçar um close-up antes da hora. 

Assim, tinha tudo na cabeça antes de chegar ao set; e detestava a filmagem em si, já que nela havia a necessidade de fazer concessões e, assim, a possibilidade de perder o controle da produção.

A partir de um determinado momento, passou a empregar seu inegável talento publicitário para assinar suas realizações. Por meio de breves e notórias aparições nos filmes, verdadeiras gags, criou uma persona inconfundível, robustecida pelo sucesso da série de televisão Alfred Hitchcock Presents (1955-1965).

Nem sempre conseguia recrutar os atores que desejava, seja porque os mais famosos subestimavam thrillers (Gary Cooper declinou o convite para trabalhar em Foreign Correspondent, de 1941), seja porque os estúdios lhe impunham outros.

“Atores são como gado”, disse certa vez em um contexto bem específico. E os utilizava como marionetes. Foi-lhe, então, muito desagradável dirigir Montgomery Clift em I Confess (1953) e Paul Newman em Torn Curtain (1966), já que ambos haviam formado opiniões próprias a respeito dos respectivos filmes. É claro que Hitchcock preferia trabalhar com estrelas, pois provocavam a cumplicidade do público; aproveitava-se da persona do astro e a manipulava, subvertendo-a ocasionalmente. Cary Grant, Ingrid Bergman, James Stewart e Janet Leigh são alguns dos principais exemplos. De todo modo, estrelas ou não, atores de Hitchcock sempre parecem sonâmbulos na tela, reforçando a atmosfera onírica de filmes como Notorious (1946), Strangers on a Train e Vertigo (1958) – seu melhor trabalho.

Avesso por temperamento ao imprevisível, Hitchcock sempre cultivou a organização e a limpeza. Comportava-se de maneira conservadora, vestindo quase sempre o mesmo terno e pouco alterando o cardápio de suas refeições. Ademais, evitava confrontações sempre que possível. Quando era entrevistado, dizia invariavelmente as mesmas coisas, demonstrando elevado grau de autoconhecimento. E esse mesmo homem se especializou no ofício de chocar as platéias, provocando sensações que são, em parte, dele próprio. Soube dramatizar muito bem, por exemplo, o medo que sentia não apenas da polícia, mas de outros agentes da lei. Normalmente apresentados como burocratas insensíveis, esses tipos costumam exercer, ao lado dos vilões principais, o papel de antagonistas.

“But then of course, the Law has no sense of drama, has it?” diz Sir John Menier (Herbert Marshall), o protagonista deMurder! (1930), que soluciona o crime em questão com a ajuda de Shakespeare. No mesmo filme, um grupo de jurados debate com desleixo o caso, arbitrariamente condenando uma inocente à forca. Em Saboteur, o fugitivo encontra abrigo na casa de um sábio cego capaz de perceber sua verdadeira índole. Esse senhor também é um hábil conversationalist, que, ao ouvir da sobrinha a respeito da caçada humana, faz o seguinte pedido: “In fact, dear, would you mind not having any further quotations from the Police? Their remarks are always so expected. They kill conversation”.

Em I Confess, Hitchcock demonstra a incapacidade do sistema legal diante de intractable moral/religious conflicts. Por sua vez, os policiais aparentemente amigáveis – bem como o cumprimento mecânico dos procedimentos de detenção – em The Wrong Man (1956), tornam ainda mais humilhante – e aterrorizante – a injusta prisão de ‘Manny’ Balestreros (Henry Fonda), ainda que o filme não seja, no todo, muito bom. Tudo isso faz lembrar muito Changeling (2008), de Clint Eastwood, outro poderoso pesadelo em celulóide – embora Eastwood seja de uma solenidade opressiva que não poderia estar mais distante do estilo de Hitchcock.

Ninguém observa uma revoada – ou mesmo um simples bater de asas – da mesma maneira depois de ter visto The Birds (1963). Na maioria das vezes, Hitchcock logra estabelecer essa profunda comunhão com o espectador e isso se deve em boa parte ao domínio daquilo que ele próprio denomina “regras do suspense”, sobre as quais discorre com admirável eloqüência nas entrevistas supracitadas. O que mandam essas regras?

