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[RESENHA] Liberdade Religiosa e Discriminação

Direito | 13/08/2018 | | IFE SÃO PAULO

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Debating Religious Liberty and Discrimination (John Corvino, Ryan T. Anderson e Sherif Girgis, USA, Oxford University Press, 2017)

As sociedades atuais apresentam relevantes conflitos de visões. Alguns dos mais complexos relacionam-se com discriminação e liberdade religiosa. Ainda que não seja novidade a existência de debates sobre estes assuntos, com as mudanças na concepção sobre família e casamento novas polêmicas surgiram e ainda irão emergir, não raro afetando a vida e o cotidiano de pessoas.

O livro Debating Religious Liberty and Discrimination merece atenção daqueles que refletem e se engajam nestas questões, mesmo que baseado na experiência concreta americana.

Inclusive, considerando que tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo se deu de forma similar, por meio das Cortes Constitucionais (Obegerfell v Hodges, e ADI 4277 e ADPF 132), o pano de fundo dos novos debates é similar nos dois países.

A obra não trata diretamente do casamento entre homossexuais, mas é a partir do reconhecimento legal da união entre pessoas do mesmo sexo que surgem novos conflitos relativos à tolerância, liberdade religiosa e discriminação.

O livro foi escrito em forma de debate. John Corvino militou pela legalização do casamento gay. Ryan T. Anderson e Sherif Girgis advogaram pela manutenção da visão tradicional do casamento.

Nesse novo debate, porém, não existem apenas dois lados. Os três jovens autores concordam em diversos pontos, mas divergem em questões essenciais. Todos são favoráveis à garantia da liberdade religiosa e contrários à discriminação. A controvérsia está na definição e nos limites destes conceitos.

Corvino destaca que as tentativas de se garantir objeções de consciência para indivíduos e grupos religiosos que se opõem ao matrimônio de pessoas do mesmo sexo não raro configuram privilégios, implicando a legalização da liberdade para discriminar homossexuais. No mais, em um país plural como os Estados Unidos, se todas as acomodações morais e religiosas fossem admitidas, as pessoas se tornariam “leis para si próprias”, impondo inúmeros danos e ônus a terceiros, e a própria força de normas que deveriam se aplicar a todos acabaria enfraquecida.

Anderson e Girgis, por sua vez, defendem que os direitos de consciência e a integridade moral dos cidadãos são valores intrínsecos e fundamentais a serem tutelados pelo Estado. A liberdade religiosa corre risco de ser anulada a partir de leis anti-discriminação, que, na verdade, representariam um “novo puritanismo”, perseguindo aqueles que moral ou religiosamente se opõem ao novo modelo familiar.

As visões opostas dos autores são ilustradas ao longo do livro por diversos conflitos que têm surgido nos Estados Unidos, a maioria após o caso Obegerfell. Estas situações trazem ao debate de temas como: um oficial de registro ou um juiz poderia se recusar, por razões religiosas, a reconhecer um casamento entre pessoas do mesmo sexo? Confeitarias e floriculturas que, por objeção de consciência, se recusem a fazer bolos ou arranjos de flores para casamentos entre homossexuais devem ser multados? O Estado deve permitir a existência de agências de adoção católicas que somente atendem casais heterossexuais, garantindo maiores chances de adoção a crianças, ou estas devem ser proibidas de atuar?

Um dos casos apresentados no livro e que ilustra a complexidade do debate é o de Barronelle Stutzman. Stutzman empregava gays e lésbicas em sua floricultura e por 10 anos vendeu arranjos de flores para um casal homossexual que posteriormente a processou. Ela não tinha objeções a pessoas homossexuais[1], faria arranjos para o aniversário de seus clientes ou mesmo para que um presenteasse ao outro, mas acreditava, por motivos religiosos, que o casamento somente era possível entre pessoas de sexos opostos. Quando seus clientes lhe pediram para fazer o arranjo de flores para seu casamento, ela se recusou e foi processada.

Em uma sociedade plural, com diversas opções de floriculturas disponíveis, Stutzman deveria ter garantido seu direito de atuar conforme sua visão cristã? A recusa dela é discriminatória? Nesses novos casos a objeção de consciência deve ser garantida, como se fez com a questão do aborto, ou estes comportamentos são equiparados à discriminação por racismo? São questões como esta que têm emergido nos Estados Unidos, sendo que a Suprema Corte recentemente se pronunciou em um caso envolvendo um confeiteiro cristão que se recusou a fazer um bolo de casamento para um casal de homens (Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission). A decisão foi favorável ao confeiteiro, mas, em razão de peculiaridades do caso, não solucionou de forma geral os debates tratados no livro, que provavelmente retornarão à Corte.

