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Medos privados em lugares públicos (por Túlio Sousa Borges)

Cinema | 19/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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A good scare is worth more to a man than good advice.
Edgar Watson Howe

This suspense is terrible. I hope it will last.
Oscar Wilde

Alfred Hitchcock (1889-1980) é, indubitavelmente, um dos grandes do cinema: mestre do suspense (mas também do romance) e dono de apurado senso de humor; popular (e justamente por isso) muito controverso; inimitável, ainda que incessantemente imitado. Britânico em várias acepções da palavra, transformou-se em artista universal, contribuindo mais do que qualquer outro para o desenvolvimento do caráter cosmopolita – porquanto visual – da sétima arte.

Quando cruzou o Atlântico rumo à América, o cineasta já havia rodado alguns de seus melhores filmes, conquistando uma reputação invejável. Nasceu em Leytonstone, Londres, em uma família católica. Sua educação jesuítica no Saint Ignatius College – bem como a severidade do pai, um atacadista de frutas e verduras sem qualquer inclinação artística – acabaria por exercer influência decisiva em sua obra.

Aprendeu o ofício, narrar por meio de imagens, na época do cinema mudo. Formado em engenharia e habilidoso desenhista, iniciou sua carreira como designer de títulos na Famous Players – Lasky de Londres, produtora que se tornaria a Paramount. Foi se envolvendo cada vez mais com a produção de filmes do estúdio, acumulando diversas funções. Por lá conheceu Alma Reville, sua esposa e eterna colaboradora. Dirigiria seu primeiro filme, The Pleasure Garden (1925), na Alemanha, onde conheceu o Expressionismo, que seria, ao lado do Cinema Soviético, a principal influência em seu estilo de direção. Até 1939, véspera de sua ida a Hollywood, ele viu-se obrigado a recorrer à engenhosidade técnica para driblar o problema dos poucos recursos à sua disposição e transformou-se aos poucos em um mestre.

No thriller The Lodger (1927), seu terceiro trabalho de direção, ele encontra sua vocação. Trata-se, coincidentemente, da primeira vez que aparece em um dos filmes – “para mobiliar a tela”, conforme dizia. O gérmen de seu estilo está lançado. Blackmail (1929) seria o primeiro filme sonoro britânico, além da primeira ocasião em que Hitchcock utilizaria um monumento nacional como palco do clímax – nesse caso, o teto do British Museum. Não obstante, sua experiência será relativamente frustrante até 1934, quando a primeira versão de The Man Who Knew Too Much inaugura quatro anos de êxito, marcados por outros cinco filmes que estabeleceriam sua fama como um ótimo diretor de thrillers, sobretudo de espionagem.

O mal é presença constante ao longo de sua filmografia. Apesar disso, Hitchcock parece guiar-se antes de qualquer outra coisa pela reação emocional que deseja obter – normalmente uma variação do medo. É um grande manipulador. Daí a importância da montagem, influência soviética, no seu trabalho. Numa entrevista a Peter Bogdanovich, ele comenta: “Sabe, no que me concerne, o conteúdo é secundário em relação ao manejo; o efeito que sou capaz de provocar no público, e não o assunto.” Conseqüentemente, o que em geral lhe interessa é a existência de uma ameaça, seja ela representada por maus indivíduos ou por um universo amoral.

Com estilo único, Hitchcock constrói um mundo próprio, estranho e perigoso, onde impera a lógica dos pesadelos. O cineasta acaba fazendo as vezes de um demiurgo perverso, que vez por outra lança uma irônica piscadela para o outro lado da tela. Ao mesmo tempo, não passa de um menino assustado que compartilha seus maiores medos.

O diretor tenciona perturbar a sensação de segurança dos espectadores. Segundo Bogdanovich, por exemplo, seus filmes alertam para os perigos da complacência. Um exemplo notável seria Lifeboat (1944), que o próprio Hitchcock descreveu como um “microcosmo da guerra”, onde ele contrasta, de maneira magistral, a organização e implacabilidade dos nazistas com a pusilanimidade dos Aliados, estes enfraquecidos por disputas internas. O inimigo é representado pelo capitão de um submarino alemão, um homem relativamente simpático e, exatamente por isso, muito traiçoeiro e duplamente perigoso. Interpretado por Walter Slezak, faz parte de uma extensa e ilustre galeria de memoráveis personagens hitchcockianas.

Há pouco espaço para a vida real nos filmes de Hitchcock, que nunca são tediosos, constituindo, desse modo, formidáveis possibilidades de evasão. Ennui, esse tema moderno por excelência, surge como trampolim para o incomum, servindo como parte da motivação dos dois psicopatas de Rope (1948) e daquele de Strangers on a Train(1951) – filme que sinaliza o início da fase áurea do diretor.

Não nos esqueçamos tampouco do início de Shadow of a Doubt (1943), quando se introduz a conexão telepática entre a adolescente Charlie (Teresa Wright) e seu tio de mesmo nome (Joseph Cotten). Entediada pela vida em sua pacata cidade na Califórnia, a jovem invoca emoção e perigo. No já mencionado Spellbound, Ingrid Bergman – em desempenho soberbo – é uma psiquiatra aparentemente frígida que acaba se apaixonando por um paciente amnésico suspeito de assassinato. Dr. Petersen dá então lugar a Constance, que decide “fugir com um par de iniciais”- “brincando com uma arma carregada”, no dizer de seu velho mentor.

