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Desajustados: O poder transformador da bondade (por Pablo González Blasco)

Cinema | 12/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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(Fúsi -Virgin Mountain-), 2015. Diretor: Dagur Kári. Gunnar Jónsson, Sigurjón Kjartansson, Arnar Jónsson, Ilmur Kristjánsdóttir, Margrét Helga Jóhannsdóttir, Franziska. 94 min.

desajustadosEncontrava-me almoçando com um jovem colega no restaurante dos médicos do hospital quando me abordou um outro médico. Hesitou, olhou o meu nome bordado no avental, certificou-se de que era eu a pessoa que ele suspeitava. Apresentou-se, e rapidamente entendi de quem se tratava. Tínhamos trocado e-mails, escutei-o falando no rádio e até mandei uma mensagem ao programa. Mas era a primeira vez que nos víamos ao vivo. “Que coincidência -disse-me. Estava pensando em lhe pedir para escrever uma dessas suas críticas de filmes para colocá-la no nosso site de Slow Medicine”. Sugeriu-me algum filme, mas subitamente “Desajustados” veio à minha mente, e lhe fiz saber: “Boa ideia. Veja como consegue atrelar o filme aos nossos princípios”.

Naquele momento eu não tinha nenhuma ideia racional de como conectar este filme singular com a prática da medicina artesanal, centrada no paciente, que visa qualidade de vida e não apenas resolver problemas que, dito de passagem, muitas vezes não tem solução. Uma medicina que transpira humanismo; essa é a conexão entre o colega e eu, pois temos posturas profissionais semelhantes, e tentamos -com muito esforço e modesto sucesso- fazer escola, divulgar essa atitude médica. Mas encontrei um bom motivo para comentar -pare refletir escrevendo, que isso são as crônicas de cinema- este filme Islandês que me marcou e me deixou pensando. E me desafiando, porque não encontrava o fio certo para costurar as reflexões que despertou em mim.

Desajustados - 2

A intuição funcionou, porque a partir desse momento, um compromisso tranquilo, sem stress, no ritmo da Slow Medicine, as ideias começaram a surgir, a conexão tomou forma. A figura do bom gigante islandês, assumiu proporções ainda maiores; não físicas, mas de estatura interior, de categoria humana, desenhando-se o que o título deste filme em espanhol representa:Coração gigante. Melhor e mais profundo do que a versão em inglês, Virgin Mountain que é tremendamente simplificador. O título original, em islandês, é simplesmente o nome do protagonista, Fúsi, como indicando que esgota a sua espécie, que é único e singular. Tal como ensina a boa teologia acerca dos anjos. Neste caso, um anjo imenso de traços vikings.

Fúsi é um homem enorme, na casa dos quarenta, que vive com a mãe, e tem alma de criança. Trabalha no aeroporto, serviço externo de apoio, que significa descarregar malas do avião e coloca-las na cinta transportadora. Em silêncio, em ritmo pausado e eficaz, sem nunca faltar ao serviço. Tem prestígio entre os colegas, embora não parece ligar para isso. Aliás, desperta inveja e sofre perseguições, tudo provocado pela sua bondade contundente, por uma ingenuidade que insiste em acreditar, quase infantilmente, na boa vontade do ser humano. Como se não houvesse paixões e mesquinharias à solta. Mas também não se importa com isso: é indiferente a elogios e acossamentos. O supervisor preocupa-se e o convoca no escritório: “Ouvi dizer que está sofrendo bullying”. “Penso que não” responde com simplicidade. É como se esta gigantesca figura carrega-se a própria atmosfera, alheio às turbulências do ambiente.

