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[FILME] “O Mestre dos Gênios” – Um convite ao renascimento da comunicação (por Pablo González Blasco)

Cinema | 19/11/2016 | | IFE BRASIL

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O mestre dos gênios - capaFILME: “Genius”. 2016. 104 min. Dir: Michael Grandage. Colin Firth, Jude Law, Nicole Kidman, Laura Linney

Já me disseram -várias vezes- que os meus comentários de filmes são excessivamente longos. Sim, dizem, são interessantes, destilam conteúdo, mas nem sempre o leitor se anima com tudo o que você escreve. Quem sabe, algo mais curto, direto, objetivo. Afinal, o que as pessoas querem é uma recomendação específica de um bom filme para assistir. Não estou muito convencido de ser esse o meu papel, recomendar filmes. Nunca pretendi ser um crítico de cinema; vejo-me mais como quem pensa em voz alta e escreve as reflexões que um filme proporciona, os desdobramentos. Mesmo assim, é bom seguir os conselhos dos amigos.

Este filme notável brinda-me a ocasião de inaugurar um estilo de comentários mais palatáveis. Não sei quanto vai durar este propósito porque, afinal, para essa conquista -a síntese enxuta das palavras é uma verdadeira conquista- eu precisaria de um editor. Como o protagonista que aparece neste filme de época. Um editor em estado puro: Max Perkins, que enxuga, corta sem piedade páginas e páginas, muda títulos, mesmo não sabendo se com isso transforma os livros em algo melhor ou, simplesmente, em algo diferente.

O mestre dos gênios - 2E as vítimas das suas correções -a mágica do editor- não são outros que Hemingway, F. Scott Fitzgerald e, em primeiro plano, Thomas Wolfe. Jude Law dá vida à personagem do escritor prolixo, uma enxurrada de ideias e palavras, sensações e magníficas descrições estéticas de pessoas e sentimentos. Todas são necessárias -no seu entender- até que caem sob a guilhotina impiedosa de Perkins, incarnado por um Colin Firth em estado de graça.

Escrever não é fácil. Editar o que outro escreveu se me apresenta como muito mais difícil. Eu mesmo não consigo cortar meus textos, e tenho de recorrer aos editores-jornalistas quando me solicitam entrevistas por escrito. Difícil dizer o que tem de ficar, o que deve sair, o que pode mudar e como reduzir vários parágrafos a quatro ou cinco linhas magicamente editadas. Aos que nos atrevemos a escrever pode nos acontecer como a Thomas Wolfe: a cachoeira de ideias, sonhos, pensamentos, embaçam a escrita, desfocam o objetivo. Como se a multidão de árvores nos impedissem de ver o bosque. É preciso de uma poda criteriosa, para que a paisagem aparece diáfana.

O mestre dos gênios - 5Não. Não é fácil escrever, nem bastam as melhores intenções. O recente prêmio Nobel de literatura, adjudicado a Bob Dylan, rendeu um magnífico comentário de um escritor consagrado, o cubano Leonardo Padura. Vale a pena ler com vagar seu texto, e pensar o que significava para Hemingway -que também aparece no filme- mudar quarenta vezes o final de um romance, porque não encontrava a ordem adequada das palavras. E muitos outros exemplos lá citados, assim como a perplexidade dos escritores diante do prêmio da academia Sueca.

Se escrever não e fácil, a mágica da edição parece-me muito mais difícil. Talvez porque requer habilidades específicas que, claramente, eu não possuo. Meu amigo Albert foi durante muitos anos editor associado de uma importante revista médica Americana. Sempre que nos encontramos e passeamos por Washington, surpreende-me a facilidade com que usa as palavras, sem nenhum pedantismo, com elegância comedida e convidativa. Falando com ele, ou vendo o que ele escreve numa simples resposta a um e-mail, sempre tenho a impressão de como a expressão é algo simples, e ao mesmo tempo, tão difícil de encontrar. A palavra certa, le mot juste, dizia, se mal não lembro, Flaubert.

O mestre dos gênios - 6Albert diz que os editores são limpadores de janelas: deixam o vidro transparente para que brilhe a luz do escritor-autor. Até o exemplo é simples, quase simplório. Mas, na prática, como é difícil limpar as janelas, e desaparecer sem fazer barulho. Porque um bom editor sempre desaparece, para que o escritor se projete. Vidros limpíssimos, sem marca pessoal. Se o vidro se transformasse em espelho – o editor estrela- o resultado é catastrófico. Talvez por isso, a postura do editor mistura de modo único uma atitude decidida e enérgica com um respeito que é quase veneração pelo material que lhes chega às mãos.