Na mesma linha, Hitchcock gosta de mostrar pessoas comuns inadvertidamente envolvidas em situações extraordinárias. Tem-se, por exemplo, a clássica trama do homem injustamente acusado, que persegue os verdadeiros malfeitores enquanto tenta escapar da polícia.  Em Saboteur (1942), por exemplo, a rotina desaparece logo no início do filme, envolta por um mar de chamas, fazendo com que o protagonista, um simples operário, se veja obrigado a empreender uma longa e maravilhosa jornada ao redor dos Estados Unidos para desmantelar uma rede de subversivos.

As mesmas coordenadas são visitadas no simplesmente brilhante North by Northwest (1959) – que, como bem observa Truffaut, sintetiza a carreira americana do diretor. Na primeira seqüência do filme, o executivo de publicidade Roger Tornhill (Cary Grant) elabora sua agenda com a secretária enquanto se dirige a um de seus corriqueiros almoços de negócio. A situação, comicamente banal, contrasta marcadamente com o vertiginoso clima dos créditos iniciais, estabelecido, entre outras coisas, pela superlativa trilha sonora de Bernard Herrmann. Ao deixar a secretária, Tornhill percebe que ela não poderá cumprir a tarefa de ligar para a mãe dele, pois esta joga cartas em um apartamento sem telefone. Pouco tempo depois, uma curiosa confusão de identidades irá catapultar o protagonista para o centro de uma aventura kafkiana. Com fina ironia, Hitchcock demonstra que nossos planos podem ser inesperadamente arruinados pelo acaso.

Retomamos aqui um instigante paradoxo[1], pois estamos falando de um diretor muito minucioso, que planejava todas as tomadas até os últimos detalhes no período de gestação do filme. Com o tempo, passou a desenvolver storyboardspara todas as cenas. Utilizava a câmera cirurgicamente, a fim de obter o efeito desejado. Insistia, por exemplo, na importância de não se desperdiçar um close-up antes da hora. 

Assim, tinha tudo na cabeça antes de chegar ao set; e detestava a filmagem em si, já que nela havia a necessidade de fazer concessões e, assim, a possibilidade de perder o controle da produção.

A partir de um determinado momento, passou a empregar seu inegável talento publicitário para assinar suas realizações. Por meio de breves e notórias aparições nos filmes, verdadeiras gags, criou uma persona inconfundível, robustecida pelo sucesso da série de televisão Alfred Hitchcock Presents (1955-1965).

Nem sempre conseguia recrutar os atores que desejava, seja porque os mais famosos subestimavam thrillers (Gary Cooper declinou o convite para trabalhar em Foreign Correspondent, de 1941), seja porque os estúdios lhe impunham outros.

“Atores são como gado”, disse certa vez em um contexto bem específico. E os utilizava como marionetes. Foi-lhe, então, muito desagradável dirigir Montgomery Clift em I Confess (1953) e Paul Newman em Torn Curtain (1966), já que ambos haviam formado opiniões próprias a respeito dos respectivos filmes. É claro que Hitchcock preferia trabalhar com estrelas, pois provocavam a cumplicidade do público; aproveitava-se da persona do astro e a manipulava, subvertendo-a ocasionalmente. Cary Grant, Ingrid Bergman, James Stewart e Janet Leigh são alguns dos principais exemplos. De todo modo, estrelas ou não, atores de Hitchcock sempre parecem sonâmbulos na tela, reforçando a atmosfera onírica de filmes como Notorious (1946), Strangers on a Train e Vertigo (1958) – seu melhor trabalho.

Avesso por temperamento ao imprevisível, Hitchcock sempre cultivou a organização e a limpeza. Comportava-se de maneira conservadora, vestindo quase sempre o mesmo terno e pouco alterando o cardápio de suas refeições. Ademais, evitava confrontações sempre que possível. Quando era entrevistado, dizia invariavelmente as mesmas coisas, demonstrando elevado grau de autoconhecimento. E esse mesmo homem se especializou no ofício de chocar as platéias, provocando sensações que são, em parte, dele próprio. Soube dramatizar muito bem, por exemplo, o medo que sentia não apenas da polícia, mas de outros agentes da lei. Normalmente apresentados como burocratas insensíveis, esses tipos costumam exercer, ao lado dos vilões principais, o papel de antagonistas.

“But then of course, the Law has no sense of drama, has it?” diz Sir John Menier (Herbert Marshall), o protagonista deMurder! (1930), que soluciona o crime em questão com a ajuda de Shakespeare. No mesmo filme, um grupo de jurados debate com desleixo o caso, arbitrariamente condenando uma inocente à forca. Em Saboteur, o fugitivo encontra abrigo na casa de um sábio cego capaz de perceber sua verdadeira índole. Esse senhor também é um hábil conversationalist, que, ao ouvir da sobrinha a respeito da caçada humana, faz o seguinte pedido: “In fact, dear, would you mind not having any further quotations from the Police? Their remarks are always so expected. They kill conversation”.