Fúsi é a criança grande que brinca com figurinhas, percebe as necessidades dos outros, encontra tempo -e dinheiro! – para dedicar-se a eles, está atento a todos e a tudo. Sem fazer barulho, com um low profile circundado pela bondade que transpira por todos os poros. Uma personificação real de como a bondade é capaz de cuidar -e de mudar- as pessoas, os que se aproximam dela. “É preciso afogar o mal em abundância de bem” -dizia um santo contemporâneo. E outro, o místico de Castela no século XVI, assinalava algo semelhante: “Onde não há amor, coloquemos amor, e obteremos amor”. Porque, no final, parece que é isso o que conta, o saldo de uma vida produtiva: “No outono da nossa vida seremos julgados pelo amor”, em palavras do mesmo autor.

Desajustados - 3Diariamente comprovamos, em nós e nos outros, como a vida corrida, a febre pela produtividade, a competição e as comparações -com o vizinho, com o colega, com o familiar- geram permanente inquietude e rendem susceptibilidades doentias. Reclamações e queixas, reivindicações inúmeras e, na prática, pouca resolutividade e ausência completa de preocupação real pelos demais. Neste cenário, uma figura como o nosso protagonista, que apresenta sustentabilidade anímica e transita incólume diante dos nervosismos espasmódicos, é algo invejável que faz pensar. E da inveja nasce a emulação, que é o lado bom da inveja: querer imitá-lo. Um modelo possível, não uma quimera filosófico-teórica.

Volto ao começo destas linhas e ao desafio da Slow Medicine e da minha intuição em ligar o modelo médico com este filme. O ritmo lento, a serenidade, o não querer fazer muitas coisas, mas fazer muito bem o que se decide levar a cabo. E vejo a figura do gigante Islandês assumindo este papel com naturalidade. A densidade serena de Fúsi, que funciona como solução tampão para os problemas -ácidos e básicos- da nossa vida agitada. Com lentidão, sem ânsias de produtividade, a modo de uma turbina que gera milhões de watts de bondade, e ilumina o ambiente.

Desajustados - 4A bondade, como o nosso almejado estilo médico, também é artesanal. Como a das mães pacientes, a das avós que parecem terem tempo para tudo, ou melhor, tempo para o que interessa que nunca é o interesse próprio, mas o benefício dos outros. Lembrei da minha avó que gostava do pescoço e de asa do frango -o que facilitava a divisão na partilha da ave, sobrando o melhor para os outros. Depois descobri que esse gosto não era privilégio dela, mas de todas as avós, e das pessoas que tem o saudável hábito de pensar sempre nos demais.

Por contraste, também lembrei de uma história antiga de um colégio interno, que nuca soube se era verdadeira, mas é muito esclarecedora. Certo dia, um dos alunos teve durante o almoço uma crise epiléptica e teve de ser levado até o hospital. Na hora em que o retiravam, ouviu-se uma voz: “O bife dele é meu”. Desconcertante, instigante e revelador. O colega cruel exprimiu de modo cru o que talvez muitos outros pensavam e desejavam. Uma metáfora grosseira de atitudes que contemplamos diariamente. E até nos vemos envolvidos nelas. Tal é a condição humana. Não sei se somos lobos para os outros homens, como Hobbes dizia, mas aproveitar o bife sobrante é tentação presente. Fúsi nos faz entrever justamente o contrário e nos encanta com a atitude de quem voluntariamente cede o bife a quem está cego pelo próprio egoísmo. No final, o lucro é de quem soube ceder, sem queixar-se, colocando boa cara ao mau tempo, porque aliás não tem tempo ruim para ele. Um modelo invejável.

Desajustados - 1Mas o que tem a ver com tudo isto a medicina artesanal? Como conectar Fúsi com o humanismo médico que é, afinal, a nossa praia? Simplesmente com o exemplo de que é possível ser uma máquina geradora de bondade, serena, eficaz, que cuida das pessoas. Um exemplo possível, que se vê e se toca, que é do que carecemos hoje. Minha irmã, professora de filosofia costuma dizer-me: “O que você faz é simplesmente lembrar aos médicos aquilo que 70 anos atrás faziam, e acabaram esquecendo”. Difícil conseguir uma melhor definição com menos palavras.