Isso me comentava outra amiga, que além de editora é escritora e poeta. Johanna, assim se chama, utiliza um inglês elegante e ao mesmo tempo compreensível, porque desempoeira termos de raiz latina, e te surpreende com a claridade. “Sempre trato com muito respeito os textos que me chegam, quando quero ajudar os outros a se expressarem. Um respeito que aumenta quando sei que eles escrevem numa língua que não é a deles”. Esse foi o delicado comentário que acompanhava a correção do primeiro artigo que publiquei em inglês, após maravilhar-me com a forma que ela conseguiu dar à minha escrita tosca. Pedindo licença, é claro, para ver se eu concordava com as mudanças!

O mestre dos gênios - 7Comentando sobre o filme com outro amigo, leitor voraz, me fez chegar uma entrevista onde a escritora e jornalista Janet Malcolm descreve o trabalho do seu marido, Gardner Botsford, que era seu editor na revista The New Yorker. Utilizando as palavras que ela mesmo disse no funeral de Botsford, Malcolm relata como ele cortava, marcava, sublinhava sem piedade os textos da escritora. E o resultado era algo romântico, como um quadro que emergia, ou uma ária de ópera, enfim, uma obra de arte. “Sinto-me desamparada sem ele. Como é difícil escrever sem este apoio”. Naturalmente, enviei a entrevista para Albert, e a recomendação do filme que nos ocupa e do qual quase nada comentamos.

Na verdade, há pouco que comentar. Sigamos o exemplo de eficaz low profile dos grandes editores, e apontemos: um belíssimo filme, uma interpretação magnífica, em todos os registros. Uma experiência estética, que começa visualmente e se desdobra num apetitoso convite para ler, e mergulhar no mundo dos livros. Quem sabe esse é o primeiro passo para tentar escrever.

O mestre dos gênios - 8As pessoas cada vez escrevem menos, e escrevem pior. Emitem grunhidos e interjeições nas redes sociais, veiculados em alta tecnologia e velocidade supersônica, mas numa linguagem equiparável aos seres pré-históricos. Também não leem, passeiam os olhos pelas telas e pensam estarem informados. E quando o espasmo da emoção lhes alcança, tem de fazer uso de emoções fast-food, congeladas em forma de “emoticons”, para dar a entender o que sentem, embora também não tenham muita certeza. Uma penúria cultural lamentável. O que um editor teria a fazer com esse menu de expressões? Nada sobraria, seria uma debacle com sabor bárbaro, como a queima da biblioteca de Alexandria.

Quem sabe se este filme, como um convite a um renascimento da comunicação humana, pode frear -nem que seja em pequena medida- o analfabetismo digital que nos rodeia, e nos embrutece. Mesmo sendo –como dizia um famoso professor de filosofia – um analfabetismo bilíngue ou trilíngue.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em http://www.pablogonzalezblasco.com.br, em 15/11/2016.

Diário de Oxford

Opinião Pública | 28/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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Recentemente, fui para Oxford. “Turismo acadêmico”, até porque, por ali, toda academia é um ponto de visita para os curiosos e de estudo para os privilegiados: Merton, Queen’s, University, All Souls, Trinity, entre tantos outros colleges que encantam os visitantes e os estudantes por sua beleza arquitetônica e pela harmonia estética gerada pela conjunção dos edifícios com os vastos bosques e alamedas. Na cidade, não há um campus para sua universidade. Nem precisaria: a cidade inteira é o campus de sua universidade.

Há muitos pubs e livrarias. E, curiosamente, uns mendigos perdidos aqui e ali. Sempre exibindo um sorriso etílico e agarrados a um opúsculo, uma espécie de companheiro silencioso no último reduto em busca de uma vida ainda não vivida. Deve ser o resultado colateral do alto grau de concentração daqueles estabelecimentos naquela urbe milenar.

Num domingo de sol, depois de uma visita na biblioteca da universidade e de um pit stop num pub, resolvi dar o ar da graça na mais importante livraria de Oxford, a Blackwell’s. Passei pelo primeiro piso e deparei-me com a seção das obras mais vendidas. Como faço por aqui, ignorei solenemente aqueles pratos de lentilha editorializados. Dei um pulo no último piso, onde estavam as obras técnicas, e, depois, desloquei-me até as catacumbas daquela cave literária. Meu coração disparou de excitação.