Em I Confess, Hitchcock demonstra a incapacidade do sistema legal diante de intractable moral/religious conflicts. Por sua vez, os policiais aparentemente amigáveis – bem como o cumprimento mecânico dos procedimentos de detenção – em The Wrong Man (1956), tornam ainda mais humilhante – e aterrorizante – a injusta prisão de ‘Manny’ Balestreros (Henry Fonda), ainda que o filme não seja, no todo, muito bom. Tudo isso faz lembrar muito Changeling (2008), de Clint Eastwood, outro poderoso pesadelo em celulóide – embora Eastwood seja de uma solenidade opressiva que não poderia estar mais distante do estilo de Hitchcock.

Ninguém observa uma revoada – ou mesmo um simples bater de asas – da mesma maneira depois de ter visto The Birds (1963). Na maioria das vezes, Hitchcock logra estabelecer essa profunda comunhão com o espectador e isso se deve em boa parte ao domínio daquilo que ele próprio denomina “regras do suspense”, sobre as quais discorre com admirável eloqüência nas entrevistas supracitadas. O que mandam essas regras?

Como observamos, o fundamental para Hitchcock consiste em reter a atenção do espectador, custe o que custar, por meio do seu envolvimento emocional no filme. É importante não apenas criar, mas conseguir preservar a emoção, de modo que a tensão seja mantida. Na interpretação de Truffaut, o suspense seria a dramatização do material narrativo de um filme ou, melhor ainda, a apresentação mais intensa possível das situações dramáticas.[2]

Para que o suspense funcione, Hitchcock deixa bem claro, é preciso estabelecer as situações com clareza, fornecendo um conjunto de informações essenciais para a compreensão do que acontece e do que pode acontecer. O diretor sempre mencionou o exemplo de uma cena com bomba. Se ela explode de repente, sem aviso, há apenas um susto; por outro lado, no caso de uma bomba ativada, que está prestes a explodir, cria-se ansiedade. Ao falar sobre seu estilo, Hitchcock também menciona uma distinção algo rígida, apesar de importante: aquela entre suspense e mistério. Diz que não se interessa pelo segundo, parecendo ignorar o fato de que Vertigo não seria tão bom sem seu aspecto misterioso.

Hitchcock manipulava a tensão de diferentes maneiras. Às vezes, lançava mão de um red herring – i.e., algo para distrair a atenção para longe do que realmente importa. Nos filmes, isso aparece como uma situação aparentemente ameaçadora que acaba se revelando inofensiva. É o caso, por exemplo, do cachorro que surge nas escadas emStrangers on a Train. O mais usual, porém, é a criação de ameaças a partir de circunstâncias a princípio inofensivas, em plena harmonia com o desejo de criar a sensação de insegurança.

Contribui muito para isso o aspecto insólito dos locais em que se passam os filmes. Neles, afinal de contas, uma casa não é meramente uma casa, nem um trem apenas um meio de transporte; ambos são lugares onde coisas ruins podem – e, não raramente, terminam por – ocorrer. Em alguns casos, essa aparência estranha é planejada; noutros, acidental. Deve-se, por vezes, à profundidade das tomadas, à utilização da câmera “subjetiva”, ao fato de que o diretor preferia rodar seus filmes no estúdio (com o uso de diversos truques visuais) ou, finalmente, à própria trama.

Fetichista, Hitchcock retém a atenção da platéia por meio do uso de algum objeto capaz de concentrar a força dramática da narrativa: a faca tanto em Blackmail (1929) quanto em Sabotage (1936); as algemas em The 39 Steps(1935) e Saboteur; as chaves em Notorious; o isqueiro de Strangers on a Train; a aliança de Rear Window (1954).

Mas assim como John Ford, Hitchcock também entendia a necessidade de intercalar cenas de comédia e romance no meio do drama a fim de quebrar um pouco a tensão; diferentemente do primeiro, consegue fazer isso sem prejudicar a coesão narrativa. A diferença talvez tenha algo que ver com o sentimentalismo de Ford, mas não podemos nos esquecer de que romance e humor harmonizam-se naturalmente com o suspense na obra de Hitchcock, diretor de alguns dos mais belos beijos do cinema e adepto de uma abordagem essencialmente irreverente.

Em suas extraordinárias tramas, o protagonista corre perigo, mas também é elevado a um novo nível de consciência. A situação desesperadora pode melhorá-lo ou destruí-lo. Uma das possibilidades que se lhe apresentam é o amor, gerando outra típica ironia hitchcockiana: as mesmas circunstâncias que aproximaram o casal ameaçam sua felicidade. Em Secret Agent (1936), a guerra é o obstáculo. Quando o casal de espiões se reencontra na estação de trem grega, seu abraço é atrapalhado por uma cerca e pela espada de um soldado. Em Rear Window, James Stewart só percebe que realmente ama Grace Kelly no momento em que a vida dela está por um fio. Perto do fim de North by Northwest – e depois de ter escapado de alguns atentados – Cary Grant confessa a Eva Marie Saint que jamais se sentira tão vivo. Eles se despedem, pois não sabem se voltarão a se encontrar, mas as carícias são interrompidas pela buzina do agente do FBI que os avisa da necessidade de partirem para suas respectivas missões.  Em Lifeboat, existe um ódio mútuo entre a colunista de moda ‘Connie’ Porter (Tallulah Bankhead) e o mecânico comunista Kovac. Quando o bote parece prestes a afundar, no entanto, beijam-se apaixonadamente. É apenas um dos dois casais que se formam entre os nove sobreviventes que nem sequer sabem se chegarão vivos à terra firme. Eis aqui o tema da indiferença cósmica aos anseios dos amantes!