Como observamos, o fundamental para Hitchcock consiste em reter a atenção do espectador, custe o que custar, por meio do seu envolvimento emocional no filme. É importante não apenas criar, mas conseguir preservar a emoção, de modo que a tensão seja mantida. Na interpretação de Truffaut, o suspense seria a dramatização do material narrativo de um filme ou, melhor ainda, a apresentação mais intensa possível das situações dramáticas.[2]

Para que o suspense funcione, Hitchcock deixa bem claro, é preciso estabelecer as situações com clareza, fornecendo um conjunto de informações essenciais para a compreensão do que acontece e do que pode acontecer. O diretor sempre mencionou o exemplo de uma cena com bomba. Se ela explode de repente, sem aviso, há apenas um susto; por outro lado, no caso de uma bomba ativada, que está prestes a explodir, cria-se ansiedade. Ao falar sobre seu estilo, Hitchcock também menciona uma distinção algo rígida, apesar de importante: aquela entre suspense e mistério. Diz que não se interessa pelo segundo, parecendo ignorar o fato de que Vertigo não seria tão bom sem seu aspecto misterioso.

Hitchcock manipulava a tensão de diferentes maneiras. Às vezes, lançava mão de um red herring – i.e., algo para distrair a atenção para longe do que realmente importa. Nos filmes, isso aparece como uma situação aparentemente ameaçadora que acaba se revelando inofensiva. É o caso, por exemplo, do cachorro que surge nas escadas emStrangers on a Train. O mais usual, porém, é a criação de ameaças a partir de circunstâncias a princípio inofensivas, em plena harmonia com o desejo de criar a sensação de insegurança.

Contribui muito para isso o aspecto insólito dos locais em que se passam os filmes. Neles, afinal de contas, uma casa não é meramente uma casa, nem um trem apenas um meio de transporte; ambos são lugares onde coisas ruins podem – e, não raramente, terminam por – ocorrer. Em alguns casos, essa aparência estranha é planejada; noutros, acidental. Deve-se, por vezes, à profundidade das tomadas, à utilização da câmera “subjetiva”, ao fato de que o diretor preferia rodar seus filmes no estúdio (com o uso de diversos truques visuais) ou, finalmente, à própria trama.

Fetichista, Hitchcock retém a atenção da platéia por meio do uso de algum objeto capaz de concentrar a força dramática da narrativa: a faca tanto em Blackmail (1929) quanto em Sabotage (1936); as algemas em The 39 Steps(1935) e Saboteur; as chaves em Notorious; o isqueiro de Strangers on a Train; a aliança de Rear Window (1954).

Mas assim como John Ford, Hitchcock também entendia a necessidade de intercalar cenas de comédia e romance no meio do drama a fim de quebrar um pouco a tensão; diferentemente do primeiro, consegue fazer isso sem prejudicar a coesão narrativa. A diferença talvez tenha algo que ver com o sentimentalismo de Ford, mas não podemos nos esquecer de que romance e humor harmonizam-se naturalmente com o suspense na obra de Hitchcock, diretor de alguns dos mais belos beijos do cinema e adepto de uma abordagem essencialmente irreverente.

Em suas extraordinárias tramas, o protagonista corre perigo, mas também é elevado a um novo nível de consciência. A situação desesperadora pode melhorá-lo ou destruí-lo. Uma das possibilidades que se lhe apresentam é o amor, gerando outra típica ironia hitchcockiana: as mesmas circunstâncias que aproximaram o casal ameaçam sua felicidade. Em Secret Agent (1936), a guerra é o obstáculo. Quando o casal de espiões se reencontra na estação de trem grega, seu abraço é atrapalhado por uma cerca e pela espada de um soldado. Em Rear Window, James Stewart só percebe que realmente ama Grace Kelly no momento em que a vida dela está por um fio. Perto do fim de North by Northwest – e depois de ter escapado de alguns atentados – Cary Grant confessa a Eva Marie Saint que jamais se sentira tão vivo. Eles se despedem, pois não sabem se voltarão a se encontrar, mas as carícias são interrompidas pela buzina do agente do FBI que os avisa da necessidade de partirem para suas respectivas missões.  Em Lifeboat, existe um ódio mútuo entre a colunista de moda ‘Connie’ Porter (Tallulah Bankhead) e o mecânico comunista Kovac. Quando o bote parece prestes a afundar, no entanto, beijam-se apaixonadamente. É apenas um dos dois casais que se formam entre os nove sobreviventes que nem sequer sabem se chegarão vivos à terra firme. Eis aqui o tema da indiferença cósmica aos anseios dos amantes!