O mesmo debate deve ganhar volume no Brasil nos próximos anos, afetando diretamente indivíduos, igrejas, clubes, escolas e empresas. Contudo, não deixa de chamar a atenção de quem lê o livro que a intensidade dos conflitos surgiu de forma muito mais rápida e extrema nos Estados Unidos, quando no Brasil também existe relevante divisão quanto a estes assuntos[2]. O brasileiro seria mais tolerante e dialogaria melhor, criando consensos e acomodações? Ou será que não nos levamos tão a sério como os americanos?

De qualquer forma, outro ponto de destaque do livro é a capacidade de seus autores de manterem um diálogo civilizado mesmo divergindo em diversos temas sensíveis. O próprio livro, como um exercício de tolerância – no sentido verdadeiro de respeito àqueles que discordam de nossas crenças mais importantes – parece ser um dos caminhos para se buscar soluções possíveis e não excludentes em nossas sociedades divididas.

[1] https://www.seattletimes.com/opinion/why-a-good-friend-is-suing-me-the-arlenes-flowers-story/

[2] http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/noticia/2014/09/maioria-e-contra-legalizar-maconha-aborto-e-casamento-gay-diz-ibope.html

Editores IFE São Paulo

Novos rumos

Opinião Pública | 11/04/2018 | | IFE CAMPINAS

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Dentre os males do homem atual, sobressai a sistemática elevação da violência como método particular e privilegiado para a resolução de conflitos. Basta abrir o jornal ou ouvir o noticiário. Na raiz de um verdadeiro flagelo que o homem conhece desde que é homem e que, hoje, tomou uma proporção tal que ameaça a sobrevivência social, localizamos, dentre várias causas, a perda do sentido do valor, tanto do homem quanto das coisas que nos cercam.

Parece que a humanidade dividiu-se entre a minoria que acredita no mito prometeico da onipotência humana e a maioria que conhece a falta de qualquer poder como a principal experiência de vida, relegada à massa de manobra daquela minoria.

Some-se a isso aquele vazio de valor do homem e das coisas e, assim, entramos num momento de ruptura da estrutura essencial de nossa civilização. Seus elementos constitutivos transformaram-se num amálgama existencial, no qual não se consegue mais distinguir o bem do mal, o verdadeiro do falso, o certo do errado e assim por diante. Efeito prático: o poder constituído descamba para o arbítrio e o arbítrio para o totalitarismo.

Boa parte dessa confusão de línguas é fruto do niilismo, que tem em Nietzsche uma testemunha de vanguarda de nossas piores tentações existenciais. Um de seus fragmentos esclarece qualquer dúvida: “o niilismo não é apenas uma contemplação da inutilidade de tudo, nem apenas a convicção de que todas as coisas merecem cair em ruína. Pondo mãos à obra, manda-as para a ruína (…). A aniquilação com a mão acompanha a aniquilação com o juízo”.

Palavras duras. Palavras proféticas. Como já disse para um fiel leitor, é impossível não ter uma certa afeição do Nietzsche que questiona o Estado tentacular, denuncia os graves problemas e as limitações teóricas das ideologias, ridiculariza a sede de dinheiro e o conforto material desmedido.

A confusão nos conceitos que construíram nossa existência ao longo de séculos – bem, mal, verdade, mentira, certo, errado – gera justamente a perda do valor específico de cada um deles, escapando de nossa capacidade de compreensão e tornando-se inútil para qualquer fim.

Aqui está um ponto-chave. Saber compreender a realidade da existência atual. Não podemos nos satisfazer com uma espécie de determinismo existencial, que assume a aparência espúria de “necessidade histórica” ou de qualquer outro nome pomposo. Tampouco por explicações que retiram a noção de livre vontade do indivíduo no agir social, reduzindo-a a um mero efeito de uma ação bioquímica de uns neurotransmissores cerebrais.

Compreender não significa diminuir o choque da experiência, mas, segundo Arendt, saber examinar e suportar conscientemente o fardo que nosso século colocou sobre nossos ombros e interpretar a realidade sem preconceitos, ao custo que for.