Hitchcock não teria conseguido empregar todos esses recursos em benefício de suas tramas se não houvesse dominado desde cedo as técnicas do cinema. Seu estilo se desenvolve ao longo de muitos anos e por mais que ele afirme não se interessar muito pelo conteúdo do que filmou, a consistência temática de sua filmografia salta aos olhos.The 39 Steps seria refeito duas vezes, como Saboteur e North by Northwest. A queda do avião no oceano em Foreign Correspondent sugeriria nada mais nada menos do que a trama de Lifeboat, cujo vilão absorve algo da Sra. Danvers deRebecca (1940), primeiro filme americano do diretor. Isso tudo sem mencionar que, por sua vez, o conceito de um microcosmo da guerra já havia sido tentado de forma canhestra na cena do trem em Saboteur. Como trama psicanalítica, Spellbound antecipa Marnie (1964), que inverterá os papéis de médico e paciente.

O sentimento de culpa está presente em quase todos os filmes e o duplo – com suas raízes expressionistas, católicas e vitorianas – é outro tema importante. Hitchcock sente prazer ao sugerir que todos têm um lado negro. Junto com ele, torcemos ocasionalmente pelo malfeitor e sentimos satisfação com a morte de certos crápulas – como a esposa do tenista em Strangers on a Train ou o advogado chantagista de I Confess. Como diria Bruno Anthony, “todo mundo é um assassino em potencial”. Entrementes, o diretor transita de comentários acerca das conflituosas relações entre os sexos a piadas de humor negro sobre as dificuldades de se livrar de um cadáver.

Discutir o cinema de Alfred Hitchcock, com suas virtudes e defeitos, envolve o risco de adotar uma dicotomia por demais artificial entre público e crítica. Costuma-se pensar que o diretor obteve aclamação popular durante toda a sua carreira. Nada poderia estar mais distante da realidade. Vertigo – sua grande obra-prima, o filme que coloca os demais em segundo plano – foi recebido negativamente nos cinemas.

Tragicamente, o diretor sempre ansiou por reconhecimento, não aproveitando totalmente a liberdade ensejada por sua relativa alienação. Brincando de transferência de culpa, ele responsabilizou a suposta velhice de James Stewart pelo fracasso do filme. Cary Grant, quatro anos mais velho do que Stewart, seria curiosamente chamado para protagonizar o filme seguinte, North by Northwest. Certidões de nascimento, porém, não importam, pois Grant projetava a imagem correta e Hitchcock sempre se preocupou com a verdade da tela. Além do mais, tudo isso parece muito apropriado no caso de um diretor que discutiu com muita propriedade o poder das ilusões.

As características gerais associadas à fase de transição, que vai de Rebecca a Stage Fright (1950), valem na realidade para descrever toda a filmografia do diretor, eclética e repleta de altos e baixos, às vezes num mesmo filme. Saboteurpode até carecer de coesão, mas isso não justifica sua má reputação, especialmente se levarmos em conta que seus retratos da bondade e comunhão humanas rivalizam com o melhor que já foi produzido pela literatura. Notorious, por sua vez, é melhor e mais representativo do que alguns filmes feitos pelo diretor na década de 1950.

De todo o modo, a periodização tradicional da carreira de Hitchcock tem sua razão de ser. Depois de The Birds, grande filme que se perde na escalada do horror, inicia-se o declínio derradeiro. Como muitos já afirmaram, o diretor foi ficando cada vez mais irrelevante do ponto de vista comercial. Apesar disso, nenhum dos filmes dessa época pode ser considerado particularmente ruim. Normalmente apolítico, Hitchcock fez denúncias contundentes do comunismo emTorn Curtain e Topaz (1969). Acabou classificado como “um dos cínicos mais morais de nosso tempo” por Vincent Canby do New York Times.

Family Plot (1976), último trabalho do diretor, é uma pérola, digna de ser colocada entre seus grandes filmes. Os primeiros minutos lembram os bons momentos de David Lynch, outro diretor – razoavelmente influenciado por Hitchcock – que privilegia o aspecto visual do cinema.

A influência de Hitchcock é tão multifacetada e complexa que mal podemos começar a mapeá-la. Alguns bons realizadores do passado tomaram-lhe muita coisa. É o caso de J. Lee Thompson em Cape Fear (1962) – e não apenas por causa da composição de Bernard Hermann. Por outro lado, Peter Stone bebeu da mesma fonte – com destaque para a leveza de To Catch a Thief – antes de escrever Charade (1963), dirigido por Stanley Donen e estrelado por Cary Grant, que dessa vez contracena com a adorável Audrey Hepburn.    

Roman Polanski também pode ser considerado um herdeiro, ainda que tenha superado Hitchcock como artista. Os exemplos abundam: Repulsion (1965), Le Locataire (1976), Frantic (1988) e o subestimado e incompreendido The Ninth Gate (1999). Chinatown (1974), hitchcockiano por várias razões, mas sobretudo por girar em torno do problema dovoyeurismo, supera qualquer coisa que o mestre do suspense tenha feito. Subestimar Hitchcock seria um erro, mas não podemos nos esquecer de que ele foi acima de tudo um entertainer, enquanto Polanski é um artista “mais sério”.