Sem qualquer traço de poeira ou de umidade e iluminada como um grande magazine, lá, com algum tempo e sede bibliófila – afinal, a sede fisiológica já tinha sido saciada – comecei a fuçar nas obras usadas para venda. A maioria gozava de um excelente estado de conservação, a causar inveja para muitas de nossas bibliotecas públicas. E até mesmo para a minha modesta coleção de livros, sempre a ocupar um crescente “espaço vital” aqui em casa, para o desconforto de minha esposa.

Puxei um volume, com quase noventa anos, cuja lombada impressionou-me. Uma verdadeira pérola artesanal. Contudo, ao abrir a folha de rosto, fiquei mais impressionado ainda com o teor do texto, escrito à mão numa caligrafia irretorquível: “Este livro foi roubado de Mr. Adams”. Ri alto. Uma verdadeira pérola criminal. Digna de um ladrão de casaca. Depois do fato, encomendei umas obras usadas e fui embora.

No fundo, livros não têm donos. Sempre acreditamos que nada pode nos separar de nossos livros. Quando manuseio um de meus livros usados e vejo nele os nomes de seus donos sucessivamente, só posso concluir que, tenho roubado-o ou não, sou uma espécie de guardião temporal e que o fato dele estar sob minha custórdia, lícita ou ilícita, é meramente um breve episódio em sua longa história de vida.

Nunca roubei um livro. Ao menos se roubar significa tomar com a intenção de tirar permanentemente. Mas tenho uns livros “quase” roubados aqui na biblioteca, pois não foram devolvidos ainda. Em minha defesa, invoco o total desapego deles e a completa perda de contato com seus “futuros” antigos donos.

Para minha sorte, a maior parte deles mora no Exterior e não lerá essa minha encabulada confissão. Já para a outra, convém desligar meu celular e tirar a bateria do telefone fixo por uns dias. Só não espero acordar com um oficial de justiça na porta e na posse de um mandado de busca e apreensão.

Desconfio que a consciência dos bibliófilos é um tanto elástica moralmente. Eis um bom assunto para tratar na minha próxima direção espiritual. Enquanto isso, passo a rascunhar minha desculpa: “Roubar um livro não é um roubo, desde que não seja vendido depois”. Bentham iria gostar dessa. Ou: “Como, humildemente, não sou a conclusão suprema que um livro, com décadas de vida, almeja ter, logo, por não ser seu dono, não posso ser acusado, por minha consciência moral, de ser um ladrão”. Sócrates concordaria comigo.

Não será uma tarefa difícil. Afinal, é fácil revelar as intenções dos outros, como a do ladrão da Blackwell’s, quando elas são idênticas às nossas. Ou se parecem em muito. Mas o pior está por vir. Com a patroa, precisarei negociar mais “espaço vital“ para as obras encomendadas em Oxford, o que sempre significa um duelo de visões: onde eu vejo uma unidade orgânica, ela enxerga uma ameaça à habitabilidade do lar.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 28/09/2016, Página A-2, Opinião.

 

A menina que roubava livros: um amor forte como a morte (por Pablo González Blasco)

Cinema | 29/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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A menina que roubava livros (The Book Thief). Diretor: Brian Percival. Sophie Nélisse, Geoffrey Rush, Emily Watson, Nico Liersch, Ben Schnetzer. 131 min. (2013)

book_thief_capa     O título me entusiasmou. Não pelo ato de roubar –como se verá, a menina apenas empresta os livros-  mas pelo objeto do furto. Em tempos onde a corrupção trafega  solta, e criam-se nomes pomposos para disfarçar o que é roubo descarado, fazer dos livros objeto do desejo é, no mínimo, um ponto positivo. As pessoas vão atrás do dinheiro, do poder, da fama. A garota arrisca a pele por conta dos livros.