Dessa maneira, no âmbito social, o crescente número de leis em defesa da mulher é causado, em última análise, pela ausência do exercício de virtudes sociais no seio da família, como a solidariedade e a generosidade, e não por causa da estrutura do patriarcalismo familiar, que, apenas, pode potencializar aquela ausência. A falta de compromisso nas relações sociais não é decorrente de um “imperativo do homem pós-humano que vive no seio da modernidade líquida”, mas porque se perdeu a ideia do outro como uma dimensão irradiadora de valores.

Em todas as épocas, a humanidade sempre se viu diante de desafios. Hoje, a história oferece-nos um outro, mais complexo: o desafio de compreender o real poderio do homem atual e a nossa incapacidade de viver um sentido desse mundo criado por esse poderio. Nosso futuro depende do caminho pelo qual esse desafio será levado, mas também do resgate do valor transcendente do homem e das coisas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 11/04/2018, Página A-2, Opinião.

Diversidade familiar repensada

Opinião Pública | 22/11/2017 | | IFE CAMPINAS

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Terminava a última audiência daquele dia, quando um dos advogados mostrou-me um livro intitulado “Direito das Famílias Homossexuais”. Disse que, agora, a diversidade familiar é a palavra da vez e, como efeito, a doutrina jurídica finalmente progride e sai do marasmo das obras de que estudam o “direito de família”. Respondi: “Progresso? Em direção ao quê?”. Não ouvi uma sílaba do lado de lá.

Num contexto de absolutização da experiência subjetiva, cada um resolveu montar seu próprio cardápio à la carte, ao invés de buscar um prato num menu fechado. Quando essa postura invade a órbita do matrimônio, resulta difícil entender essa realidade como uma instituição dotada de uns eixos identitários e orientados rumo a umas metas sociais.

O mantra da diversidade, manejado para equiparar todas as formas de convivência familiar imagináveis, acaba, ao fim, por obscurecer aquilo que a própria etnografia estruturalista já constatou historicamente: a união, mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos, é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade.

Mais do que uma resposta “estrutural” que comporte diversas “superestruturas”, a família nuclear é uma resposta “antropológica”, porque respeita o desenho de nossa ontologia. A família, assim entendida, não foi inventada pela religião, pelo capitalismo opressor ou pela burguesia cúpida, porque é uma instituição natural e isso explica seu caráter perene.

A família nuclear é aquela específica relação social à qual sempre é mais confiada a tarefa – não transferível a outras relações sociais – de personalizar a pessoa, através de específicos processos de socialização. Tais processos são essenciais para a maturação da criança e também do adulto, se e na medida em que “formar uma família” significa orientar sua comunicação à totalidade da pessoa, segundo uma norma de reciprocidade conjugal solidária, plena e estável.

Por isso, dois mitos da dita diversidade familiar precisam ser desfeitos. Em primeiro lugar, é uma ilusão acreditar que o novo ideal do “direito das famílias” assegurará automaticamente o pluralismo de estilos de vida e de visões sobre a família. Dificilmente poderá haver o dito pluralismo se os defensores da famíliar nuclear são pintados e bordados como “homofóbicos” ou são censurados de expor sua visão sobre a instituição familiar.

Em segundo lugar, é outra ilusão dar por suposto que o propagado ideal do “direito das famílias” é neutro. Quando uma sociedade decide equiparar todas as formas de convivência, ela, implicitamente, toma partido por uma visão de família e, por consequência, essa mesma visão servirá de orientação para os postulados jurídicos e político-sociais. Não existe espaço público neutro: sempre há um arranjo familiar que, por fundadas razões ou não, compete em recursos, tutela e estima social com o restante das alternativas.

A diversidade familiar assume, de fato, foros de maior importância. Em prejuízo, inclusive, das funcionalidades sociais que só a família nuclear pode proporcionar: educação na totalidade da pessoa e recâmbio geracional. Como disse o advogado, é a palavra da vez. Digo mais: é a palavra mágica da vez. O perigo dessas expressões está no fato de que, a força de não se debruçar reflexivamente sobre seu sentido e alcance, consegue-se escapar de todo e qualquer escrutínio.

Passa de boca em boca, sem que se medite sobre o que se fala. A repetição acrítica de palavras mágicas e das ideias a ela associadas termina por cristalizar uma espécie de dogma intocável. Para eliminar o feitiço de uma palavra mágica, nada como oferecer uma boa dose de ironia socrática ao nosso entusiasmado interlocutor.