Todos os admiradores de Hitchcock na nouvelle vague se inspiraram em sua obra. Ecos podem ser percebidos em quase todos os thrillers de Chabrol. E La Marieé était en Noir (1968) é uma bela homenagem de Truffaut, que parece ignorar alguns dos princípios que regiam o trabalho do homenageado.

Brian De Palma, que dificilmente transcende a paródia e o pastiche, talvez seja o seu mais notório imitador. O virtuosismo de De Palma, porém, seria desprezado por Hitchcock, que, ao contrário do americano, subordinava seus elaborados set pieces à narrativa.  

O tema do homem inocente inspirou a série de suspense The Fugitive (1963-1967), transformada no início da década de 90 em um ótimo filme protagonizado por Harrison Ford. Do lado negativo, surgiu mais recentemente uma cópia particularmente infeliz de Hitchcock, o jovem D. J. Caruso. O plano geral da cidade do Québec em Taking Lives (2004) é uma clara referência à tomada semelhante de I Confess. Mais importante, Caruso atualiza – e, portanto, distorce – Hitchcock para um público cada vez mais estúpido e juvenil, haja vista suas releituras de Rear Window Disturbia(2007) – e North by NorthwestEagle Eye (2008).

Talvez a última palavra deva caber a Dario Argento em Ti piace Hitchcock? (2005). Trata-se de uma produção para a televisão que faz uma bem-humorada e inteligente homenagem a Hitchcock, com incontáveis referências a seus filmes. No final do filme, Argento sugere que o cinema não passa de uma reciclagem de velhas idéias. Difícil aceitar a tese em sua totalidade. Não obstante, quando a massa tem precedência, o maneirismo se apresenta como tentação…    

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[1] Na introdução ao célebre livro de entrevistas Hitchcock/Truffaut, o diretor francês menciona o instrutivo contraste entre um Hitchcock público, seguro de si mesmo, deliberadamente cínico e aquele Hitchcock vulnerável, sensível e emotivo.

[2] Hitchcock/Truffaut: Entrevistas. Companhia das Letras, 2004, p. 25

 

Túlio Sousa Borges é crítico de cinema da revista virtual Candango e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, edição nº 3, Junho/2009.

Hamlet e o desconcerto do mundo (por Renato José de Moraes)

Literatura | 23/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Introdução

Dentre todas as peças de Shakespeare, Hamlet ocupa um posto singular: é provavelmente a mais representativa, a que suscitou as mais diversas interpretações e, principalmente, a mais admirada e amada. Ao terminar de lê-la, ficamos com a sensação de termos saído de um mundo amplo e complexo, no qual ainda há muito que explorar e conhecer. Como sugere Harold Bloom, utilizando uma expressão que se encontra na própria peça, trata-se de um poema ilimitado pela sua riqueza e qualidade.

Na evolução da arte de Shakespeare, Hamlet representa o ponto de inflexão. Sem dúvida, antes já havia escrito obras imperecíveis, como Romeu e Julieta, Henrique V, as duas partes do Henrique IV, Noite de Reis, Sonho de uma noite de verão, e um longo etc. No entanto, Hamlet representa um salto em relação a tudo o que o dramaturgo inglês havia produzido até então, e ele manterá esse nível em algumas das suas obras posteriores

Hamlet e a saudável “incoerência”

A grandeza de Hamlet é algo que certos críticos têm dificuldade em explicar, apesar de a maior parte deles a reconhecer sem maiores dificuldades. No entanto, T.S. Eliot considera-a “certamente um fracasso artístico. […] De todas as peças, é a mais longa e possivelmente aquela em que Shakespeare empregou maiores esforços; mesmo assim, porém, deixou nela cenas supérfluas e inconsistentes, que mesmo uma revisão apressada perceberia”.

A afirmação de que Shakespeare trabalhou intensamente para escrever Hamlet é sustentada também por W.H. Auden, que vê nisso um sinal de certa insatisfação criativa. Esse esforço de composição é corroborado pela existência de no mínimo três, e talvez quatro, versões diferentes da obra. A primeira teria sido perdida, e alguns estudiosos a denominam ur-Hamlet, datando-a do início da carreira teatral de Shakespeare. A segunda – e a primeira a chegar até nós – é a chamada First Quarto, lançada descuidadamente e, provavelmente, sem autorização ou revisão do autor. A terceira, que é uma correção e ampliação do First Quarto, é o Second Quarto, publicado oficialmente pela companhia teatral de Shakespeare enquanto este ainda vivia. Finalmente, temos a versão que consta no First Folio, volume organizado postumamente por alguns amigos do autor e que recolheu quase todas as suas peças.

Apesar de todo o trabalho que consumiu, a peça teria, sempre segundo Eliot, várias imperfeições e “cenas supérfluas e inconsistentes”. No mesmo sentido, Auden acrescenta que o drama está “cheio de lacunas, tanto na ação quanto na motivação”. Não é fácil contradizer dois críticos que são, ao mesmo tempo, dois dos maiores poetas de língua inglesa dos últimos cem anos. Mas, então, como explicar a sedução que Hamlet exerce há tantos séculos sobre os estudiosos e amantes da literatura? Se é uma peça cheia de equívocos e inconsistências, por que se tornou o trabalho mais estudado e admirado de Shakespeare?