O exemplo incarnado em alguém é capaz de acordar a lembrança, e assim formar as atitudes, solidificar a missão, promover a vontade de fazer um mundo melhor. Porque essa atitude -não apenas na medicina, mas na vida – não é coisa que se ensine com treinamentos de qualidade, projetos inúteis de humanização, quando há uma absoluta carência de exemplos. E o exemplo estimula e faz sonhar, porque os sonhos -como os de Fúsi- também fazem parte da educação. “Se você quer construir um navio, não chame as pessoas para juntar madeira ou atribua-lhes tarefas e trabalho, mas sim ensine-os a desejar a infinita imensidão do oceano” -dizia Saint Exupéry. No mundo corporativo, estamos saturados de cursos para cortar madeira, com certificações internacionais de qualidade e protocolos, e até algumas pitadas de liderança. Mas faltam exemplos. O exemplo do dia a dia, da turbina de bondade.

Desajustados. Esse é o título em português. Incomodou-me no início, porque não representa nada do que os outros títulos se atrevem a vislumbrar. Decidi ignorá-lo como mais uma infelicidade das nossas traduções, uma longa tradição que bateu o recorde com The Sound of Music, grotescamente traduzido por Noviça Rebelde, maculando um dos maiores musicais da história e indispondo-nos com a magnífica Julie Andrews que nem noviça era. Mas após esta reflexão escrita penso que o título até se encaixa. Sim, desajustados é o novo parâmetro para medir-nos a nós mesmos. Nós é que somos os desajustados, não o Fúsi. Ele é o exemplo contundente, o gold standard -por usar um termo que os médicos adoram- ao qual teremos de nos adaptar se queremos fazer a diferença. Com a Medicina, e com a própria vida.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/08/16/desajustados-o-poder-transformador-da-bondade/

O Ano mais violento: Liderança fecunda na serenidade (por Pablo González Blasco)

Cinema | 15/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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(A Most Violent Year). USA, 2014. Diretor: J. C. Chandor. Oscar Isaac, Jessica Chastain, David Oyelowo, Alessandro Nivola. 125 min.

Filme - O ano mais violento - 1Dispunha-me a assistir este filme relaxadamente, sem o compromisso de buscar mensagens, ou entrever desdobramentos. Algum comentário tinha-me chegado às mãos: um bom roteiro, com elementos colocados a modo de quebra-cabeças, orquestrados por J.C. Chandor, o mesmo diretor de Margin Call- O dia antes do fim. Aquele foi um filme que me agradou. Uma trama onde, moralmente falando, ninguém se salva. Corrupção, estelionatos, aproveitadores, jovens executivos aprendendo o caminho das pedras do sucesso. O mal caminho, entenda-se. Como tirar partido dos outros para sair triunfadores. E um cinismo blindado a qualquer possibilidade de compaixão pelas necessidades alheias. O preço de cada homem. E no final, a decepção, o vazio, a solidão.

Sob a batuta do mesmo diretor, e tratando-se de um empresário de sucesso acossado pela concorrência desleal, imaginei que seria uma variante sobre o mesmo tema. De fato, a trama de fundo é exatamente essa. O amplo repertório de ações espúrias que os concorrentes –e o poder constituído- empregam na tentativa de tirar do meio um imigrante empreendedor, que triunfa no seu negócio. Mas com tudo o que isso pode ter de interessante –e atualíssimo!!!- não seria motivo para sentar e escrever estas linhas. Divulgar e comentar o que não funciona, colocar a lama da corrupção no ventilador, não me atrai. É mais do mesmo, semelhante ao que todos os dias inunda nossas redes sociais. Nada disso me impulsionaria a compartilhar com os possíveis leitores, as reflexões que se acumulavam na mente e no coração enquanto assistia o filme.