Foi o que eu fiz naquele dia. Depois da espiral de silêncio que se seguiu à minha hesitação, afirmei ser a favor da diversidade familiar, porque, afinal, os filhos das famílias homossexuais seriam privados de ter uma mãe e um pai, o que não se dá na família nuclear, que respeita melhor essa diversidade. E arrematei: “Como dizem os franceses, doutor, ‘vive la difference!’”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/11/2017, Página A-2, Opinião.

Niilismo Penal

Opinião Pública | 13/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Nessa fase da história brasileira, em que a exceção virou regra e, a regra, exceção, a pauta congressista, entre o impedimento aqui e a eleição indireta ali, continua a todo vapor. Pelo menos nas comissões temáticas. Nessa bacia de salvação política das almas, está o projeto de reforma do nosso idoso código penal, repleto de bengalas e andadores decorrentes das inúmeras alterações pontuais legislativas que foram sendo feitas nos últimos trinta anos.

Tais alterações, em regra, foram sempre conduzidas em “regime de urgência”, depois que algum crime grave deixou as páginas policiais para virar manchete dos jornais. Não dá para esperar um direito penal sério e eficaz quando o legislador só resolve agir sob os influxos das emoções sociais.

Qualquer pauta para a reforma de um importante código, como o de direito penal, deve ser fruto de uma política criminal que indique um propósito definido aos atores sociais, algo que passa, necessariamente, pelas ideias de mundividência societária das questões penais, justiça distributiva e bem comum.

No projeto de código penal em trâmite legislativo, a tipificação dos crimes parecem privilegiar uma série de omissões que poderiam ser protegidas eficazmente por outras esferas de juridicidade ou encampar o ideário do politicamente correto.

Vejamos. A pena para o autor de um crime de aborto foi diminuída e as hipóteses de licitude desta prática foram consideravelmente ampliadas, sob o pretexto de que esse tema é uma questão de “saúde pública”. A pena para o abandono de animais é maior que aquela fixada no caso de abandono de incapaz. Talvez o legislador ache que uma uma criança valha menos do que um filhote de vira-lata.

Os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade foram esquecidos em muitos pontos. A incidência da lei penal no campo do bullying tomou uma proporção sem precedentes, como se não existisse a opção por ações afirmativas ou mesmo pela educação familiar. No crime de racismo, ainda se insiste na imprescritibilidade, que não alcança as hipóteses mais graves de homicídio simples ou qualificado, como se esfera indenizatória não fosse muito mais pedagógica.

O quadro geral lembra uma espécie de niilismo penal. Mas não é só. O já citado princípio da proporcionalidade, segundo o qual a qualidade e a quantidade da pena são ajustadas segundo a gravidade da infração, é modificado em prol de outros ícones politicamente em voga.

Nos crimes que envolvem violência ou atentado à vida ou à integridade física da vítima, a pena privativa de liberdade, essa velha senhora, é reduzida, porque despojada de suas virtudes expurgatória e intimidativa, a instrumentalizar fins exclusivamente regenerativos, a serem cumpridos em estabelecimentos que não penitenciários.

A proposta de um novo código penal, sempre pautada por uma política criminal mais abrangente e com a qual guarde coerência, não só é uma pauta social útil, porém, necessária. Afinal, se Rousseau tivessse razão quanto à natureza do homem, as leis penais nunca teriam feito falta.

A aceitação racional da realidade das coisas sociais e de seus problemas exige uma meditação prudente, por parte de nosso legislador, que abarque a totalidade do mundo e a existência humana, e não um ímpeto niilista numa área tão sensível para o cidadão, que já sofre pelo clima generalizado de insegurança e de impunidade.

O niilismo tem em Nietzsche uma testemunha de vanguarda de nossas piores tentações existenciais. Um de seus fragmentos esclarece qualquer dúvida: “o niilismo não é apenas uma contemplação da inutilidade de tudo, nem apenas a convicção de que todas as coisas merecem cair em ruína. Pondo mãos à obra, manda-as para a ruína (…). A aniquilação com a mão acompanha a aniquilação com o juízo”.

Palavras duras. Palavras proféticas. Não dá para a sociedade afundar a cabeça nesse buraco do niilismo penal, porque, quem esconde a cabeça, um dia, acaba por perdê-la. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 13/09/2017, Página A-2, Opinião.