Em certo sentido, Eliot e Auden evidentemente estão certos ao sustentar que a obra tem lacunas e cenas “supérfluas”. Mas cabe aqui perguntar: qual é o problema disso? Esse tipo de “falhas” não é exclusivo de Shakespeare nem de Hamlet, e é encontrado em outras obras consagradas da literatura universal. Um dos mais reconhecidos estudiosos de Cervantes, Martín de Riquer, escreve que o Dom Quixote apresenta alguns defeitos, frutos todos eles da precipitação com que certos capítulos parecem ter sido escritos. Por sua vez, dentre as obras de Dostoievski, a sua preferida por muito tempo foi O idiota; no entanto, a espontaneidade narrativa e o caráter fortuito da ação fazem “desse romance a mais desorganizada das obras mais longas do autor e a mais difícil de analisar a partir de alguma perspectiva unificada”.

A crítica de Eliot chega a ser paradoxal quando nos lembramos da sua “poética do fragmento”, característica de várias de suas obras mais bem conseguidas. Ele mesmo dizia que freqüentemente escrevia poemas em separado e só depois via a possibilidade de fundi-los em um conjunto, perfazendo uma espécie de todo. Ora, Hamlet parece ter sido escrito, em boa parte, exatamente dessa maneira. Isso explica os diversos monólogos e situações da peça que, em um primeiro momento, podem parecer não ter relação direta entre si ou serem mesmo dispensáveis, mas que, em conjunto, formam um todo fortemente impressionante.

Ademais, Shakespeare utilizava de maneira habitual materiais previamente publicados por outros autores para servir de base para seus enredos. Esse método pode gerar “incoerências”, pois neste caso o enredo se origina de uma narrativa que será bastante modificada antes de atingir a forma final, mas é inegável que quase sempre funcionou extremamente bem. Concretamente, Shakespeare empregou, para produzir Hamlet, a história do príncipe dinamarquês Amleth, redigida no século XII por Saxo Grammaticus, no livro Historiae Danicae, e que deve ter chegado ao conhecimento do nosso autor por meio da versão de François de Beelforest, em Histories tragiques (1570). Provavelmente também foi influenciado pela Tragédia espanhola, de Thomas Kid, um drama de vingança hoje praticamente esquecido. Essa mistura pode gerar dificuldades e certos desencaixes, mas tudo isso acaba por enriquecer e tornar mais verdadeiro o drama teatral.

A vitalidade de Hamlet está em que espelha a realidade humana, cheia de inconsistências, incoerências, ações impensadas e coincidências inesperadas. Como escreveu Samuel Johnson, as peças shakespearianas “exibem o estado real da natureza sublunar, que tem partes de bem e de mal, alegria e tristeza, misturadas em uma infinita variedade de proporção e inumeráveis modos de combinação”. Não existe nenhuma vida humana absolutamente coerente e racional, e as obras literárias que tentaram ser “científicas” na composição da sua trama e na construção das personagens foram todas elas “certamente um fracasso artístico”.

Evidentemente, a arte sempre passa por uma técnica e exige certa coerência, mas esta não deve ser bigger than life, sob pena de chegar a algo artificial, sem força nem impacto. Como lembrava Chesterton, “se algum ato humano pode grosso modo ser considerado sem causa, trata-se sem dúvida de um ato menor de um homem cordato: assobiar enquanto passeia, golpear o capim com uma bengala, bater os calcanhares no chão ou esfregar as mãos. […] São exatamente essas ações despreocupadas e sem causa que o louco jamais conseguiria entender; pois o louco (como o determinista) em geral enxerga causas demais em tudo”. Shakespeare não era louco, e por isso foi capaz de escrever situações e cenas “inúteis” que, ao mesmo tempo, estão carregadas de sentido humano.

O mergulho profundo na realidade

A questão crucial de Hamlet, que gera mais controvérsias entre os críticos e leitores, é a apresentada por Harold Bloom: “Como caracterizar a melancolia de Hamlet nos primeiros quatro atos, e como explicar a superação da mesma, no quinto ato, em que Hamlet alcança posicionamento tão singular?”

A melancolia de Hamlet, em um primeiro momento, parece ter sido causada pelos eventos que nos são narrados no início da peça: seu pai havia morrido poucas semanas antes; sua mãe viúva, a rainha Gertrudes, tinha-se casado rapidamente com Cláudio, irmão do rei morto e agora seu sucessor na coroa; pouco depois, o fantasma do falecido rei aparece a Hamlet, contando-lhe que fora assassinado por Cláudio e clamando para que o filho o vingue. De fato, é preciso reconhecer que não lhe faltavam motivos para estar deprimido…

No entanto, na crítica já citada do Hamlet, T.S. Eliot sustenta que a personagem principal é dominada por uma emoção inexprimível, por ser um excesso em relação aos fatos que aconteceram. Realmente, o príncipe não está desgostoso apenas com sua mãe, o rei usurpador e alguns membros da corte dinamarquesa; o seu sentimento derrama-se sobre toda a existência. Apesar dos motivos que a justificam, há nela algo de cósmico, superior aos eventos que a causaram.