Hitchcock não teria conseguido empregar todos esses recursos em benefício de suas tramas se não houvesse dominado desde cedo as técnicas do cinema. Seu estilo se desenvolve ao longo de muitos anos e por mais que ele afirme não se interessar muito pelo conteúdo do que filmou, a consistência temática de sua filmografia salta aos olhos.The 39 Steps seria refeito duas vezes, como Saboteur e North by Northwest. A queda do avião no oceano em Foreign Correspondent sugeriria nada mais nada menos do que a trama de Lifeboat, cujo vilão absorve algo da Sra. Danvers deRebecca (1940), primeiro filme americano do diretor. Isso tudo sem mencionar que, por sua vez, o conceito de um microcosmo da guerra já havia sido tentado de forma canhestra na cena do trem em Saboteur. Como trama psicanalítica, Spellbound antecipa Marnie (1964), que inverterá os papéis de médico e paciente.

O sentimento de culpa está presente em quase todos os filmes e o duplo – com suas raízes expressionistas, católicas e vitorianas – é outro tema importante. Hitchcock sente prazer ao sugerir que todos têm um lado negro. Junto com ele, torcemos ocasionalmente pelo malfeitor e sentimos satisfação com a morte de certos crápulas – como a esposa do tenista em Strangers on a Train ou o advogado chantagista de I Confess. Como diria Bruno Anthony, “todo mundo é um assassino em potencial”. Entrementes, o diretor transita de comentários acerca das conflituosas relações entre os sexos a piadas de humor negro sobre as dificuldades de se livrar de um cadáver.

Discutir o cinema de Alfred Hitchcock, com suas virtudes e defeitos, envolve o risco de adotar uma dicotomia por demais artificial entre público e crítica. Costuma-se pensar que o diretor obteve aclamação popular durante toda a sua carreira. Nada poderia estar mais distante da realidade. Vertigo – sua grande obra-prima, o filme que coloca os demais em segundo plano – foi recebido negativamente nos cinemas.

Tragicamente, o diretor sempre ansiou por reconhecimento, não aproveitando totalmente a liberdade ensejada por sua relativa alienação. Brincando de transferência de culpa, ele responsabilizou a suposta velhice de James Stewart pelo fracasso do filme. Cary Grant, quatro anos mais velho do que Stewart, seria curiosamente chamado para protagonizar o filme seguinte, North by Northwest. Certidões de nascimento, porém, não importam, pois Grant projetava a imagem correta e Hitchcock sempre se preocupou com a verdade da tela. Além do mais, tudo isso parece muito apropriado no caso de um diretor que discutiu com muita propriedade o poder das ilusões.

As características gerais associadas à fase de transição, que vai de Rebecca a Stage Fright (1950), valem na realidade para descrever toda a filmografia do diretor, eclética e repleta de altos e baixos, às vezes num mesmo filme. Saboteurpode até carecer de coesão, mas isso não justifica sua má reputação, especialmente se levarmos em conta que seus retratos da bondade e comunhão humanas rivalizam com o melhor que já foi produzido pela literatura. Notorious, por sua vez, é melhor e mais representativo do que alguns filmes feitos pelo diretor na década de 1950.

De todo o modo, a periodização tradicional da carreira de Hitchcock tem sua razão de ser. Depois de The Birds, grande filme que se perde na escalada do horror, inicia-se o declínio derradeiro. Como muitos já afirmaram, o diretor foi ficando cada vez mais irrelevante do ponto de vista comercial. Apesar disso, nenhum dos filmes dessa época pode ser considerado particularmente ruim. Normalmente apolítico, Hitchcock fez denúncias contundentes do comunismo emTorn Curtain e Topaz (1969). Acabou classificado como “um dos cínicos mais morais de nosso tempo” por Vincent Canby do New York Times.

Family Plot (1976), último trabalho do diretor, é uma pérola, digna de ser colocada entre seus grandes filmes. Os primeiros minutos lembram os bons momentos de David Lynch, outro diretor – razoavelmente influenciado por Hitchcock – que privilegia o aspecto visual do cinema.

A influência de Hitchcock é tão multifacetada e complexa que mal podemos começar a mapeá-la. Alguns bons realizadores do passado tomaram-lhe muita coisa. É o caso de J. Lee Thompson em Cape Fear (1962) – e não apenas por causa da composição de Bernard Hermann. Por outro lado, Peter Stone bebeu da mesma fonte – com destaque para a leveza de To Catch a Thief – antes de escrever Charade (1963), dirigido por Stanley Donen e estrelado por Cary Grant, que dessa vez contracena com a adorável Audrey Hepburn.    