A protagonista é Liesel, filha de uma mulher perseguida pelo governo alemão durante a segunda guerra. O serviço social germânico, sempre eficiente, confia a garota a um casal sem filhos: Emily Watson e um soberbo Geoffrey Rush, que melhora sua performance a cada filme. Essa é a pista de decolagem para um filme que é um belíssimo ensaio sobre a finitude e o amor.

book_thief_2     A finitude corre por conta do narrador –que é a própria morte, que todos vamos encontrar algum dia, questão de tempo. E o cenário é desenhado num aldeia da Alemanha, durante a guerra. As atrocidades do nazismo, o holocausto, a perseguição implacável –elementos que poderiam ser lugar comum- resultam aqui decorados justos para um mergulho antropológico de maior profundidade.

O amor transborda das personagens principais: Liesel, o amiguinho Rudy, Max, Hans, Rosa (abrandando aos poucos uma dureza que não é real), e se espalha contagiando os outros. Assim vão sendo apresentadas pessoas normais, de bom coração, que amavam sua pátria, que discordavam da política fanática do nacional socialismo, que trabalhavam honestamente, e cuidavam uns dos outros. E até garotos que admiravam Jessie Owen, e pintavam de preto a sua cara na hora de competir em alguma corrida no colégio. Um desaforo total para a raça ariana! Não eram apenas os oficiais da Operação Valkíria –ótimo filme, que revi recentemente- os únicos dissidentes da política do III Reich. Finitude e  amor; um amor que é forte como a morte em palavras da Bíblia (neste caso a frase é apropriadíssima), e por isso consegue oferecer o contraponto adequado neste poema encantador impresso no celuloide.

book_thief_1     Liesel não sabe ler mas intui que há algo nos livros que lhe pode trazer respostas para a sua vida dolorida. Hans ensina a ela as primeiras letras –literalmente falando- e Liesel embala nos livros, nas palavras que anota nas paredes do porão. Max, o refugiado que a família esconde, é o outro catalisador intelectual da menina, que não mais consegue parar de ler. E entre palavras estampadas e livros, lidos e relidos, aflora a camaradagem, a amizade sincera, a ternura firme e comovente, que destila de quem vai conformando sua alma com a sintonia dos seres humanos que enchem as páginas dos livros. “Você lembrou eles que somos humanos, lembrou-lhes da humanidade que parecem haver perdido” –explica Max para a menina, surpresa das reações irracionais dos soldados.

“As palavras são vida; a memória é como o escriva da alma dizia Aristóteles”. É Max, em suas lições a meia luz no porão úmido e frio. Lembrei de Borges que continuava comprando livros, mesmo cego, porque precisava rodear-se da sua amável presença. Precisava tocá-los, cheirá-los, aconchegava-se com eles.

book_thief_4     Os livros nos permitem digerir as experiências vitais. São como a lente através da qual visualizamos o sentido do nosso acontecer vital. Interlocutores, professores talvez,  que traduzem, na linguagem da alma, as vivências que nos inundam. Essa é a grande diferença que a leitura proporciona: somente quem dialoga com a cultura que lhe precedeu, com aqueles que descrevem os perfis das gentes, é capaz de entender a sua própria vida. Os que não leem, vivem sem perceber, não acumulam experiência, carecem de sabedoria: não por falta de matéria prima, mas por não trabalhá-la no forno lento que a leitura proporciona.

book_thief_5     Vivemos numa sociedade rápida, on line. Estamos informados, sabemos o que acontece no mundo em intervalo de segundos; mas nos assemelhamos a um cego em tiroteio: falta talento para saber realmente o que está acontecendo, para interpretá-lo e formar critério próprio. Abdicamos de ter opinião e nos contentamos em repetir o que se diz nas redes sociais. Já dizia um amigo que a internet –de inegável ajuda e possibilidades magníficas- é como parede de banheiro: cada um escreve o que bem entende, e nem sempre com bom gosto. Nos é brindada a possibilidade de descarregar todo tipo de arquivos visuais, auditivos, até de texto. Mas não lemos. Damos uma vista d’olhos, sabemos de que vai a coisa, nos colocamos ao dia, e tocamos a vida, quer dizer, passamos para os seguintes arquivos –tem milhares na fila- ou simplesmente os estocamos.