Eliot considera essa inadequação entre os sentimentos de Hamlet e os fatos que os geraram uma falta que compromete o valor artístico da peça. Sem concordar com ele, Bloom sustenta que “logo constatamos que o príncipe transcende a peça. […] Algo em Hamlet parece exigir (e fornecer) evidências relacionadas a esferas que estão além dos nossos sentidos”. O crítico americano está certo em dizer que Hamlet transcende a peça, mas não repara que isso acontece porque transcende o mundo. Este é um dos pontos centrais: Hamlet teve um choque de realidade, sofreu um “mergulho profundo” na existência, e passou a ter uma visão diferente de tudo o que o cercava. Viu mais do que a maioria das pessoas jamais fará, e por isso fica como que fora do mundo, observando-o de um ponto de vista privilegiado, até parecendo louco para muitos dos que o rodeiam.

Aqueles que conversam ou ouvem o príncipe, apesar de perplexos com as suas afirmações, percebem que estas são de alguém com inteligência penetrante. Em determinado momento da ação, o rei Cláudio comenta:

Nem o que disse, embora um pouco estranho,

Parecia loucura. Há qualquer coisa

Na qual se escuda essa melancolia,

E eu prevejo que, abertas as comportas,

Venha o perigo [1].

Por sua vez, Polônio pensa em voz alta sobre Hamlet:

Como suas respostas são perspicazes. É uma felicidade que a loucura alcança, às vezes, e que a razão e a sanidade não têm a sorte de encontrar”.

Uma série de monólogos e diálogos de Hamlet denotam sua inteligência e sagacidade, bem como a tristeza, que podemos chamar de “metafísica”, que inunda a sua alma. Por exemplo, um diálogo com Polônio, a respeito da recepção a alguns atores que chegaram a Elsinore:

“Pol.: Senhor, tratá-los-ei de acordo com o seu merecimento.                                                

Ham.: Pelo amor de Deus, homem, muito melhor! Tratai cada homem segundo seu merecimento, e quem escapará à chibata?”

Diz a Ofélia, a quem ainda ama, palavras que mostram um conhecimento superior de si mesmo e da espécie humana:

“Entra para um convento: por que desejarias conceber pecadores? Eu próprio sou passavelmente honesto; mas poderia acusar a mim mesmo de tais coisas, que seria melhor que minha mãe não me tivesse concebido: sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso; com mais erros ao meu alcance do que pensamentos para expressá-los, imaginação para dar-lhes forma ou tempo para cometê-los. O que podem fazer sujeitos como eu a arrastar-se entre o céu e a terra? Somos todos uns rematados velhacos; não acredito em nenhum de nós. Entra para um convento”.

No mesmo sentido, abre-se com dois companheiros, mostrando que sua insatisfação, além de ser com o Homem, é com todas as coisas que o rodeiam:

Ultimamente – não sei por quê – perdi toda a alegria, desprezei todo o hábito dos exercícios, e, realmente, tudo pesa tanto na minha disposição que este grande cenário, a terra, me parece agora um promontório estéril; este magnífico dossel, o ar, vede, este belo e flutuante firmamento, este teto majestoso, ornado de ouro e flama – não me parece mais que uma repulsiva e pestilenta congregação de vapores. Que obra de arte é o homem! Como é nobre na razão! Como é infinito em faculdades! Na forma e no movimento, como é expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo! Em inteligência, é como um Deus! A beleza do mundo! O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta quintessência do pó?”

 O problema por que certos estudiosos não conseguem compreender a “melancolia” de Hamlet está na falta de conceitos sobre a “noite escura” da alma, a tristeza decorrente de observar a fugacidade, limitação e defeito de tudo o que existe sob o sol. Nas concepções meramente psicanalíticas e materialistas da existência, não há maneira de compreender a sede de infinito, a busca de plenitude que está na alma de cada ser humano, e, conseqüentemente, entender a dor causada pela insatisfação com as coisas criadas. Trata-se de uma crise propriamente espiritual, que não pode ser simplesmente curada com alguns medicamentos ou mediante a ficção de que não existe.

O príncipe dinamarquês, através das decepções com a conduta da mãe e do tio, é
levado a uma nova percepção da realidade que transcende os eventos concretos que a causaram. Essa transformação é narrada com muita freqüência por poetas, pensadores e religiosos; na verdade, é parte integrante da experiência humana. Hamlet parece estar tomado pelo mesmo estado espírito que levou Camões a escrever em “Sobre o desconcerto do mundo”:

Quem pode ser no mundo tão quieto,

ou quem terá tão livre o pensamento,

quem tão exprimentado e tão discreto,

tão fora, enfim, de humano entendimento

que, ou com público efeito, ou com secreto,

lhe não revolva e espante o sentimento,      

deixando-lhe o juízo quase incerto,                

ver e notar do mundo o desconcerto?

Daí a impropriedade de considerar que o príncipe esteja melancólico, ou que seu estado de espírito seja fora de proporção com os fatos presentes na peça, ou ainda que seja um cético. Hamlet sofre porque os fundamentos do seu mundo foram revirados, e percebe que não eram sólidos nem íntegros, como antes os considerava. Percebe que praticamente nada do que conhece pode alegrá-lo, pois tudo é manchado e finito.

A superação da angústia

Procuramos responder a primeira parte da questão de Harold Bloom, isto é, o motivo da “melancolia” de Hamlet nos quatro primeiros atos da peça. Agora, será mais fácil entender como a superou no Quinto Ato.