Roman Polanski também pode ser considerado um herdeiro, ainda que tenha superado Hitchcock como artista. Os exemplos abundam: Repulsion (1965), Le Locataire (1976), Frantic (1988) e o subestimado e incompreendido The Ninth Gate (1999). Chinatown (1974), hitchcockiano por várias razões, mas sobretudo por girar em torno do problema dovoyeurismo, supera qualquer coisa que o mestre do suspense tenha feito. Subestimar Hitchcock seria um erro, mas não podemos nos esquecer de que ele foi acima de tudo um entertainer, enquanto Polanski é um artista “mais sério”.

Todos os admiradores de Hitchcock na nouvelle vague se inspiraram em sua obra. Ecos podem ser percebidos em quase todos os thrillers de Chabrol. E La Marieé était en Noir (1968) é uma bela homenagem de Truffaut, que parece ignorar alguns dos princípios que regiam o trabalho do homenageado.

Brian De Palma, que dificilmente transcende a paródia e o pastiche, talvez seja o seu mais notório imitador. O virtuosismo de De Palma, porém, seria desprezado por Hitchcock, que, ao contrário do americano, subordinava seus elaborados set pieces à narrativa.  

O tema do homem inocente inspirou a série de suspense The Fugitive (1963-1967), transformada no início da década de 90 em um ótimo filme protagonizado por Harrison Ford. Do lado negativo, surgiu mais recentemente uma cópia particularmente infeliz de Hitchcock, o jovem D. J. Caruso. O plano geral da cidade do Québec em Taking Lives (2004) é uma clara referência à tomada semelhante de I Confess. Mais importante, Caruso atualiza – e, portanto, distorce – Hitchcock para um público cada vez mais estúpido e juvenil, haja vista suas releituras de Rear Window Disturbia(2007) – e North by NorthwestEagle Eye (2008).

Talvez a última palavra deva caber a Dario Argento em Ti piace Hitchcock? (2005). Trata-se de uma produção para a televisão que faz uma bem-humorada e inteligente homenagem a Hitchcock, com incontáveis referências a seus filmes. No final do filme, Argento sugere que o cinema não passa de uma reciclagem de velhas idéias. Difícil aceitar a tese em sua totalidade. Não obstante, quando a massa tem precedência, o maneirismo se apresenta como tentação…    

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[1] Na introdução ao célebre livro de entrevistas Hitchcock/Truffaut, o diretor francês menciona o instrutivo contraste entre um Hitchcock público, seguro de si mesmo, deliberadamente cínico e aquele Hitchcock vulnerável, sensível e emotivo.

[2] Hitchcock/Truffaut: Entrevistas. Companhia das Letras, 2004, p. 25

 

Túlio Sousa Borges é crítico de cinema da revista virtual Candango e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, edição nº 3, Junho/2009.

Desajustados: O poder transformador da bondade (por Pablo González Blasco)

Cinema | 12/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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(Fúsi -Virgin Mountain-), 2015. Diretor: Dagur Kári. Gunnar Jónsson, Sigurjón Kjartansson, Arnar Jónsson, Ilmur Kristjánsdóttir, Margrét Helga Jóhannsdóttir, Franziska. 94 min.

desajustadosEncontrava-me almoçando com um jovem colega no restaurante dos médicos do hospital quando me abordou um outro médico. Hesitou, olhou o meu nome bordado no avental, certificou-se de que era eu a pessoa que ele suspeitava. Apresentou-se, e rapidamente entendi de quem se tratava. Tínhamos trocado e-mails, escutei-o falando no rádio e até mandei uma mensagem ao programa. Mas era a primeira vez que nos víamos ao vivo. “Que coincidência -disse-me. Estava pensando em lhe pedir para escrever uma dessas suas críticas de filmes para colocá-la no nosso site de Slow Medicine”. Sugeriu-me algum filme, mas subitamente “Desajustados” veio à minha mente, e lhe fiz saber: “Boa ideia. Veja como consegue atrelar o filme aos nossos princípios”.