Filme - O ano mais violento - 6O encanto do filme não está em denunciar a podridão que nos rodeia, mas na reação exemplar do protagonista, magnificamente interpretado por Oscar Isaac. O que lá encontrei, e me seduziu, foi a serenidade no comando, uma liderança que sabe tratar com as pessoas, com o tempo, que não se abala nas dificuldades. Liderança calma, atenta, delicada. Um homem que sob pressão não perde nunca a compostura. Trata com carinho os funcionários, interessa-se realmente por eles; sabe o valor das coisas, espera como se nada tivesse a fazer. E quando é obrigado a buscar recursos para enfrentar as canalhadas de que é objeto, rebaixa-se sem perder o estilo. Solicita dinheiro para o usureiro, aceita as condições, com quietude e aprumo. E jamais pactua com o mal, com os negócios turvos.

Algumas semanas depois tive ocasião de assistir um workshop com empresários. De entre as muitas ideias que lá surgiram –a gente frequenta estas reuniões para aprender a manejar as inúmeras ideias que pipocam desordenadamente na mente- uma evocou de imediato o protagonista do filme: um líder, mesmo sendo consumido pelo sofrimento, jamais transmite insegurança ou preocupação à sua equipe. Lembrei de Abel Morales, o nosso empresário íntegro e sereno. Lembrei do livro de Kennedy que li faz anos: “Profiles in Courage”, onde se recolhe o famoso pensamento de Hemingway, nunca tão oportuno como agora: A coragem é a graça sob pressão. Pressão variadíssima –o quebra-cabeças do roteiro- coragem inabalável, e toneladas de serenidade que é a graça que nos conquista.

Filme - O ano mais violento - 5Conforme o filme avança sentimos revolta contra a injustiça. Segue-se uma natural inclinação a buscar soluções alternativas. Se aqui ninguém respeita nada, porque eu vou ter que manter-me firme? Tentação forte, fundamentada, até com lampejos de ortodoxia. Mesmo entre os que transitam na desonestidade, invoca-se como argumento. Sem ir mais longe, os jornais destes dias recolhem exemplos surpreendentes. A polícia prende com as mãos na massa ao corrupto que, escandalizado, exclama: Que pais é este? Ou então: Porque somente eu? Onde estão os outros? Tão triste como real.

A tentação pode vir sussurrada no próprio âmbito familiar. A esposa de Abel Morales vem de família acostumada a fazer valer seus direitos pelas próprias mãos. “Vou chamar meu pai, meus irmãos” –confidencia ela. Mas o empresário opõe-se: “Vamos resolver isto do modo certo”. Ela insiste: “Mas isto é uma guerra”. Ele é inflexível: “Eles estão em guerra, mas eu não”. Sem pactos, sem recursos ilegítimos, no caminho da lei. A violência –como a mentira- tem pernas curtas, sempre são agarradas, voltam-se contra quem as pratica. A verdade é garantia de segurança, de que não se esconde nada, porque nada há para ocultar. O ministério público, omisso em conter a violência e a concorrência criminosa, monta uma operação para encontrar fraude fiscal na contabilidade do empresário. Num momento dado, o promotor conversa com a mulher, cuja família conhece de outros carnavais: “Conheço teu pai, tua família, já me deram muito trabalho”. Ela olha e afirma contundentemente: “Meu marido não é o meu pai. Nem parecido com ele. É um homem honesto”.

Filme - O ano mais violento - 4Sempre me impactaram os filmes onde a liderança se apresenta rodeada de serenidade e aprumo, sem teatralidades, numa versão aparente de low profile. Aparente, mas profunda. Imagino que a minha admiração responde a algo que, com o tempo e a maturidade, todos almejamos. Comandar no silêncio, na atitude, sem esbanjar excentricidades, mas mantendo o ritmo, as rotinas, a própria ordem estabelecida. Nem sempre boa, às vezes torta, mas passível de ser corrigida e melhorada. Todo um projeto de vida que visualiza não apenas resolver o meu problema mas instalar uma ordem justa, que facilita a vida de todos.