Meu avó dizia que Hitler perdeu a guerra por não ter lido história, pois cometeu o mesmo erro de Napoleão, ao enfrentar o general inverno na Rússia. Eu acrescentaria que nem história, nem literatura, já que Tolstoi cantou a péssima jogada –a de Napoleão, se entende- de modo solene em Guerra e Paz. A retirada estratégica do Marechal Kutuzov depois da batalha de Borodino, deixando os franceses esgotar-se sem adversários visíveis, teve seu remake versão III Reich, em Stalingrado. Leio nestes dias um artigo de  quem foi presidente da Georgia, comentando as intenções imperialistas do camarada Putin na Crimeia: “nos anos 30, os alemães invadiram a Tchecoslováquia alegando que tinham de proteger a população germânica que lá morava”. Sem história, sem literatura, somos neófitos vitais, nos deslumbramos com as coisas que acontecem, sem reparar que a humanidade recicla as histórias, pois é próprio da condição humana.

book_thief_3     Tomei conhecimento há pouco, por motivos profissionais, de uma espinhosa questão familiar. Parece que a mãe de família desconfiava de uma conduta imprópria do marido, e ninguém queria tocar no tema, para evitar incômodos. “Ela já sabe –disse eu. Veja o último filme da Meryl Streep,Álbum de família. As mulheres sabem de tudo antes de que se comente com elas”. Dias depois fiquei sabendo que minha apreciação era correta. Lembrei de “A Idade da Inocência”, o romance de Edith Wharton onde a “inocente protagonista” está por dentro de tudo.

Enquanto escrevo estas linhas, acodem a minha mente multidão de exemplos que estavam dormidos na memória. Nem lembrava deles, mas estavam lá. Basta uma faísca para eles acordarem; e vir em auxilio do raciocínio, esclarecendo a situação que se contempla e que alguém, séculos atrás, descreveu com pasmosa semelhança num romance, ou abordou com genialidade num ensaio. Dizem que a cultura é o que sobra quando se esqueceu tudo. Na verdade, não se esquece; permanece adormecida, mas à espreita do momento vital.

book_thief_6     Filmes e livros que nos ajudam a entender a vida. A nossa própria vida primeiro, para aventurar-se depois na vida alheia. É a comunidade dos homens contando suas histórias, aprendendo com elas. Assim faziam aquelas personagens –vai mais um dos exemplos que não consigo segurar- no país dos homens-livros, o surpreendente filme de François Truffaut, Fahrenheit 451. Essa é a temperatura na qual arde o papel. E os bombeiros, ao invés de apagar incêndios, colocam fogo….nas bibliotecas. É proibido ler, ter livros é crime. Um bombeiro –parente da nosso Liesel talvez- cai na tentação, guarda um livro, começa a ler…..No país dos homens livro, os habitantes sabem de cor as obras clássicas, e os velhos contam-nas para os jovens, para assim perpetuar a cultura. Pessoas que trocaram seus nomes pelos livros que contam: O Príncipe, Orgulho e Preconceito, o Pickwick de Dickens, Esperando Godot, Alice no Pais das Maravilhas, a República de Platão.

Fosse apenas para despertar o gosto para a leitura –essa sim é uma necessidade a ser criada, uma adição altamente recomendável- já valeria ver a fita. Contudo, o filme é muito mais do que isso. É o amor que, embalado nos livros e nas palavras, contorna a finitude, faz viver uma vida plena, para saber termina-la com o espírito repleto de paz.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/03/21/a-menina-que-roubava-livros-um-amor-forte-como-a-morte/

Literatura em tempos áridos

Literatura | 24/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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Meu gosto pela literatura começou cedo. Lá pelos dez anos já devorava as obras do Verne e do Doyle da mesma maneira como meus filhos adotados comeram o primeiro prato deles fora do abrigo no dia em que fomos lá buscá-los definitivamente. Depois, por influência de um amigo, o Renato, já na adolescência, comecei meu namoro literário com Cervantes, Shakespeare, Victor Hugo, Tolstoi e Dostoievski. No mesmo período, tive uma namorada, a Daniele, com quem troquei cartas de amor por longos dois anos e muitas brigas literárias entre Machado, Pessoa, Guimarães Rosa e Camões.

Já na faculdade, uma grande amiga, a Christianne, foi uma espécie de catalisadora de releituras daqueles autores e o Roberto, outro amigo, introduziu-me ao mundo de Eliot e Dickens. Mais tarde, minha esposa apresentou-me, depois de muita relutância e de um longo almoço com amigos em que fiquei calado por conta de minha ignorância no assunto, à literatura de Tolkien. Depois, também com ela, entendi melhor o universo feminino com Austen e, por culpa da literatura, em nossa suíte, não existe televisão: ajuda na vida de diálogo conjugal, propicia conversas literárias e alimenta, digamos assim, uma saudável libido sexual. E, há algum tempo, para fazer um trabalho acadêmico, li Homero e, recentemente, detive-me com Faulkner, Borges e Carpeaux.