Naquele momento eu não tinha nenhuma ideia racional de como conectar este filme singular com a prática da medicina artesanal, centrada no paciente, que visa qualidade de vida e não apenas resolver problemas que, dito de passagem, muitas vezes não tem solução. Uma medicina que transpira humanismo; essa é a conexão entre o colega e eu, pois temos posturas profissionais semelhantes, e tentamos -com muito esforço e modesto sucesso- fazer escola, divulgar essa atitude médica. Mas encontrei um bom motivo para comentar -pare refletir escrevendo, que isso são as crônicas de cinema- este filme Islandês que me marcou e me deixou pensando. E me desafiando, porque não encontrava o fio certo para costurar as reflexões que despertou em mim.

Desajustados - 2

A intuição funcionou, porque a partir desse momento, um compromisso tranquilo, sem stress, no ritmo da Slow Medicine, as ideias começaram a surgir, a conexão tomou forma. A figura do bom gigante islandês, assumiu proporções ainda maiores; não físicas, mas de estatura interior, de categoria humana, desenhando-se o que o título deste filme em espanhol representa:Coração gigante. Melhor e mais profundo do que a versão em inglês, Virgin Mountain que é tremendamente simplificador. O título original, em islandês, é simplesmente o nome do protagonista, Fúsi, como indicando que esgota a sua espécie, que é único e singular. Tal como ensina a boa teologia acerca dos anjos. Neste caso, um anjo imenso de traços vikings.

Fúsi é um homem enorme, na casa dos quarenta, que vive com a mãe, e tem alma de criança. Trabalha no aeroporto, serviço externo de apoio, que significa descarregar malas do avião e coloca-las na cinta transportadora. Em silêncio, em ritmo pausado e eficaz, sem nunca faltar ao serviço. Tem prestígio entre os colegas, embora não parece ligar para isso. Aliás, desperta inveja e sofre perseguições, tudo provocado pela sua bondade contundente, por uma ingenuidade que insiste em acreditar, quase infantilmente, na boa vontade do ser humano. Como se não houvesse paixões e mesquinharias à solta. Mas também não se importa com isso: é indiferente a elogios e acossamentos. O supervisor preocupa-se e o convoca no escritório: “Ouvi dizer que está sofrendo bullying”. “Penso que não” responde com simplicidade. É como se esta gigantesca figura carrega-se a própria atmosfera, alheio às turbulências do ambiente.

Fúsi é a criança grande que brinca com figurinhas, percebe as necessidades dos outros, encontra tempo -e dinheiro! – para dedicar-se a eles, está atento a todos e a tudo. Sem fazer barulho, com um low profile circundado pela bondade que transpira por todos os poros. Uma personificação real de como a bondade é capaz de cuidar -e de mudar- as pessoas, os que se aproximam dela. “É preciso afogar o mal em abundância de bem” -dizia um santo contemporâneo. E outro, o místico de Castela no século XVI, assinalava algo semelhante: “Onde não há amor, coloquemos amor, e obteremos amor”. Porque, no final, parece que é isso o que conta, o saldo de uma vida produtiva: “No outono da nossa vida seremos julgados pelo amor”, em palavras do mesmo autor.

Desajustados - 3Diariamente comprovamos, em nós e nos outros, como a vida corrida, a febre pela produtividade, a competição e as comparações -com o vizinho, com o colega, com o familiar- geram permanente inquietude e rendem susceptibilidades doentias. Reclamações e queixas, reivindicações inúmeras e, na prática, pouca resolutividade e ausência completa de preocupação real pelos demais. Neste cenário, uma figura como o nosso protagonista, que apresenta sustentabilidade anímica e transita incólume diante dos nervosismos espasmódicos, é algo invejável que faz pensar. E da inveja nasce a emulação, que é o lado bom da inveja: querer imitá-lo. Um modelo possível, não uma quimera filosófico-teórica.

Volto ao começo destas linhas e ao desafio da Slow Medicine e da minha intuição em ligar o modelo médico com este filme. O ritmo lento, a serenidade, o não querer fazer muitas coisas, mas fazer muito bem o que se decide levar a cabo. E vejo a figura do gigante Islandês assumindo este papel com naturalidade. A densidade serena de Fúsi, que funciona como solução tampão para os problemas -ácidos e básicos- da nossa vida agitada. Com lentidão, sem ânsias de produtividade, a modo de uma turbina que gera milhões de watts de bondade, e ilumina o ambiente.