Impossível não lembrar de Thomas More, um dos grandes expoentes dessa liderança profunda, densa, silenciosa. “Eu daria ao próprio demônio o privilégio da lei, para com ela conquistar os meus direitos” –afirmava quando na família e no círculo dos amigos nobres da Inglaterra lhe sugeriam driblar a lei de sucessão, de todo ponto injusta e arbitrária. “Do contrário –dizia More- como vou me defender quando o demônio venha atrás de mim?”. A liderança requer observação, entender o que está acontecendo, despojar-se de preconceitos e desconfiar de diagnósticos pretensamente geniais, para então conseguir penetrar no cerne dos problemas humanos. Requer aprender a ouvir as pessoas até o fim, sem pressa. Demanda reflexão, “trabalhar” os silêncios, que também são manifestação de sabedoria e liderança. Por isso Thomas More, Lorde Chanceler da Inglaterra, mostra-se reflexivo e silencioso quando interpelado sobre “a questão do Rei” (o divórcio com a Rainha para poder se casar com Ana Bolena): “O silêncio de More ecoa por toda Europa” – queixava-se o Rei, Henrique VIII.

Filme - O ano mais violento - 3É o mesmo silencio, a assombrosa e fecunda passividade do protagonista, naquele filme inesquecível de Kurosawa, “Kagemusha- A sombra de um Samurai”. Morre o jovem imperador, e os anciãos colocam um sósia –que era um mendigo- no seu lugar. O objetivo, claro, é impedir que o primo do imperador falecido assuma o trono, porque carece das faculdades de comando. O mendigo-imperador assume o posto, fala pouco, observa de cima da montanha as suas tropas se debatendo no combate. E quando os seus soldados fraquejam na batalha, olham para cima e vem ele lá, sereno, em atitude de apoio, como uma referência inabalável. E recuperam terreno, vencendo a luta. O líder jamais transmite aos seus homens espasmos da própria insegurança. Não se envolve no operacional, porque confia na equipe. E está sempre lá, de braços abertos, acolhedor, impulsionando cada um nas suas responsabilidades. Com o passar do tempo, o primo herdeiro descobre a tramoia, destitui o mendigo impostor, e assume o trono. Mas, como previsto pelos anciãos, ele é incapaz de observar e manter uma atitude serena, de quietude no comando. Inerva-se, grita, envolve-se nas batalhas –naturalmente pensa que faz as coisas melhor do que os outros- e acaba perdendo a guerra e o império.

O ano mais violento trouxe-me esta magnífica surpresa embrulhada numa trama repetidamente apresentada no cinema. Trouxe-me aprendizados preciosos da mão da atitude de Abel Morales. Provocou-me reflexões, despertou emulação, desejo de imitar essa liderança inabalável. Reações análogas às que , em seu dia, despertou em mim o filme de Kurosawa. Não sei se J.C.Chandor, na sua direção magistral, contemplaria estes efeitos “colaterais”, mas são os que me servem, os que me levam a escrever. E a pensar. E a querer melhorar. Afinal, o cinema, como toda arte, serve-nos opções variadas das quais cada um toma as que quer, ou as que pode, ou talvez, as que anda buscando.

Filme - O ano mais violento - 2Escrevo estas linhas no meio de uma atividade educacional onde me foram assinadas algumas atuações. Impossível desprender-se destes pensamentos, enquanto abordamos outros temas que, sendo formativos, são sempre correlatos. Talvez por isso, até me tremeu a voz, emocionado, quando inclui na minha exposição uma frase que tinha lido no dia anterior. Diz assim: “Para tirares importância ao trabalho de outro, murmuras-te: ‘Não fez mais do que cumprir o seu dever’. Eu comentei: ‘Parece-te pouco?’. De fato, se conseguíssemos contabilizar nos dedos de uma mão, todos os dias, pessoas que simplesmente cumprem o seu dever –e nos incluir entre elas- o mundo seria um lugar melhor. Bem melhor.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/06/02/o-ano-mais-violento-lideranca-fecunda-na-serenidade/