Foi um longo caminho. Aliás, continua sendo. Porque a literatura, para mim, no seio do universo da educação, abarca toda a experiência humana, a ponto de a refletir e contribuir decisivamente para modelá-la e que, por isso mesmo, deveria ser patrimônio de todos, já que se trata de um atividade que se alimenta no fundo comum da espécie. Mas, hoje, a literatura, como ferramenta pedagógica, reduziu-se a um mero entretenimento escapista da realidade, como uma espécie de droga “injetável” intelectualmente.

Sei que as estatísticas dizem que nunca foram publicados e vendidos tantos livros no mercado editorial. O problema surge quando, não satisfeitos com os confortáveis números sobre publicações e vendas de livros, que parecem garantir a perenidade da literatura, espiamos atrás das roupagens numéricas e descobrimos uma realidade muitas vezes deprimente. Com raras exceções, quase ninguém mais acredita que a literatura sirva para muita coisa, salvo para não se entediar demais no ônibus ou no metrô (nos consultórios, ela já foi expulsa pelas revistas semanais de celebridades) e para, se a indústria do entretenimento puder ter muito lucro, que se tornem ficções cinematográficas.

Assim, a literatura assumiu uma faceta “light” — noção que é um erro traduzir por leve, pois, na verdade, apesar das exceções, quer dizer irresponsável e, frequentemente, nada instrutivo. Por isso, alguns renomados críticos acreditam que a literatura já morreu e excelentes romancistas proclamam que não voltarão a escrever tão cedo. Pudera. Essa postura “light”, no fundo, encobre a intenção de transformar a literatura numa espécie de mecanismo de indolência espiritual relaxada, a fim de possibilitar ao indivíduo uns momentos agradáveis, imergindo-o na irrealidade e emancipando-o da sordidez cotidiana, do inferno doméstico ou da angústia econômica.

A apreensão de uma obra literária exige ativa participação do leitor, esforço de imaginação, além de complicadas operações de memória, associação e criação, bem ao contrário da proposta da literatura “light” que, na melhor das hipóteses, torna seus leitores mais preguiçosos e mais alérgicos a uma leitura que exija deles esforço intelectual.

Posso afirmar que toda essa literatura “light” não ajuda – nem remotamente – a entender o labirinto da psicologia humana tanto quanto os romances de Dostoievski ou os mecanismos da vida social tanto quanto as obras de Tolstoi ou os abismos da miséria tanto quanto as obras de Shakespeare e os ápices da beleza tanto quanto nas obras de Homero. Um livro inteiro dessa literatura “light” não é capaz de ensinar tanto quanto alguns capítulos das sagas literárias da maioria dos autores já citados são capazes de fazê-lo.

Eu não seria como sou, nem acreditaria no que acredito, nem teria as dúvidas e as certezas que me fazem viver sem esses autores e muitos outros aqui não mencionados. As obras desses escritores modificaram-me e modelaram-me e, a cada releitura, ainda continuam me modificando e me modelando incessantemente, no ritmo de uma vida com a qual os vou cotejando. Neles aprendi que o mundo é imperfeito e que toda tentativa de transformação da realidade num paraíso celestial acabará sempre num inferno terrestre.

Entretanto, isso não significa que não devamos fazer o possível para que o mundo não seja ainda pior do que é, isto é, que somos inferiores ao que sonhamos e que, na comédia humana de que somos atores, há uma condição transcendental que compartilhamos em nossa diversidade de culturas, raças e crenças e que nos transforma em iguais e deveria tornar-nos, também, solidários e fraternos.

O fato de não ser assim é algo que posso entender muito melhor graças àqueles livros que me mantiveram alerta e em brasas enquanto os lia, porque nada melhor do que a boa literatura para aguçar nosso olfato existencial e nos tornar sensíveis para detectar as raízes da crueldade, da maldade e da violência e, ao mesmo tempo, as da magnanimidade, da alteridade e da bondade de que somos naturalmente capazes. Quando a literatura é posta fora de toda essa dimensão, perde seu sentido último e fica parecendo umas horas que perderam seu relógio.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, Pesquisador, Professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).