Desajustados - 4A bondade, como o nosso almejado estilo médico, também é artesanal. Como a das mães pacientes, a das avós que parecem terem tempo para tudo, ou melhor, tempo para o que interessa que nunca é o interesse próprio, mas o benefício dos outros. Lembrei da minha avó que gostava do pescoço e de asa do frango -o que facilitava a divisão na partilha da ave, sobrando o melhor para os outros. Depois descobri que esse gosto não era privilégio dela, mas de todas as avós, e das pessoas que tem o saudável hábito de pensar sempre nos demais.

Por contraste, também lembrei de uma história antiga de um colégio interno, que nuca soube se era verdadeira, mas é muito esclarecedora. Certo dia, um dos alunos teve durante o almoço uma crise epiléptica e teve de ser levado até o hospital. Na hora em que o retiravam, ouviu-se uma voz: “O bife dele é meu”. Desconcertante, instigante e revelador. O colega cruel exprimiu de modo cru o que talvez muitos outros pensavam e desejavam. Uma metáfora grosseira de atitudes que contemplamos diariamente. E até nos vemos envolvidos nelas. Tal é a condição humana. Não sei se somos lobos para os outros homens, como Hobbes dizia, mas aproveitar o bife sobrante é tentação presente. Fúsi nos faz entrever justamente o contrário e nos encanta com a atitude de quem voluntariamente cede o bife a quem está cego pelo próprio egoísmo. No final, o lucro é de quem soube ceder, sem queixar-se, colocando boa cara ao mau tempo, porque aliás não tem tempo ruim para ele. Um modelo invejável.

Desajustados - 1Mas o que tem a ver com tudo isto a medicina artesanal? Como conectar Fúsi com o humanismo médico que é, afinal, a nossa praia? Simplesmente com o exemplo de que é possível ser uma máquina geradora de bondade, serena, eficaz, que cuida das pessoas. Um exemplo possível, que se vê e se toca, que é do que carecemos hoje. Minha irmã, professora de filosofia costuma dizer-me: “O que você faz é simplesmente lembrar aos médicos aquilo que 70 anos atrás faziam, e acabaram esquecendo”. Difícil conseguir uma melhor definição com menos palavras.

O exemplo incarnado em alguém é capaz de acordar a lembrança, e assim formar as atitudes, solidificar a missão, promover a vontade de fazer um mundo melhor. Porque essa atitude -não apenas na medicina, mas na vida – não é coisa que se ensine com treinamentos de qualidade, projetos inúteis de humanização, quando há uma absoluta carência de exemplos. E o exemplo estimula e faz sonhar, porque os sonhos -como os de Fúsi- também fazem parte da educação. “Se você quer construir um navio, não chame as pessoas para juntar madeira ou atribua-lhes tarefas e trabalho, mas sim ensine-os a desejar a infinita imensidão do oceano” -dizia Saint Exupéry. No mundo corporativo, estamos saturados de cursos para cortar madeira, com certificações internacionais de qualidade e protocolos, e até algumas pitadas de liderança. Mas faltam exemplos. O exemplo do dia a dia, da turbina de bondade.

Desajustados. Esse é o título em português. Incomodou-me no início, porque não representa nada do que os outros títulos se atrevem a vislumbrar. Decidi ignorá-lo como mais uma infelicidade das nossas traduções, uma longa tradição que bateu o recorde com The Sound of Music, grotescamente traduzido por Noviça Rebelde, maculando um dos maiores musicais da história e indispondo-nos com a magnífica Julie Andrews que nem noviça era. Mas após esta reflexão escrita penso que o título até se encaixa. Sim, desajustados é o novo parâmetro para medir-nos a nós mesmos. Nós é que somos os desajustados, não o Fúsi. Ele é o exemplo contundente, o gold standard -por usar um termo que os médicos adoram- ao qual teremos de nos adaptar se queremos fazer a diferença. Com a Medicina, e com a própria vida.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/08/16/desajustados-o-poder-transformador-da-bondade/

[resenha de filme] “Ponte dos Espiões”: A sedutora criatividade do cumprimento do dever (por P.G. Blasco)

Cinema | 08/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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Bridge-of-spies-204x300

“Bridge of Spies” (2015)
Diretor: Steven Spielberg.
Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Alan Alda.
141 minutos.

Entrou em cartaz [no ano passado] sem estardalhaço nenhum. No jornal, não encontrei estrelas qualificando o filme. Surge sem fazer barulho, em low profile, como o advogado protagonista, Jim Donovan, nesta magnífica história contada pelos irmãos Cohen, e magistralmente orquestrada por Spielberg. Bastam esses nomes para dispensar qualquer necessidade de propaganda. Fui atrás do filme e assisti duas vezes, no intervalo de um par de semanas. Senti uma necessidade imperiosa de apreciar, de saborear, a historia, o modo de contá-la e, naturalmente, a interpretação soberba de Tom Hanks.