Antes de tudo, é importante verificar que o príncipe não deixa de agir mesmo quando está envolvido nas suas trevas interiores. Ao contrário do que ocorreria com alguém simplesmente depressivo, Hamlet procura saber se a visão do fantasma é verdadeira e se deve executar a vingança de que foi encarregado. Além disso, precisa agir com toda a cautela, pois Cláudio é considerado rei legítimo pela população e pela corte, e sua pessoa é sagrada.

Por meio de expedientes engenhosos, certifica-se da culpa do usurpador e da veracidade das palavras do espectro. Consegue, com sensatez e o auxílio da Fortuna, sobreviver a um plano traiçoeiro de levá-lo à morte. No decorrer da ação, Hamlet vai amadurecendo para sua missão, que não é uma mera vingança, mas a purificação de toda a Dinamarca, especialmente dos cortesãos e nobres que o rodeiam. Essa purificação virá pela morte e pela tragédia, mas será levada a cabo de maneira admirável.

Ao analisar tudo o que lhe ocorrera até então, de modo principal a fuga da morte que lhe havia sido preparada, Hamlet se reconhece levado pela Providência divina de um modo

irrefletido,                                                  

E a irreflexão me seja abençoada,

Pois nossa insensatez nos vale às vezes,

Quando falham os planos bem pensados,

Para ensinar-nos que há um deus guiando

Nosso fim, seja nosso embora o início.

 Apesar de saber que poderá morrer, o príncipe enfrenta seu destino. Percebe que o rei preparou-lhe uma nova cilada, mas não foge dela; antes, utiliza-a para cumprir seu papel. Antes de ir para o duelo no qual terminará por morrer traiçoeiramente – não sem antes eliminar o monarca usurpador e assassino –, quando pressente que seu fim pode estar próximo, Hamlet tem um importante diálogo com seu amigo Horácio:

Hor.: Se o teu espírito rejeita alguma coisa, obedece-lhe; eu evitarei que venham para cá, dizendo que não estás disposto.                                                                                                                  

“Ham.: De modo algum; nós desafiamos o agouro; há uma providência especial na queda de um pardal. Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo: se ninguém conhece aquilo que aqui deixa, que importa deixá-lo um pouco antes? Seja o que for!”

 O príncipe dinamarquês não venceu propriamente a melancolia (porque não a tinha!), mas sua crise interior terminou com uma visão equilibrada e profunda da realidade, na qual tudo está em seu devido lugar. A percepção da fugacidade, maldade e fragilidade das realidades criadas é verdadeira, mas não esgota toda a verdade; há um bem por trás de tudo, uma providência e um sentido que a tudo regem. Quem consegue passar pela “imersão radical” na realidade sem se deixar levar pelo desespero, termina por adquirir uma sabedoria mais completa. Essa sabedoria leva a que Hamlet chegue ao final e faça o que deve fazer.

São verdadeiras as divertidas e profundas palavras de Chesterton sobre o príncipe: “Se Hamlet efetivamente tivesse sido um cético, não haveria a tragédia de Hamlet. Se tivesse tido qualquer ceticismo de que lançar mão, poderia tê-lo usado desde o princípio com relação ao fantasma altamente improvável do seu pai. Poderia ter considerado aquela figura eloqüente uma alucinação ou alguma outra coisa sem significado, ter-se casado com Ofélia e continuado a comer pão com manteiga. Se Hamlet fosse um cético, teria tido uma vida fácil. […] Mas ele era o oposto total de um cético. Era um pensador”.

 Conclusão

Hamlet é uma peça que sempre desafia e empolga. Os caminhos para abordá-la são inúmeros: é possível entendê-la como um drama político ou uma lição a respeito das relações entre os sexos, ou ainda uma análise meramente psicológica de alguns personagens exemplarmente construídos. Contudo, é necessário lembrar sempre que essas análises parciais são incapazes de compreender a peça em toda a sua profundidade.

Assim, a melhor abordagem de Hamlet, e de todas grandes obras literárias, será habitualmente a filosófica e, mais ainda, a teológica, que engloba todos os aspectos da vida humana. Shakespeare trata da condição humana em toda a sua radicalidade, sem admitir escapismos ou compromissos. Não há nada errado em estudá-lo a partir de uma ciência particular, como a psicologia, a política, ou mesmo a ética. Entretanto, apenas a filosofia e a teologia têm a amplitude necessária para compreender melhor o que um autor da sua categoria nos quer dizer.

A crise espiritual de Hamlet, tão bem construída por Shakespeare, é uma constante na vida dos seres humanos que aceitam a profundidade da vida. A superação dessa crise leva à ação purificadora, que terminará causando a morte do protagonista. No entanto, para Shakespeare e seus contemporâneos, a morte não era o pior nem o fim de tudo. A vida de Hamlet encontra sua plenitude no momento em que ele aceita sua morte por um motivo maior.

Hamlet e outras obras do seu nível nos lembram o que é ser humano, em toda a sua fragilidade e grandeza. Esse é um motivo mais que suficiente para que a continuemos lendo e aprofundando o que ela nos ensina.

 

Renato José de Moraes é Mestre pela Faculdade de Direito da USP e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 1, Jun/2008. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-1/hamlet-e-o-desconcerto-do-mundo/