A família na encruzilhada

Opinião Pública | 24/05/2017 | | IFE CAMPINAS

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Todos nascemos do ventre de uma mãe, que foi fecundado por um pai. Pai, mãe e filho formam uma unidade única, que jamais compreenderemos completamente, mesmo com todo o avanço da ciência. É esta unidade misteriosa e fundamental, que não é negada a ninguém, que está no germe do que chamamos família. Não é exagero dizer que a família está inscrita em nosso DNA, e que tendemos a ela como o rio tende ao mar. Todavia, ela não brota por geração espontânea, antes de tudo é uma tarefa dada a nós. Precisa de cultivo e proteção, senão se degenera e não cumpre sua vocação.

Hoje, mais do que nunca, diante do que se chama “crise da família”, conhecemos duramente esta verdade. Não seria exagero dizer que todas as grandes dificuldades que estamos enfrentando em nossa sociedade passam necessariamente por esta questão. É intuitivo perceber que a vitalidade de uma sociedade depende do que se passa com as famílias, porque este é o ambiente em que cada um de nós recebe (ou deveria receber) tudo aquilo que precisa para se tornar um ser humano maduro, preparado para a vida social e os desafios da existência.

Proteger a família não significa sustentar um arranjo qualquer de pessoas que vivem sob o mesmo teto. A família compõe uma unidade orientada a um mesmo fim, unida por uma mesma história e uma identidade que se transmite de geração em geração. É marcada pela intensidade de afetos e, principalmente, pela experiência da gratuidade e do valor da vida cotidiana. O lugar onde se ensina e se vive aqueles rituais diários que nos educam e nos humanizam. Não, por acaso, um dos seus símbolos é a mesa das refeições, tida, em outros tempos, como lugar sagrado dentro da casa.

Esta é a riqueza da vida familiar, que depois se transmite ao restante da sociedade, como que em círculos concêntricos, transformando os bairros, as cidades, os países em verdadeiras comunidades, guiadas por um “espírito familiar” que as anima e vivifica. Uma comunidade também não é um mero agrupamento de pessoas, mas uma unidade que, por si mesma, transcende as partes que a compõe. Possui uma história própria, valores e referenciais comuns que a guia e formam o que podemos chamar de cultura. Por isso, é possível dizer que o homem é, por natureza, familiar e, portanto, comunitário.

É claro que, no exercício de nossa liberdade, podemos nos afastar deste modelo essencial, razão pela qual as sociedades sempre procuraram proteger e valorizar a organização familiar e comunitária. No entanto, a cultura contemporânea assiste, com um misto de assombro e impotência, talvez, a maior crise que já se abateu sobre a instituição da família. Há muitas causas para esta crise, desde o estilo de vida moderno, que não propicia a convivência pessoal e a construção de vínculos fortes, até mudanças provocadas pela engenharia social das ideologias que predominam no mundo ocidental nas últimas décadas.

São mudanças que atingem diretamente o relacionamento entre homem e mulher, a vivência da sexualidade, a formação e manutenção do vínculo matrimonial, o exercício da paternidade e da maternidade, o papel dos pais na educação dos filhos, entre outros aspectos, que tiveram um impacto sem precedentes sobre as famílias, resultando numa fragmentação social jamais vista e que ameaça a própria perpetuação da nossa civilização. Por exemplo, países desenvolvidos enfrentam uma séria crise demográfica, que aos poucos também atingem países como o Brasil, pois as pessoas simplesmente não têm mais filhos.

Nossa sociedade tem diante de si uma encruzilhada que definirá o rumo que tomaremos nos próximos anos. É preciso reconhecer que a “crise da família” não é uma fatalidade dos tempos, mas uma consequência das idéias que orientaram decisões tomadas, com maior ou menor consciência, no passado recente. Ter a coragem de reconhecer nossos erros é o primeiro passo para consertar a rota e dar início a um longo trabalho de regeneração cultural. Precisamos superar os preconceitos ideológicos que se impõem de modo tão agressivo sobre a sociedade e reassumir nossa responsabilidade na proteção deste modelo essencial, sem o qual iremos perecer impotentes diante de uma lenta e atroz barbárie.

João Marcelo Sarkis, analista jurídico, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas. (joaosarkis@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 24/05/2017, Página A-2, Opinião.