A dupla Spielberg-Hanks é um arco voltaico de potencia superior. Vale lembrar O Resgate do Soldado Ryan, um dos filmes que mais me marcaram, um verdadeiro sonho de consumo em educação. Lá se mostra como é possível formar a vida de um homem, norteando seus próximos 40 anos, com uma frase –acompanhada do exemplo heroico- pronunciada in artículo mortis: “James, faça por merecer”. Frase esta, que escolta o jovem James Ryan todos os dias da sua vida, reflete sobre ela, lhe faz ajustar seu comportamento ao gabarito que lhe foi sugerido. Impactante. Emociono-me cada vez que a vejo, o que acontece com bastante frequência, por conta de conferências e seminários nos quais estou envolvido profissionalmente.

É fato conhecido a habilidade que Spielberg tem para mergulhar em histórias reais e injetar nelas humanismo. O fato histórico torna-se palatável, próximo, personalizado, como fazem os bons escritores de romances históricos e de biografias. A História, fria e distante, é iluminada com a presença de personagens de carne e osso, que carregam consigo tudo o que acompanha o quotidiano do ser humano: dilemas, medos, sofrimento, heroísmo, entusiasmo, júbilo. As suas produções – A Lista de Schindler, Amistad, por dar exemplos- rodeiam-se de possibilidades humanas, também de arte e poesia, o que lhes faz transpirar ensinamentos. É um humanismo plasmado em celuloide, que educa, ensina, eleva o espectador.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente no site de Pablo González Blasco, link <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/12/20/ponte-dos-espioes-a-sedutora-criatividade-do-cumprimento-do-dever/>. Acesso em 07/04/2016.

[resenha de filme] "Ponte dos Espiões": A sedutora criatividade do cumprimento do dever (por P.G. Blasco)

Cinema | 08/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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“Bridge of Spies” (2015)
Diretor: Steven Spielberg.
Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Alan Alda.
141 minutos.

Entrou em cartaz [no ano passado] sem estardalhaço nenhum. No jornal, não encontrei estrelas qualificando o filme. Surge sem fazer barulho, em low profile, como o advogado protagonista, Jim Donovan, nesta magnífica história contada pelos irmãos Cohen, e magistralmente orquestrada por Spielberg. Bastam esses nomes para dispensar qualquer necessidade de propaganda. Fui atrás do filme e assisti duas vezes, no intervalo de um par de semanas. Senti uma necessidade imperiosa de apreciar, de saborear, a historia, o modo de contá-la e, naturalmente, a interpretação soberba de Tom Hanks.

A dupla Spielberg-Hanks é um arco voltaico de potencia superior. Vale lembrar O Resgate do Soldado Ryan, um dos filmes que mais me marcaram, um verdadeiro sonho de consumo em educação. Lá se mostra como é possível formar a vida de um homem, norteando seus próximos 40 anos, com uma frase –acompanhada do exemplo heroico- pronunciada in artículo mortis: “James, faça por merecer”. Frase esta, que escolta o jovem James Ryan todos os dias da sua vida, reflete sobre ela, lhe faz ajustar seu comportamento ao gabarito que lhe foi sugerido. Impactante. Emociono-me cada vez que a vejo, o que acontece com bastante frequência, por conta de conferências e seminários nos quais estou envolvido profissionalmente.

É fato conhecido a habilidade que Spielberg tem para mergulhar em histórias reais e injetar nelas humanismo. O fato histórico torna-se palatável, próximo, personalizado, como fazem os bons escritores de romances históricos e de biografias. A História, fria e distante, é iluminada com a presença de personagens de carne e osso, que carregam consigo tudo o que acompanha o quotidiano do ser humano: dilemas, medos, sofrimento, heroísmo, entusiasmo, júbilo. As suas produções – A Lista de Schindler, Amistad, por dar exemplos- rodeiam-se de possibilidades humanas, também de arte e poesia, o que lhes faz transpirar ensinamentos. É um humanismo plasmado em celuloide, que educa, ensina, eleva o espectador.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente no site de Pablo González Blasco, link <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/12/20/ponte-dos-espioes-a-sedutora-criatividade-do-cumprimento-do-dever/>. Acesso em 07/04/2016.